MANDY

Mandy, em análise

Loucura e sangue, demónios motoqueiros e muita luz vermelha, Nicolas Cage a perder a cabeça e uma banda-sonora que induz transe, assim são os ingredientes de “Mandy”, um dos cocktails cinematográficos mais deliciosamente insanos deste ano.

Vingança sangrenta é um tema habitual no cinema de ação e de terror. Afinal, raramente há melhor pretexto para doses industriais de violência e carnificina gratuita que a necessidade de retribuição justiceira. Em muitos desses casos, contudo, a folia e diversão do ato vingativo acaba por se assumir de tal modo como a raison d’être do filme que a injustiça que levou à violência se torna em algo sem importância. Trata-se de um mecanismo que leva a uma crescente desumanização do cinema de terror e de ação, com personagens a serem sujeitas a epítetos de perda e sofrimento que não são nada mais que mecanismos fáceis de argumentistas preguiçosos para possibilitar grandes matanças para a audiência sedenta de sangue e vísceras.

Um discurso humanista, maturo que dá peso e valor à vida humana e reconhece o trauma da perda pode ser a última coisa que esperaríamos encontrar em “Mandy”, mas este filme é uma caixinha de maravilhosas surpresas. O mais recente trabalho do especialista em cinema psicadélico Panos Cosmatos conta a história de um casal que vive uma existência idílica junto a um grande lago americano em 1983. Um acaso do destino vem destruir para sempre essa paz, quando Mandy Bloom é vislumbrada por Jeremiah Sand, líder de um culto à la Família Manson que fica obcecado com a mulher e invoca demónios motoqueiros do inferno para a raptarem. Quando ela prova ser demasiado obstinada para se subjugar à vontade dos raptores, Jeremiah castiga-a a ela à frente dos olhos angustiados de Red, seu namorado lenhador.

Mandy critica
Uma tragédia sob a forma de um filme de terror psicadélico.

Não querendo revelar as características exatas da punição, basta dizer que é um ato hediondo, que acaba com a morte de Mandy e a transformação de Red num caco humano, profundamente traumatizado e em busca de vingança. A parte mais curiosa deste evento é a sua posição na narrativa do filme, pois, ao contrário de muitas outras narrativas semelhantes, “Mandy” deixa passar quase metade de sua duração total até interromper a paz de vida das personagens com o advento do horror. Até aí, Cosmatos vai hipnotizando o espectador com uma gramática cinematográfica sedutoramente excessiva, cheia de cores garridas, sonoridade imersiva, uma estética tirada das capas de discos heavy metal, ao mesmo tempo que estabelece as figuras de Mandy e Red.

Eles não são unidos por uma paixão fogosa, mas sim pela calma que ambos trazem à vida um do outro, ancorando-se numa existência onírica cheia de pacato contentamento. Há algo de estranhamente adulto na relação das duas figuras, mesmo que a estética da sua representação tenha algo de desavergonhadamente juvenil. De facto, Mandy e Red são um poço de contradições cinematográficas, sendo demasiado subdesenvolvidos para serem personagens complexas, mas suas reações emotivas exigem que os consideremos seres humanos cuja dor importa e não é somente um artifício inócuo do jogo de horrores em cena. Cosmatos cede a primeira metade de “Mandy” à sua figura titular, cimentando a presença de Andrea Riseboroguh e sua personagem. Assim, quando ela desaparece de cena sentimos o vácuo fraturante que a sua ausência deixa no próprio tecido da realidade do filme.

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Certamente, o seu fado violento destrói algo em Red. Ele é forçado a observar tudo de olhos esbugalhados, incapaz de soltar os gritos de incompreensível desespero que lhe querem dilacerar a garganta. Pela sua parte, Cosmatos força o espectador a testemunhar todo este cataclisma emocional a abater-se sobre Red, que Nicolas Cage representa com a sua intensidade característica. De facto, é Cage que traz à segunda e muita sangrenta metade do filme o seu peso dramático e nuance. Nas suas mãos, mesmo quando a câmara de Cosmatos e o argumento sugerem humor e divertimento por entre o horror da vingança, a história de “Mandy” é uma crónica de dor e perda, sempre dominada pela melancolia de um homem que perdeu tudo num abrir e fechar de olhos. Até os seus sorrisos são isentos de felicidade, sendo só maníacos, assustadores, uma deturpação demoníaca do que devia ser um gesto de alegria.

Numa sequência que poderia valer um Óscar a Nicolas Cage, se a Academia de Hollywood alguma vez se interessasse por bizarrias de horror como “Mandy”, Cosmatos filma num só take o modo como Red cambaleia ensanguentado até à casa-de-banho em busca de uma garrafa de álcool para beber e desinfetar as feridas que lhe cobrem o corpo. Cage telegrafa todos os percalços físicos que afetam Red, ilustrando-nos a sua dor corporal, a tensão dos movimentos afetados pelos rasgões, cortes e buracos deixados nas mãos e abdómen. No entanto, é a dor psicológica do homem traumatizado que tira a respiração ao espectador, com o ator a uivar, a chorar, a despedaçar-se em frente à câmara. A sinceridade com que o momento é retratado é grotesca, despoletando igual dose de lágrimas de pena e risinhos nervosos.

Mandy critica
Nicolas Cage em estado de graça.

Assim é “Mandy”, uma experiência imersiva e avassaladora que não conhece o sentido de contenção, quer seja a nível formal ou interpretativo. Na sua segunda metade, a narrativa deixa-se cair na indulgência do cliché narrativo, mas Cosmatos e Cage usam essa simplicidade e fórmula como base para continuar o seu exercício em excesso e tragédia. Red pode matar demónios com lâminas no lugar de genitais, pode pegar fogo a pessoas e acender cigarros nos seus cadáveres fumegantes, decapitar idosas cheias de ódio e esmagar o crânio de um assassino com as próprias mãos, mas o espectador nunca tem permissão para se entreter com esses horrores sem pensar no custo que foi pago para a deflagração da violência, Mandy.

Fãs do gore vão certamente amar esta alucinação em forma de filme, mas pessoas que detestam a desumanidade sórdida de histórias de vingança também serão capazes de encontrar algo de valor nesta tragédia infernal que, por muitas mortes que inclua, nunca perde a sua humanidade. Cosmatos e sua equipa conceberam aqui uma precária experiência tonal que está sempre a ameaçar o descarrilamento. Felizmente, os riscos tomados são justificados pela qualidade do filme destinado a tornar-se num objeto de cinema de culto em anos vindouros, tanto pela sua estética estrambólica como pela presença desenfreada de Cage em estado de graça. Como nota final, fica um elogio sentido às paisagens sónicas do filme, cuja música hipnotizante foi composta por Jóhann Jóhannsson, que faleceu em fevereiro e a quem “Mandy” é dedicado.

Mandy, em análise
mandy

Movie title: Mandy

Date published: 27 de September de 2018

Director(s): Panos Cosmatos

Actor(s): Nicolas Cage, Andrea Riseborough, Linus Roache, Ned Dennehy, Olwen Fouéré, Richard Brake, Bill Duke, Line Pillet

Genre: Ação, Terror, Thriller, 2018, 121 min

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO

Tanto pela sua intensidade emocional sem reservas, como pela sua abordagem formal alucinatória e a insanidade do enredo, “Mandy” não é um filme para todos os espetadores. Muitos vão ser repugnados pela violência gráfica e excesso estético, mas há valor nos riscos tomados pelo realizador e sua destemida equipa. Nicolas Cage e Andrea Riseborough são as armas secretas do filme, trazendo humanidade à sua história de vingança sobrenatural.

O MELHOR: Cage em suplício emocional e as composições amorfas e imersivas de Jóhannsson.

O PIOR: Apesar da sua presença ser apaixonante e Riseborough lhe dar especificidade humana, Mandy é uma figura muito vagamente esboçada. Um pouco mais de definição pessoal daria muito mais poder à tragédia do filme. Pelo menos, ao contrário de muitas outras personagens em narrativas do género, ela nunca tem a sua integridade ou dignidade violadas pelos mecanismos orquestrados por Cosmatos.

CA

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