Nanny, em análise

No Festival de Sundance deste ano, “Nanny” de Nikyatu Jusu afigurou-se como um dos títulos mais aclamados, tendo arrecadado o Grande Prémio do Júri na competição americana. Desde esse sucesso, esta fusão de realismo e terror tem vindo a ganhar fãs e até garantiu distribuição através do Amazon Prime Video, onde se encontra agora disponível para o público português. Outras honras ganhas pelo filme incluem o reconhecimento do National Board of Review e nomeações para os Gotham e os Film Independent Spirit Awards. Sem sombra de dúvida, trata-se de uma das grandes revelações de 2022.

O cinema de género é muitas vezes menosprezado, descartado como entretenimento despido de valor além da diversão imediata que suscita. Ficção-científica, fantasia, terror e outros que tais vivem sob a sombra do drama prestigiado, pensando-se menores por cinéfilos com pouca imaginação. Parte do problema devém de uma ideia insidiosa em que filmes de género não têm nada a dizer, trabalhos desmiolados com muito estilo e nenhuma substância. Ignorando a tolice dessa última expressão, convém olhar além da superfície, entender padrões históricos, e estar aberto à descoberta.

nanny critica
© Amazon Prime Video

Filtrando seus conceitos através dos mecanismos de género, estas obras conseguem ter mais complexidade que muitos dramas vencedores de prémios. Que se nulifiquem os preconceitos cinematográficos e vamos então encarar todo o filme com o respeito merecido. Nomeadamente, pensemos nos modos como o terror pode ser veículo para explorar as vicissitudes da ansiedade humana, tensões subjacentes à vida mundana e crispações culturais. Nada exemplifica isso melhor que “Nanny,” primeira longa-metragem de Nikyatu Jusu.

Esta é uma história de fantasmas, mas também é um conto do imigrante, uma reflexão sobre maladias quotidianas explodidas pelo trauma crescido na travessia entre continentes. De África para as Américas, faz-se uma odisseia em busca da vida melhor, atravessando todo um oceano de memórias em direção a um inferno capitalista. A mulher que faz essa viagem é Aisha, uma imigrante do Senegal mudada para Nova Iorque. Seu trabalho centra-se nos cuidados de Rose, a filha pequena de um casal abastado cujo matrimónio está nas últimas.

Como que em jeito de eco, o filme parece uma reverberação de “La Noire…,” esse título que revolucionou a fama do cinema Africano à escala mundial. Tal como no clássico, a protagonista de “Nanny” vê os seus deveres expandirem além do cuidado infantil. Em certa medida, ela torna-se num apoio constante para a mãe da menina, estando sujeita às suas necessidades emocionais e exigências sem fim. Para a mulher branca, o desequilíbrio na dinâmica parece incompreensível e depressa a fita escoria a pátina de boa educação. Um dos pontos mais inquietantes é o atraso no pagamento.

É que Aisha não imigrou para se sustentar somente a si. Um filho espera-a do outro lado do mundo e com o dinheiro ganho a mãe espera preparar uma nova vida para o menino nos EUA. Conversas ao telefone e videochamadas ocupam o seu pouco tempo livre, tentativa desesperada de se manter perto do filho tão geograficamente longe. Estas cenas, assim como o ocasional devaneio pela lembrança sonhada, definem “Nanny” como a história de Aisha enquanto figura materna ao invés de ser um conto baseado na sua subserviência laboral.

As personagens brancas são intrusas, parasitas que exigem trabalho sem fim e indiretamente demandam a obliteração identitária de quem os serve. Subjacente a tudo está a dor de mãe, o pânico da imigrante, a fricção daquele que se tenta integrar numa cultura que não a sua sem se perder a si mesmo no processo. A comunidade com outra gente oriunda da África Ocidental ajuda a manter os pés bem assentes na terra e o desabrochar do romance também serve como âncora. Contudo, não há maneira de negar as angústias por detrás de cada sorriso forçado.

O que começa por ser somente a subjetividade stressada de Aisha gradualmente ganha permutações mais estilizadas, mais opressoras e sufocantes. Memórias convertem-se em pesadelos alucinados que roubam sono, invadindo o mundo acordado além do reino onírico. Visões suplantam o real, o horror mundano evoluindo em malignidades sobrenaturais. Serão demónios ou deuses, castigos sobrenaturais ou avisos da tragédia iminente? Duas figuras particulares emergem das sombras, saídos da lenda Africana para atormentar Aisha. São eles a aranha Anansi que distorce a realidade e o espectro aquático de Mami Wata.

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© Amazon Prime Video

Esta última é direta e cruel nos seus métodos, confirmando a sua presença como algo real e não mera manifestação de uma psique em crise. Esta imigrante é literalmente assombrada pelos espíritos da sua terra natal, como que puxada para as águas do Atlântico ora numa exigência de regresso ou punição por pecado incerto. Sempre unidos à intimidade de Aisha por meio da câmara, sentimo-nos asfixiados, quase soterrados pela maré turquesa. A fotografia de Rina Yang muito materializa esses sentimentos inefáveis, enquanto a sonoplastia apela ao mecanismo clássico do terror.

No meio de todo o edifício fílmico de “Nanny,” Anna Diop afigura-se como quem mantém toda a estrutura em pé. A atriz principal articula a interioridade complicada de Aisha, negociando as indignidades de cada dia com o fulgor da felicidade passageira. Graças a si, um final abrupto consegue fazer sentido emocional apesar da estranheza rítmica. Se Nikyatu Jusu aqui confirma ser uma das cineastas americanas a seguir em anos vindouros, Diop prova ter a capacidade para ser uma estrela capaz de suster os mais complicados projetos. Mal podemos esperar para ver o que ela faz a seguir a “Nanny.”

Nanny, em análise
nanny critica

Movie title: Nanny

Date published: 16 de December de 2022

Director(s): Nikyatu Jusu

Actor(s): Anna Diop, Michelle Monaghan, Morgan Spector, Sinqua Walls, Rose Decker, Leslie Uggams, Olamide Candide-Johnson, Jahleel Kamara

Genre: Drama, Terror, Thriller, 2022, 99 min

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO:

Usando folclores africanos para dramatizar a experiência de uma imigrante senegalesa nos EUA, “Nanny” colide com o terror sobrenatural com ideais do realismo social. Nikyatu Jusu é uma revelação, mas o mesmo é verdade de toda a equipa aqui reunida, desde a atriz principal até ao mais singelo técnico de som.

O MELHOR: A prestação de Diop, as cores matizadas da fotografia e a ansiedade rarefeita da sonoplastia, cada ruído um nervo em franja. Estes elementos são especialmente importantes à medida que “Nanny” se vê consumida pela visão sobrenatural e a imagética aquosa.

O PIOR: O final abrupto é um choque para o sistema, quiçá em demasia. Em termos estruturais, não faz sentido algum apesar de Diop lhe dar forma enquanto expressão de um coração despedaçado em busca de esperança.

CA

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