Paula Beer quase como sempre em estado de graça. ©Leopardo Filmes/Divulgação

Miroirs No. 3, em Análise

Em “Miroirs No. 3” o luto não explica nada, apenas ecoa e Christian Petzold, filma como se fosse um mistério vazio, como quem afina um piano partido ou completamente desafinado. Estreia no primeiro dia do ano de 2026.

Christian Petzold não é um cineasta que se explique demais. Antes, faz exactamente o contrário: retira, subtrai, silencia e confia que o espectador o saiba ouvir e pensar. “Miroirs No. 3”, apresentado na Quinzena dos Cineastas em maio passado no Festival de Cannes 2025 e fora da competição do último LEFFEST é talvez o seu filme mais depurado, mais cruelmente delicado e, por isso mesmo, um dos mais perturbadores da sua filmografia. Não é um filme directamente “sobre” o luto. É um filme dentro do luto. Daquele estado suspenso em que o mundo continua a funcionar, mas tudo parece ligeiramente fora de tom, como um piano desafinado numa casa demasiado silenciosa.

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Miroirs No. 3
Em Petzold, a família nunca é abrigo: é um mecanismo frágil. ©Leopardo Filmes/Divulgação

Um acidente, uma casa, um lugar vago

Em “Miroirs No. 3”, Laura — uma Paula Beer (“Undine”) quase como sempre em estado de graça — sobrevive a um acidente de carro que mata o namorado. O carro despista-se, a morte instala-se, e logo ali, do outro lado da estrada, surge uma casa. Uma mulher mais velha, Betty (Barbara Auer), que acolhe-a. Um gesto simples, quase automático. Laura fica uma noite. Depois outra. Depois vai ficando, ficando…Petzold monta este início como um conto de fadas minimalista: uma estrada, uma casa isolada, uma porta que se abre. Cinderela perde um sapato. Hansel e Gretel entram na casa errada. Aqui, ninguém diz “fica”. Mas tudo conspira para que Laura ocupe um lugar que estava vazio há demasiado tempo.

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A família como maquinaria avariada

Aos poucos surgem os homens da casa em “Miroirs No. 3”: o marido (Matthias Brandt), o filho adulto (Enno Trebs), a garagem, os carros para reparar. Tudo funciona, menos aquilo que importa. Em Petzold, a família nunca é abrigo: é um mecanismo frágil, montado à pressa, sempre à beira de colapso. Os papéis — mãe, filha, esposa, estranha — são intercambiáveis. O que conta não é quem se é, mas quem está disponível para ocupar o lugar em falta. Laura não invade o espaço. Não manipula emocionalmente ninguém. Simplesmente está, simplesmente fica. E essa presença basta para que a casa se reorganize à sua volta. O que levanta a pergunta incómoda que o filme nunca responde: quem está a salvar quem e a que preço?

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Um filme que anda para dentro

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“Miroirs No. 3” trabalha também num perímetro reduzido: casa, garagem, estrada. Poucas personagens. Poucos objectos. Um piano antigo, uma bicicleta, uma máquina de lavar. Tudo ganha peso simbólico porque Petzold filma como quem escuta: atento ao intervalo entre um gesto e outro. A fotografia de Hans Fromm recusa o dramatismo fácil. A luz é clara, campestre mas nunca confortável. O filme avança como música de câmara: quartetos, duetos, solos. Nada explode. Tudo ressoa. E quando a música entra — Chopin, Frankie Valli, Ravel — entra sempre ligada a um corpo, a um gesto, a um espaço. Nunca para sublinhar emoções. Nunca para explicar. Apenas para tornar audível o que não pode ser dito.

Miroirs No. 3
A fotografia de Hans Fromm recusa o dramatismo fácil. ©Leopardo Filmes/Divulgação

O mistério como ética

Vivemos rodeados de filmes que nos explicam tudo: passado, trauma, psicologia, sublinhado emocional. Em Miroirs No. 3Petzold recusa isso com elegância quase insolente. Aqui, ninguém faz um monólogo sobre a dor. Ninguém “resolve” o luto. O drama fica fora de campo, como um ruído persistente. Há um nome — Yelena — que surge tarde, como uma chave deixada em cima da mesa. Não abre nada. Apenas confirma que havia uma porta fechada desde o início. Petzold filma como um western existencial: alguém chega, ninguém sabe de onde vem, e só aos poucos percebemos o que a sua presença destabiliza. O espectador não é guiado. É convocado.

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Christian Petzold
Petzold confirma-se aqui em “Miroirs n° 3” como um cineasta raro. ©Leopardo Filmes/Divulgação

Paula Beer: corpo, não fantasma

Se em “Undine” ou “Transit”, Paula Beer parecia uma aparição, aqui em “Miroirs No. 3” é puro corpo. Cansaço, lentidão, reaprendizagem. Laura reaprende a rir, a pedalar, a tocar piano. Não há redenção em “Miroirs No. 3”. Há digamos reparação e essa é a palavra-chave do filme. Reparar carros. Reparar cercas. Reparar pessoas. Não para ficarem como novas, mas para voltarem a funcionar. É um cinema profundamente romântico, no sentido mais radical do termo: acredita que algo pode ser reconstruído, mesmo sabendo que tudo é provisório.

Um final que não fecha

Quando Laura parte, nada fica resolvido. Fica apenas a sensação de que aquele tempo suspenso — aquela ilusão necessária — foi real enquanto durou. E isso basta. “Miroirs No. 3” termina como começa: em suspensão. Um filme que não avança para a frente, mas para dentro. Petzold confirma-se aqui em “Miroirs No. 3” como um cineasta raro: aquele que entende que o mistério não é um truque narrativo, mas uma forma de respeito. Pelo espectador. Pela dor. Pela vida.

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JVM

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“Miroirs No. 3” — Análise
  • José Vieira Mendes - 85

Conclusão:

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“Miroirs No. 3”, confirma Christian Petzold como um cineasta cada vez mais raro: alguém que acredita que o cinema não tem de explicar o mundo para o tornar legível. Pelo contrário, pode torná-lo ainda mais misterioso e, paradoxalmente, mais verdadeiro. Este é um filme que não oferece respostas, nem catarse, nem conforto emocional pré-embalado. Oferece tempo. Tempo para observar, para escutar, para aceitar que há perdas que não se resolvem, apenas se integram. Petzold filma o luto como uma casa onde se entra sem saber se se é hóspede, intruso ou substituto. Quando o filme termina, nada está fechado — mas algo foi deslocado dentro de nós. E isso, hoje, é talvez o gesto mais político e mais poético que o cinema pode fazer.

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85
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Pros

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O melhor: O filme brilha na forma como Christian Petzold transforma o silêncio, o fora de campo e a ambiguidade em matéria dramática, recusando qualquer psicologia explicativa; a presença contida e física de Paula Beer sustenta o filme inteiro sem pedir empatia nem oferecer atalhos emocionais.

Cons

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O pior: A mesma contenção que dá força ao filme pode afastar quem espera uma narrativa mais clara ou um arco emocional clássico; para alguns espectadores, o mistério permanente poderá soar a frieza ou a recusa de fechamento.


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