A nova edição do MOTELx começou com “Ma”, um filme de terror protagonizado por Octavia Spencer num papel muito diferente do que é habitual vermos da sua parte.
Em Hollywood, type casting é uma maladia sofrida por muitos atores. Referimo-nos à prática de sempre dar ao mesmo ator o mesmo tipo de personagens, encurralando-os num ciclo de repetição sem fim. Nem as estrelas nem aqueles que já ganharam Óscares estão isentos de serem vítimas de tais práticas. Veja-se o exemplo de Octavia Spencer. Em 2012, a atriz ganhou o prémio para Melhor Atriz Secundária pelo seu trabalho em “As Serviçais” e até teve direito a uma ovação de pé. Desde então, parece que todos os produtores de cinema só a conseguem ver como uma colorida presença secundária em narrativas de época sobre conflitos raciais.
A história da atriz com a Academia de Hollywood é boa prova desse sistema. Desde “As Serviçais”, ela foi também nomeada por “Elementos Secretos” e “A Forma da Água” por interpretar personagens tão semelhantes que podiam quase ser versões da mesma pessoa. Para tornar a situação ainda mais caricata, estes três filmes até se passam todos na mesma época, os anos 60. Enfim, as audiências e os produtores ainda não se cansaram de ver Octavia Spencer nestes papéis, mas ela mesma parece já estar aborrecida. Por isso mesmo, quando surgiu a oportunidade de ser a atriz principal de um filme de terror, algo completamente fora da sua área de conforto, Spencer nem pensou duas vezes sobre o assunto.
“Ma” reúne Spencer com o realizador de “As Serviçais”, Tate Taylor, e representa a primeira aventura dos dois amigos pelos intrépidos caminhos do cinema de terror. De facto, o projeto nasceu a partir da vontade de ambos experimentarem novos desafios que mais ninguém em Hollywood lhes oferecia. Gostaríamos de dizer que o seu amadorismo neste género de terror não foi um obstáculo para a qualidade do filme, mas estaríamos a mentir. Ou melhor, estaríamos a mentir se disséssemos isso acerca de Tate Taylor. Pelo que lhe compete, Spencer é excelente no papel titular, só que o resto do projeto nunca chega aos seus calcanhares.
Parte do problema devém do facto que “Ma” não é realmente sobre a figura com esse nome. Na verdade, esta é a história de Maggie Thompson, uma adolescente filha de pais divorciados cuja mãe, Erica, está de regresso à localidade de Ohio onde, em tempos, viveu a sua juventude. A mãe solteira traz consigo a filha, catapultando a jovem para um novo ecossistema social onde ela não conhece uma única pessoa. Depressa ela atrai a atenção de um grupo de amigos que gosta de passar as tardes livres a beber e, num abrir e fechar de olhos, testemunhamos como Maggie e sua nova trupe tentam arranjar alguém que lhes compre umas cervejas.
Para azar destes adolescentes com pretensões de rebeldia, quem lhes aparece como anjo salvador é uma mulher afro-americana que dá pelo nome de Sue Ann. Inicialmente, ela parece bem afável, comprando-lhes as cervejas sem muitas questões. Contudo, o que deveria ter sido uma interação casual depressa floresce numa relação obsessiva e com traços de preocupante dependência. No dia a seguir, Sue Ann convida os miúdos a passarem o serão na sua cave, alegando que assim eles podem ter um espaço seguro para beber sem porem ninguém, nem a si próprios, em risco.
O tempo passa e Sue Ann, apelidada de Ma pelos seus compinchas juvenis, torna-se na anfitriã preferida dos adolescentes locais e a sua cave é o clube noturno mais popular entre miúdos. O problema começa a surgir quando Maggie e seus amigos se começam a querer distanciar das atenções constantes de Sue Ann. Num abrir e fechar de olhos, a mulher adulta torna-se numa manipuladora impiedosa que tanto amedronta como seduz os jovens, prendendo-os à sua influência e infetando todos os aspetos das suas vidas. Na boa tradição do cinema de terror, eles são idiotas insuspeitos, mas o espectador bem sabe que algo de muito mau está prestes a acontecer.
Seria mesmo impossível para a audiência ser surpreendida pelas reviravoltas, considerando quanto Taylor telegrafa todos os mecanismos do seu enredo. O uso de flashbacks para a juventude de Sue Ann é de particular peso e importância, refletindo também o mais debilitante problema de “Ma”. Da perspetiva de Maggie, a nossa real protagonista, Sue Ann é um monstro perverso pronta a destruir tudo aquilo em que toca. No entanto, em flashbacks e cenas sem os miúdos, a antagonista do filme revela ser uma vítima de bullying e racismo, uma pessoa que ainda carrega consigo as cicatrizes psicológicas de traumas passados. Para ela, esta é uma história de retribuição e justiça, uma tragédia sanguinária que não a encara como uma vilã, mas como uma anti heroína.
Nas mãos de um cineasta com grande habilidade para manejar tons contrastantes e conjugar aspetos contraditórios das suas personagens, “Ma” poderia ter funcionado. Para nossa grande infelicidade, Tate Taylor não é esse cineasta e o filme acaba por ser uma espécie de monstro de Frankenstein, com várias histórias diametralmente opostas a serem rudemente suturadas na forma de uma só narrativa. A única pessoa aqui envolvida que parece capaz de combinar a anti heroína e a vilã é a própria Octavia Spencer. Na sua performance, as duas ideias basilares da personagem coerem e dão a ideia de uma mente estilhaçada que precisa de atenção e está sempre pronta a explodir em raiva destrutiva quando ela não lha é dada. Oxalá o resto de “Ma” estivesse ao nível de Octavia Spencer.
“Ma” é, acima de tudo, uma mostra dos talentos de Octavia Spencer, aqui abençoada com um raro papel principal. Infelizmente, ela tem de partilhar o protagonismo com um elenco de adolescentes irritantes e é também vítima de um miasma inglória de má realização aliada a um catastrófico guião. Enfim, aproveita-se o elenco adulto e pouco mais.
O MELHOR: Octavia Spencer.
O PIOR: A direção frouxa de Tate Taylor e o argumento deficiente de Scotty Landes. Além disso, as fracas tentativas de o filme abordar temas raciais são horrivelmente crassas.
Licenciado em Teatro, ramo Design de Cena, pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Ocasional figurinista, apaixonado por escrita e desenho. Um cinéfilo devoto que participou no Young Critics Workshop do Festival de Cinema de Gante em 2016. Já teve textos publicados também no blogue da FILMIN e na publicação belga Photogénie.