Megalopolis – análise
“Megalopolis” de Francis Ford Coppola foi um dos grandes acontecimentos cinematográficos de 2024. Estreado no Festival de Cannes, o filme tanto foi vaiado como elogiado. Dividiu opiniões e criou uma grande expectativa em torno do filme. Agora que o filme estreia, finalmente, na televisão portuguesa, esta é uma altura ideal para revisitarmos esta obra-prima de Francis Ford Coppola que não deixou ninguém indiferente; quer pela negativa, quer pela positiva.
“Megalopolis” apresenta-nos a história de César Catilina (interpretado por Adam Driver) que pretende construir uma cidade-utopia: Megalopolis. O filme estreia já este domingo 8 de junho às 21h25 no TVCine Top. Repete no mesmo canal no sábado 14 de junho às 13h25. Logo após a exibição, o filme ficará igualmente disponível no TVCine+.
As origens de Megalopolis
“Megalopolis” é um projeto que foi pensado por Francis Ford Coppola há já várias décadas. O realizador começou a desenvolver o filme no início dos anos 80, inspirando-se na Conspiração Catilinária que aconteceu em 63 A.C. No centro desta Conspiração estava um aristocrata romano, Lúcio Sérgio Catilina, que queria destronar a República Romana. Se o tivesse conseguido, ele teria expulsado a classe alta reinante e libertado a si próprio e às classes mais baixas das dívidas.
No Verão de 2001, Coppola conseguiu fazer algumas leituras de mesa com atores como, por exemplo, Robert De Niro, Paul Newman, Leonardo DiCaprio, Uma Thurman, James Gandolfini e Russell Crowe. Nesse mesmo ano fez ainda algumas filmagens de contexto. No entanto, entretanto, rebentou o 11 de Setembro e Coppola não conseguiu avançar com o filme num mundo tão trágico e incerto.
Mais tarde, Coppola regressou às leituras de mesa. Mas, em 2007, considerou desistir do projeto devido à falta de apoios. A combinação do 80.º aniversário do realizador com a pandemia COVID-19 deram-lhe, então, o impulso para avançar com o filme. Assim, em agosto de 2021 começou os trabalhos de casting. Porque queria que “Megalopolis” fosse totalmente seu, Francis Ford Coppola autofinanciou-se vendendo uma parte das suas vinhas.
De Nova Iorque a Nova Roma
Em “Megalopolis” Francis Ford Coppola faz algo semelhante ao que já havia feito com “Apocalypse Now” (1979). Nesse filme, Coppola transportou “O Coração das Trevas” de Joseph Conrad do Congo do final do século XIX para o Camboja e Vietname durante a Guerra do Vietname. A saber, em “Megalopolis”, Coppola transporta uma história da Roma Antiga para a atualidade. Assim, Nova Iorque transforma-se em Nova Roma. E Coppola trabalha todo o contexto de uma forma absolutamente contemporânea e com toda uma riqueza e excessos (os néons, os QR Code, as drogas, o sexo, a tecnologia, …) dentro da história do filme.
Megalopolis: Uma Fábula. É assim que Coppola apelida este seu filme. Isto é, obviamente, sintomático de um tratamento opulente (será?) destas personagens e desta narrativa com a realidade. “Megalopolis” porque estamos perante uma mega cidade no centro do mundo. Fábula porque estamos perante um mundo imaginário que é adaptado da História do nosso mundo antigo, na Roma Antiga.
Mas será este mundo assim tão imaginário? Não poderá ser o mundo atual, ainda que com visões de um futuro próximo e possível? Uma utopia por cumprir no meio de tanta destruição… Se, por um lado, seria importante limparmos o nosso mundo atual – como a personagem César em certa medida quer fazer –, não precisamos de um mundo totalmente novo e diferente? “Estamos a precisar de um grande debate sobre o futuro.” analisa César.
Um artista com o poder de parar o tempo. Um político que quer sempre ser bem olhado pelos seus cidadãos. Arqui-inimigos que querem governar o mundo com autoridade, ganância e poder. Em poucas frases, poderíamos resumir assim este filme de Francis Ford Coppola. Mas… o filme é muito mais do que (apenas) isto…
As personagens e as relações com a realidade
É bastante notória a crítica que Coppola faz do nosso mundo atual e da própria Humanidade em “Megalopolis”, nos seus exageros mais profundos. Com Donald Trump eleito para um segundo mandato, a ficção deste filme não é assim tão ficção… Nesse sentido, não podemos deixar de comparar Clodio Pulcher (interpretado por Shia LaBeouf) a Donald Trump – ainda que Clodio seja bastante mais “bizarro” e faça figuras que Trump nunca faria (pelo menos, de forma pública). Por outro lado, não deixa de ser um pouco surpreendente o facto de Jon Voight ser apoiante de Donald Trump quando ele próprio interpretou uma personagem bem contrária às suas ideias…
Francis Ford Coppola referiu, numa entrevista com Marcos Uzal para os “Cahiers du Cinéma”: “O fascismo está muito ligado ao espetáculo. Sou daqueles que acredita que se Hitler usou aquele pequeno bigode, é porque Chaplin também o tinha e que ele sabia que aquele era o homem mais amado no mundo. A ideia do fascismo não vem verdadeiramente de Mussolini mas de Gabriele D’Annunzio. Hitler imitou Mussolini que imitou D’Annunzio. (…) Todo este fascismo é, portanto, uma farsa louca e é o trabalho da arte mostrar quanto tudo isto é ridículo e patético.”
A imagem e os décores ao serviço da narrativa
Clodio gosta da atenção da multidão e provoca-a nesse sentido. Diz aquilo que a multidão quer ouvir e, por isso mesmo, é comparável a Hitler, Mussolini ou Trump. Nesse sentido, também o trabalho de imagem e dos décors contribui para esta crítica. Não podemos deixar de sentir metáforas do desequilíbrio da sociedade quando Coppola utiliza a câmara em vários ângulos tortos na festa de casamento de Wow Platinum (Aubrey Plaza) e Hamilton Crassus III (Jon Voight) ou quando Júlia (Nathalie Emmanuel) entra no gabinete do seu pai (Giancarlo Esposito) e a secretária dele está torta e rodeada de areia.
Não deixa também de ser curioso que, antes de “Megalopolis”, o projeto anterior de Coppola a ser lançado em sala tenha sido “One From the Heart: Do Fundo do Coração – Reprise” (1982/2023). Ambos os filmes estão contaminadíssimos de luzes e néons. E, em certa medida, podemos dizer que ambos os filmes criticam o glamour e a opulência.
A estética do filme
Abordando, agora, a construção do filme… “Megalopolis” é, claramente, um filme cheio de referências. Na inclusão dos sonhos – “(…) inspirei-me muito nos meus sonhos e gostava que tivéssemos o sentimento que todo o filme é um sonho. Vemos mesmo pessoas a sonhar em “Megalopolis” mas isso mistura-se com o resto. (…)”, refere Coppola aos “Cahiers du Cinéma” –, na divisão em três ecrãs, na proliferação tecnológica, nas corridas de quadrigas e no próprio imaginário da ficção científica.
Se em “A Casa Encantada” (1945, Alfred Hitchcock), temos uma sequência de Salvador Dalí onde temos a consciência de estar dentro de um sonho, aqui, tudo pode ser um sonho, mas, ainda assim, é notória a inspiração do filme de Hitchcock numa pequena cena onde César está a olhar para várias frações de “espelhos” à sua frente que remetem para o seu passado.
Já quanto à divisão em três ecrãs em algumas das cenas de “Megalopolis”, é uma clara inspiração de Abel Gance que, com o seu “Napoleão” (1927), também já o tinha feito (ainda que hoje esta seja uma característica mais presente no contexto das instalações vídeo em museus). Quanto à proliferação tecnológica, se Coppola se auto-inspira, não podemos, ainda assim, deixar de pensar em “Blade Runner: Perigo Eminente” (1982, Ridley Scott).
No que diz respeito ao lado romano do filme, nomeadamente no que à cena de arena diz respeito, é notória a referência a “Ben-Hur” (1959, William Wyler) ou “Spartacus” (1960, Stanley Kubrick). Do mesmo modo, há todo um lado fellininesco de “Fellini-Satyricon” (1969, Federico Fellini) na sequência da festa de casamento de Wow Platinum e Hamilton Crassus III, por exemplo. Por outro lado, é inevitável lembrarmo-nos de “Metropolis” (1927, Fritz Lang). Se a inspiração para o título é notória, também a narrativa tem algumas semelhanças.
A reflexão que fica de Megalopolis
Em suma, saímos de “Megalopolis” num completo estado de transe, porque o próprio filme é um transe. Sentimos que ficamos com mais perguntas do que respostas mas, acima de tudo, é um filme que nos faz questionar a nós próprios enquanto Humanidade. Já para não falar do final do filme onde tudo pára menos o bebé recém-nascido, como um sinal de esperança e surgimento de uma nova sociedade mais justa.
Megalopolis
Conclusão
- Megalopolis é um filme que dividiu opiniões. Tal como com filmes anteriores de Francis Ford Coppola como, por exemplo, “One From the Heart: Do Fundo do Coração” este é um filme que, apesar de tudo, ficará para a História e que, muito provavelmente, se tornará uma obra-prima e um clássico com o passar dos anos.
- Neste filme, Francis Ford Coppola transporta a Roma Antiga para a atualidade transformando Nova Iorque em Nova Roma. O capitalismo desenfreado e a loucura dos nossos tempos são assim expostos pelo realizador neste filme tremendamente bem construído.
- O filme tem um excelente trabalho de atores (destacando-se desde Adam Driver, Shia LaBeouf, Aubrey Plaza até ao veterano Jon Voight), uma excelente direção artística, um trabalho ímpar na imagem, som e montagem. Obra-prima absoluta.