Emily Sprague (foto de Carley Solether)

Mês em Música | Playlist de Julho 2019

A Playlist de Julho está cheia de grandes singles, com regressos de peso, e um álbum a juntar à lista de 2019. É época de festivais, mas a música de estúdio continua em alta.

São tempos de espera. Sob o sol ardente ou as noites cálidas de estio, o público dispersa-se e acumula-se por esses festivais fora, ouvindo as bandas e cantautores em ritmos de digressão por vezes implacáveis, estafando-se uns, regozijando-se os outros. Tudo funciona a meio gás, com metade do povo em férias, um pouco por todo o lado. Os lançamentos de novos álbuns são marcados para o final de Agosto e Setembro, gastos os meses até lá a criar tensão e expectativa com os singles que antecipam uma reentrada em cheio. Mesmo a calhar, porque é verão e o espírito é de playlist.

Playlist de Julho | Os singles

Não é por isso de estranhar que a nossa Playlist de Julho seja parca em álbuns e abundante nos temas que abrem ou continuam o ciclo de promoção dos discos que serão a banda sonora do nosso regresso ao trabalho. Este mês abunda em promessa e não falta grande música tanto no campo da guitarra como no dos sintetizadores. Alguns gigantes, uns mais veneráveis, outros ressuscitados e outros ainda no auge da carreira, estão de volta e anunciaram este mês novos trabalhos, como Wilco, Belle & Sebastian, Bon Iver, Vivian Girls, Mikal Cronin, Jenny Hval, Angel Olsen e as HAIM. Com eles convivem, ainda anónimos mas não por muito tempo, artistas que trazem consigo o indie do amanhã. Pilhando o passado, com invulgar sapiência e domínio do material de origem, citando-o, glosando-o, tornando-o seu, estão os Squid e os Black Country New Road, bandas que pertencem ao círculo subterrâneo de bandas de guitarra neste momento em efervescência nas cidades da Grã-Bretanha e da Irlanda.

Não foi fácil decidir quais os singles deste mês a destacar aqui, tantos há que apetece realçar de uma Playlist de Julho plena de canções memoráveis. Não foi fácil menos num caso, o nosso primeiro. Anna Meredith é uma compositora escocesa, com formação clássica – licenciatura em música na Universidade de York e mestrado no Royal College of Music – e trabalho realizado na área da música contemporânea erudita. Para além disso, são várias as suas incursões nos campos da banda sonora (Eighth Grade, de 2018) e da música electrónica experimental, tendo-se estreado com Vermints (2016), álbum que lhe mereceu o prémio de Scottish Album of the Year. Este mês, Meredith anunciou o seu segundo disco, FIBS, que sairá no dia 25 de Outubro por meio da Black Prince Fury/Moshi Moshi, e partilhou o single principal, “Paramour”, que aqui vos convidamos insistentemente a ouvir.

Anna Meredith - Paramour - Playlist de Julho 2019
Anna Meredith (foto de Gem Harris)

Se dúvidas houvesse de que neste tema de math-rock existem pessoas de carne e osso a tocar instrumentos analógicos – afinal há momentos onde se chegam aos 176 BPM -, o vídeo mais do que revela a humaníssima origem desta sonoridade que nos atrai e confunde. Perplexos e espantados pelo desafio dos limites de velocidade, cativados desde o primeiro motivo melódico, presos a seguir o desenrolar da canção, curiosos do que se seguirá a cada curva, viajamos naquele comboio cujo circuito foi mesmo construído, passando por cada instrumento que lá foi mesmo pousado, olhando abismados para cada membro que ali mesmo toca a sua guitarra, violoncelo, tuba, clarinete, bateria, xilofone e sei lá que mais, só para nos perguntarmos a cada instante se tudo isto será de génios, de loucos ou, como é costume, ambas as coisas.

Ainda assim, bem longe de ser um mero exercício de virtuosismo, “Paramour” é profundamente envolvente na dançável galhardia, tensão contínua, motivos rítmicos em tropel, timbres circenses, ribombante percussão e controladas mudanças de humor de que é feita. Não conheço, tirando a “Atlas” dos Battles, outra composição de math-rock com tanto carisma pop, com tanta capacidade de exprimir qualquer coisa do ritmo e da atmosfera da vida urbana contemporânea. Como podem ver por esta paridade (alguém duvida de que “Atlas” seja uma das grandes canções da década passada?), nunca houve hesitações quanto ao single que ocuparia o primeiro lugar nesta Playlist de Julho.

ANNA MEREDITH | PARAMOUR

Há algum tempo que temos vindo a chamar a atenção para uma nova e estimulante geração de bandas de guitarra que está a surgir na Irlanda e na Grã-Bretanha, para lá dos Shame e dos IDLES que andam agora na boca do mundo. A nosso ver, há coisas talvez bem mais interessantes a acontecer onde poucos andam a espreitar, mesmo se começam a merecer algum destaque em publicações internacionais com que simpatizamos ou até mesmo a marcar presença no nosso país, como é o caso da inclusão dos Black Midi no cartaz do Vodafone Paredes de Coura deste ano.

Alguns destes grupos estão mais próximos do punk e pós-punk, outros do pós-rock e jazz livre, mas todos reúnem três características que nos entusiasmam: tratam-se de bandas à séria, podendo-se ouvir nelas as diferentes personalidades a dialogar instrumentalmente, e não de cantautores a compor todas as partes da canção no Logic; não acreditam de todo que a música de guitarra esteja morta e, o que é mais, mostram-nos que não está; e, por fim, agita-os um ânimo inconformista e uma estima pela expressão artística que são um refrigério nestes tempos de frívolo poptimismo. São um grande contraponto ao círculo americano de cantautoras indie, que a Pitchfork tem apoiado e promovido nos últimos anos. Sem qualquer menosprezo por esta inflexão do rock alternativo (como verão pelo nosso álbum do mês), reduzir a música de guitarra relevante a esta corrente tem sido, a nosso ver, um erro crasso da Pitchfork, que só agora virou o cata-vento para onde sopram os ares do tempo.

Sobre o mais recente single “Sunglasses” de uma destas bandas, os Black Country New Road, pronunciou-se já o nosso Diogo Álvares Pereira. Gostaria de introduzir uma outra banda divulgada pela Speedy Wunderground igualmente merecedora de destaque e não apenas por causa do fantástico single, “The Cleaner”, lançado este mês, que, tal como “Sunglasses”, integramos aqui nesta Playlist de Julho. Os Squid são compostos pelo baterista Ollie Judge, os guitarristas Louis Borlase e Anton Person, o baixista Laurie Nakivell e o teclista Arthur Ledbetter. Judge, Borlase e Person distribuem entre si os deveres de vocalista, se bem que o primeiro tenha acabado no tempo por se estabelecer como a principal voz da banda. Reuniu-os a sua mútua apreciação dos Neu! e de alguma música saída da ECM Records, editora alemã de jazz, bem como a realização de concertos para um mesmo público de amigos, em bares de jazz da cidade de Brighton.

Os interesses dos Squid rodavam todos em torno de jazz modal, krautrock e música ambiente, como o atestam os poucos singles editados até à data pela banda. Os mais recentes “Houseplants” e “The Cleaner” revelam uma estabilização da sonoridade em torno dos ritmos motorik de Ollie Judge; da sua performance vocal algures entre Fred Schneider, dos B-52, e James Murphy, dos LCD Soundsystem, embora progressivamente mais agreste e desvairada; e de uma fluidez composicional da canção, com a sua identidade a metamorfosear-se aquando a deslocação do protagonismo instrumental de um membro a outro, principalmente nos casos de alternância entre as vozes de Judge e Borlase. Segundo este último, numa entrevista à Loud and Quiet:

Julgo que quando escrevemos as partes vocais, estabelecemos uma dialéctica. Temos um tema chamado “The Cleaner” que é basicamente um ir e vir entre a narrativa principal de Ollie e o contraponto da minha narrativa. Gostamos mesmo desta ideia do andar para a frente e para trás da narrativa, onde cada parte deriva de um sujeito e perspectiva completamente diferentes.

SQUID | “THE CLEANER”




Playlist de Julho | Os álbuns

Remembering the Rockets é apenas o segundo álbum dos Strange Ranger, mas a experiência dos vários membros que compõem a banda já é longa e não falta, por isso, maturidade artística ou humana a este disco ultimamente melancólico. Isaac Eiger encontra-se naquela fase tardia da juventude onde a gravidade das coisas se começa a fazer sentir e a penetrar pelos poros a mente e a identidade. O ritmo ligeiro e a suavidade etéreas de Daymoon (2017) foram substituídas aqui por uma atmosfera no cômputo geral pensativa e vagamente dolorosa.

As melodias cantáveis mas nostálgicas e de andamento mais ou menos arrastado, a lembrar por vezes o grunge (como em “Ranch Style Home” ou “Beneath the Lights”), juntamente com a nebulosidade do eco e da distorção, sublinham o drama de desejar ser pai num mundo ecologicamente ameaçado, da passagem do tempo, de relações que se complicam na intimidade. Os vários e longos fragmentos instrumentais, sobrevoados por vezes pelas vozes flutuantes, etéreas e afundadas na mistura de Isaac Eiger e Fiona Woodman, dão ao álbum um tom jazzístico de improvisação e fluidez que contrasta com, mas por isso mesmo intensifica, as ruminações plangentes dos versos. O resultado é uma versão de slowcore nada minimalista, de textura densa, ritmos dançáveis e elementos de shoegaze, que, se lembra os Galaxie 500 ou os Red House Painters, também converte Remembering the Rockets numa experiência de audição memorável e os Strange Ranger numa das promessas para a década que aí vem.

STRANGE RANGER | REMEMBERING THE ROCKETS

Playlist de Julho | O álbum do mês

Num mês que não abundou em lançamentos de LPs, não foi difícil perceber qual o álbum que sobressaía. Sobre Emily Alone, dos Florist, dissemos na nossa crítica: “Emily Sprague tem razão quando considera este disco uma criação sua enquanto membro dos Florist. Não há nenhum grande desvio da personalidade musical deste projecto e o álbum está bem longe dos trabalhos de música ambiente que a cantautora e produtora assinou com o próprio nome. Ao mesmo tempo, salientar por meio do título que a sua pessoa está na origem deste álbum e no centro do seu conteúdo dá conta de algumas pequenas mas relevantes e evidentes diferenças que percorrem todo o disco.

A guitarra, com os seus arpejos dedilhados ao de leve ou insistentemente, assume aqui um papel preponderante, ao contrário do que acontece nos Florist, onde partilha com os sintetizadores, em partes iguais, o protagonismo do instrumental. A voz e os versos de Emily Sprague soam, ao mesmo tempo, mais íntimos e mais decididos do que no seio das composições da banda, onde uma e outros flutuam etéreos e dispersos. O eco da voz e a reverberação da guitarra, sobre um fundo de suaves sintetizadores, toques de melódica e acentos de guitarra elétrica, criam uma atmosfera que interioriza as habituais, mas aqui mais maduras e pungentes, interrogações existenciais de Sprague. A morte da mãe, o fim de uma longa, aparentemente estável, relação amorosa e a migração de cidade, de um lado ao outro da América, transfiguraram-nas de devaneios ainda adolescentes numa ferida aberta a urgir uma resposta. Se a performance vocal continua tão ou mais sussurrada do que o costume, a seriedade das meditações que vão sendo tecidas nesta deambulação mental traz um peso, uma gravidade que torna tudo mais coeso, concentrado, resoluto. Mesmo na sua irresolução.”

FLORIST | EMILY ALONE

PLAYLIST DE JULHO | DESTAQUES DO MÊS

PLAYLIST DE JULHO | SPOTIFY

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