O Garoto de Charlot | Este Garoto faz 100 Anos
A Midas Filmes celebra o 100º aniversário de “O Garoto de Charlot” com um lançamentos especial, nos cinemas nacionais, da versão restaurada desta obra de Charlie Chaplin.
Foi em 1921 que, no Carnegie Hall de Nova Iorque, estreou um dos filmes mais citados, mas nem sempre mais valorizados, na filmografia de Charlie Chaplin. Nem sequer visionados, com a devida atenção e contextualização histórica, pelos cinéfilos do mundo inteiro. Estamos a falar de uma pequena grande obra-prima intitulada THE KID, que em Portugal ficou conhecida como O GAROTO DE CHARLOT. Realizado, escrito e interpretado por Charlie Chaplin, e pelo igualmente pequeno grande “kid”, Jackie Coogan. Faz assim cem anos sobre aquele que ficaria, para a História do Cinema e para a história pessoal do seu argumentista e realizador, como o filme que estabelece de algum modo a ponte entre uma primeira fase da carreira de Charlie Spencer Chaplin, período dominado pela produção de muitas e diversas curtas-metragens, e o período que abriu a um dos ingleses mais bem integrados na indústria cinematográfica americana as portas para uma notável filmografia onde se destacam as suas imortais longas-metragens. No início, as citadas curtas eram “Two-Reelers”, filmes de duas bobines, e os assuntos eram os mais diversos. Os códigos genéricos da comédia prevaleciam sobre quaisquer outros, não obstante percebermos em alguns o desejo de crítica social, o comentário jocoso sobre as máscaras de uma sociedade hipócrita, onde os mais ricos desprezavam quase sempre os mais pobres. Foram produzidas para diversas companhias como a ESSANAY, a MUTUAL ou a FIRST NATIONAL, e facilmente encontramos entre elas algumas obras-primas. Só para citar as mais mediáticas, THE TRAMP (O VAGABUNDO), 1915, EASY STREET (CHARLOT NA RUA DA PAZ) e THE IMMIGRANT (O EMIGRANTE), ambas de 1917, e A DOG’S LIFE (VIDA DE CÃO), 1918. Este último foi já produzido numa altura em que o actor que ficou famoso na personagem do vagabundo, figura que ainda hoje permanece como a sua segunda pele, já não era um homem a lutar, pleno de ambições e desejo de sucesso, por um lugar ao Sol, mas sim um profissional com o poder artístico e financeiro plenamente adquirido e consolidado, ao ponto do seu estatuto lhe permitir fundar a UNITED ARTISTS ao lado de pesos pesados do cinema da época, pilares da futura indústria de Hollywood, como Douglas Fairbanks, Mary Pickford e David Wark Griffith.
Na verdade, podemos dizer que A DOG’S LIFE, primeiro filme verdadeiramente independente de Charlie Chaplin, distribuído pela FIRST NATIONAL, foi uma espécie de ensaio para THE KID. Onde no segundo se destaca a presença de um garoto, no filme anterior a atenção vai para um simpático cão. Pode parecer estranho, mas a relação de amor que a personagem do Tramp estabelece com o animal, apesar das suas óbvias diferenças, não deixa de ser um exemplo do modo como o realizador do futuro CITY LIGHTS (LUZES DA CIDADE), 1931, encarava a exposição no grande ecrã, por parte das suas personagens, daquilo que considerava serem os valores maiores dos que, mesmo vivendo sem grandes recursos, apostavam na solidariedade, nos melhores sentimentos e nas melhores intenções. Um humanismo defendido com alma e vigor por Charlie Chaplin. Filosofia de vida que nunca abandonou ao longo da sua carreira, apesar de alguns deliciosos e acutilantes “desvios”, como foi o caso do mais negro MONSIEUR VERDOUX (O BARBA AZUL), 1947.
No cartaz original de THE KID podemos ler a frase “6 REELS OF JOY”, ou seja, seis bobines de alegria, “JOY” que pode ser lida de igual modo como felicidade ou, porque não, prazer. Esta multiplicidade de sinónimos salienta bem o carácter geral da narrativa proposta. O GAROTO DE CHARLOT não é outro senão um bebé, que o dito Charlot encontra abandonado numa viela pouco recomendável. Naturalmente, não estava nos seus planos salvar a criança do seu destino infeliz, nem assumir a responsabilidade de o adoptar. Mas as circunstâncias geradas pela aproximação de várias personagens algo imprevistas e de um polícia vão precipitar os acontecimentos a favor de uma relação, inicialmente não desejada, mas posteriormente defendida com unhas e dentes. Todavia, Charlie Chaplin não se limita a produzir um melodrama de fazer chorar as pedrinhas da calçada. De forma magistral, logo na primeira sequência do filme introduz um dos conflitos narrativos mais poderosos desta comédia dramática, ou seja, nós, antes do vagabundo, ficaremos a saber, enquanto espectadores, porque e quando aquela criança foi abandonada. Primeiro pela mãe solteira que, ao sair do Charity Hospital, o Hospital da Misericórdia onde foi encerrada, consciente de não poder dar uma vida digna ao filho, fruto da relação com um canalha que a abandonou, o deposita no banco de um carro na esperança de uma família rica ficar com ele. Depois o veículo será roubado por dois ladrões e, esses sim, irão depositar a criança na viela, como se fosse um pedaço de lixo. No momento inicial em que a mãe demonstra o seu desespero, a realização não deixa de acentuar o facto com uma frase seca e certeira: THE WOMAN WHOSE SIN WAS MOTHERHOOD, ou seja, o único pecado daquela mulher foi a maternidade. E com estas palavras o filme diz logo ao que vem. Sim, iremos ver uma comédia, mas a narrativa proposta não esquece a natureza implacável e sombria de uma sociedade hipócrita, que em vez de defender o mais natural dos acontecimentos, o nascimento de um filho, pelo contrário, penaliza a mãe e deixa o “filho da mãe” do pai viver a sua vida. Como se as crianças fossem seres gerados pelo vento que passa.
O “kid”, passados breves anos e já crescidinho, passa a ser o companheiro de muitas e deliciosas aventuras concentradas na relação improvável pai/filho. Na verdade, os protagonistas complementam-se um ao outro na busca do sustento capaz de enganar ou aliviar as provações do seu mínimo patamar existencial. De antologia, a célebre sequência dos vidros partidos, que o fabuloso Jackie Coogan interpreta como se fosse um veterano, e não um muito jovem actor. Ele parte-os com pedradas certeiras e Charlot aparece a seguir para reparar as vidraças e ganhar uns cobres. Na prática, um entre muitos expedientes com que preenchem os dias e as noites, gerando situações que ora nos fazem rir, ora nos provocam uma lágrima ao canto do olho.
No final, os pressupostos sociais que ao longo do filme balizam as circunvoluções do argumento ficam ainda mais expostos. E, não obstante o final feliz, antecedido de uma fabulosa sequência onírica, digna de figurar em qualquer antologia do sonho na sétima arte, não podemos dizer que seja meigo o ponto de vista que esta produção defende nas entrelinhas, quando dá conta das contradições de uma sociedade, incapaz naquela época, como hoje, de pensar para além da sua zona de conforto num mundo mais justo e inclusivo.
Para assinalar o centenário desta obra-prima de Charlie Chaplin, a MIDAS FILMES estreia agora em sala uma nova versão, restaurada em 4K, proveniente da MK2, produtora, distribuidora e exibidora responsável por uma magnífica e muito completa colecção intitulada COLECÇÃO CHAPLIN (MK2 e Warner Brothers), editada há já alguns anos e plena de interessantíssimos extras. Dedicada, no essencial, aos filmes de longa-metragem do autor. Onde se encontra, precisamente, esta média-metragem, THE KID. Se a encontrarem por aí, não hesitem. Sem dúvida, constitui uma bela prenda de Natal.
Entretanto, a partir de 9 de Dezembro de 2021, para além de THE KID, ficarão igualmente disponíveis nos videoclubes da NOS, MEO, VODAFONE e NOWO, os filmes THE GOLD RUSH (A QUIMERA DO OURO), 1925, MODERN TIMES (TEMPOS MODERNOS), 1936, e THE GREAT DICTATOR (O GRANDE DITADOR), 1940. E a 16 do mesmo mês entram na plataforma FILMIN PORTUGAL. Penso que não seja necessário dizer que são obras fundamentais da História do Cinema.