Interpol (foto de Margarida Ribeiro)

Nos Primavera Sound 2019 | Interpol transfiguram os destroços dos Fucked Up

Na segunda noite do Nos Primavera Sound, com a subida ao palco de J Balvin, houve quem fugisse, procurasse e encontrasse o que é bom, lá bem longe, no palco Seat.

No palco NOS, o segundo dia abriu com Aldous Harding. Já com dois álbuns, Aldous lançou, este abril, Designer, um álbum que se afastou um pouco dos seus trabalhos anteriores, abandonando algumas tendências mais experimentais e oferecendo uma versão mais palatável da sua sonoridade. E veio a Portugal apresentá-lo no Nos Primavera Sound, num concerto onde este disco tão bem recebido pela crítica marcou forte presença. Se as canções agradavam, já o seu desempenho teatral deixava um pouco a desejar, mesmo pensando que estaria na linha do surrealismo do vídeo de “The Barrel”. Qualquer coisa de alienante se difundia e instalava no palco, com o seu robótico mover-se, as sobrancelhas franzidas, as caras estranhas, os olhares longínquos e arregalados, a boca a metamorfosear-se em inúmeros esgares, entre as quais talvez avulte um sorriso.

Mas a verdade é que a música é para se ouvir e, se todo este espetáculo visual incomoda, há sempre a opção de desfrutar do cenário verdejante deste festival e, com a mochila debaixo da cabeça, deitarmo-nos simplesmente na relva, a aproveitar o final de tarde soalheiro. O problema é quando a própria componente auditiva está a chegar intermitentemente. Foram várias as vezes em que Aldous Harding se viu obrigada a parar o concerto em busca de um momento em que o volume do concerto dos coreanos Jambinai não interferisse com o suave dedilhar de guitarra ou as subtis intrusões nos teclados.

O número de pessoas no festival era substancialmente maior do que no do dia anterior, tendo acabado por se espalhar pelas colinas do Parque da Cidade, encarando aquele folk de Aldous Harding mais como um bom aperitivo de final da tarde do que um convite a todos os nossos sentidos (isso seria mais tarde). Excepto, claro, aquela pequena massa encostada às grades que se manteve sempre em pé e a aplaudir a artista entusiasticamente.

Nilüfer Yanya no Nos Primavera Sound 2019
Nilüfer Yanya no Nos Primavera Sound 2019 (© Margarida Ribeiro)

Nilüfer Yania entrou em palco sob um enérgico dedilhar de guitarra elétrica. Terminada a primeira canção, seguiu-se o aplauso caloroso, sorriu-nos e cumprimentou-nos. A sua voz de contralto soul emergiu mais rouca e arrastada ainda. Sorria, mas forçadamente. Explicou-nos então que estava doente, deduzindo que já o tivéssemos percebido. A verdade é que nem eu, nem a grande parte dos que me rodeavam ali ao pé das grades, nos apercebêramos disso. Aquela sua voz sincopada, de tom bastante baixo, a chegar mesmo a puxar pelo aspeto atraente da rouquidão, não parecia de todo afetada pela gripe.

Começando por admitir que não a tocava muitas vezes, Nilüfer fez soar os primeiros acordes de “Paradise”. Estamos perante uma sonoridade bem característica. Uma batida muito marcada e guitarras de agressivo staccato marcam o seu álbum deste ano, tendo conquistado a nossa atenção. Não deixa de ser impactante ouvir este tipo de sonoridade ao vivo. Habituados a melodias de embalo que nos fazem dançar sem sequer pensar, o pop/R&B de Nilüfer Yanya gerou, inicialmente, um certo imobilismo no público. É tão próprio que até o modo como o ouvimos ao vivo diverge de qualquer outro concerto. Num processo de adaptação, a plateia foi-se descobrindo a marcar o ritmo com a cabeça, com as mãos a bater nas pernas, sem grandes bamboleios. O poder estava todo ali na batida sincopada e enérgica.

Nilüfer parou várias vezes, ora bebendo chá, ora simplesmente ganhando forças, para se atirar à música seguinte. Era claro que estava a fazer um enorme esforço, e o público tentou ao máximo mostrar que o reconhecia. Gerou-se uma empatia entre a cantora que, não obstante as múltiplas paragens, atacava a música com uma garra e energia surpreendentes, dando tudo o que tinha. E aquela plateia entusiasta, grata pela dádiva em suor e lágrimas, só não cantava mais com ela porque a cadência ali é realmente difícil de acompanhar e mais vale deixar para quem sabe.

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Mal acabou o concerto no Super Bock, corri para não perder pitada da Courtney Barnett no palco principal, onde a dimensão do público era realmente avassaladora. Quando, já bastante bem posicionada, olhei para trás, surpreendi-me com a massa incomensurável de gente que aguardava a australiana. Assim que entrou em palco, Courtney foi recebida efusivamente. Numa postura de total descontração, cheia de à vontade, dá passos largos, agarra convicta na guitarra e encara o público com um sorriso confiante. Claro, nada melhor do que começar com a “Avant Gardener”. A plateia tentou acompanhá-la mas há qualquer coisa naquele arrastar, que só ela (e o Kurt Vile) dominam, torna-se difícil de reproduzir. Mas bastou chegar o refrão, “I’m having trouble breathing in”, para nos fazermos ouvir e arrancar dela um sorriso.

Courtney deu espetáculo, mesmo para quem não aprecie o seu trabalho em estúdio. Não há dúvida que foi um dos concertos de eleição. Com os seus ímpetos vorazes, saltava para o topo das colunas do palco e, nos seus solos estrondosos, agarrava a guitarra de todas as formas possíveis, dominando-a na perfeição. Num ano onde no cartaz abunda o pop/R&B, não deixa de ser apaziguador sentir o peso do rock, as suas guitarras, baixos, baterias e aquela avidez que, no caso de Courtney, não retira às suas canções o tom relaxante e até tranquilizador.

Courtney Barnett no Nos Primavera Sound 2019
Courtney Barnett no Nos Primavera Sound 2019 (© Margarida Ribeiro)

Sem grandes conversas, Courtney lembrou o romantismo do pôr do sol, só para anunciar logo, rapidamente, que “the moment is gone”. Soltando uma gargalhada e regressando ao registo rockeiro, incentivou-nos a cantar com ela o refrão de “Crippling Self Doubt and a General Lack of Self Confidence”, como orgulhosamente referiu. Um público maioritariamente masculino, bastante bem instruído na sua música, seguia Courtney Barnett, correspondendo às suas palmas e olhando com admiração a cantora de 31 anos. O pôr do sol foi assim, desta vez, passado no palco principal, não num ambiente recatado e íntimo mas com um público heterogéneo, podendo arriscar dizer que foram poucos os que vieram ao segundo dia do festival e não marcaram presença neste concerto.

Entretanto começou a corrida pelo jantar, longas filas, muito tempo à espera, procura de mesas para sentar. Mas, pela nossa parte, houve tempo para jantar com calma e repor energias, num dia de festival que ainda mal começara. Eram ainda dez quando se começaram a juntar as pessoas no palco Seat, o único que assenta sobre alcatrão. Era a vez do punk e pós-hardcore dos Fucked Up. Colámo-nos às grades, prontos para o que aí viesse. Não começou mal. Como já tinham anunciado, a banda da escola de rock de Coura abriu o concerto. Cerca de cinquenta miúdos, rapazes e raparigas, com guitarras, baixos, violinos ou simplesmente o instrumento da voz, reproduziram faixas dos Fucked Up. Foi um momento grandioso, que abriu o concerto numa nota divertida, com Damian Abraham a entrar a meio para acompanhar os miúdos com a sua alta energia e calças que teimavam em escorregar.

Não tardou que a banda infantil fosse substituída pelos membros dos Fucked Up, a atacar ferozmente, sem demoras, os instrumentos. Guitarra, baixo, bateria, lá estava a tripla. Foi estrondoso. A eclosão do som nas colunas era avassaladora. Uma conjugação de sons que se juntavam num só, um ruído que soava a unidade, novamente uma experiência sonora que ultrapassa quaisquer auriculares.

Fucked Up no Nos Primavera Sound 2019 (Margarida Ribeiro)
Fucked Up no Nos Primavera Sound 2019 (© Margarida Ribeiro)

A voz era só mais um som naquele aglomerado de ruído que nos entorpecia os ouvidos e enlouquecia. Em bramidos que vinham do interior, Damian Abraham corria num desvairo, a restante banda acompanhava-o, a anarquia era total, mas naquela sobreposição de instrumentos transparecia uma ordem inexorável. Cá em baixo a loucura era geral, começou no primeiro instante e nem no final do concerto se desvaneceu totalmente. Não faltava o mosh pit da praxe e que seria de mim se não passasse um pouco por este lugar de insanidade total, mesmo se este não era de todo necessário para aproveitar totalmente aquele concerto, bastava estar ali. Ser parte daquela multidão, que tal como a sonoridade transcendente que saía das colunas, não passava de um caótico aglomerado capaz de formar um todo, naquele que é o sublime mundo do hardcore.

Já ressoavam as 23:15 quando me encontrava de t-shirt no Seat, ainda absorvida por aquela energia e com aquela sensação de que ainda há mais. Sim, é verdade, ainda faltavam os Interpol. Foi nesta altura que me dei conta do frio e percebi que chegara a hora de me esgueirar até chegar algures perto do palco, entre o centro, onde Paul Banks canta estático, e a ponta esquerda, para onde tende e de onde se afasta continuamente Daniel Kessler, em passos de dança, agarrado à sua Gibson. Foi aí que aguardei pelo concerto dos Interpol.

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O palco era o mesmo mas no compasso de espera deu-se uma transfiguração. Sem que se notasse, tudo mudou em redor. A juventude enérgica que andara aos encontrões no concerto anterior fora, de um momento para o outro, substituída por elementos mais velhos, que não vinham contudo sozinhos. Eram pais e filhos que ali estavam, unidos por uma banda que já quase perfaz duas décadas. Se antes o ambiente era de unidade, agora soava familiar. Foi também uma imensa sensação de familiaridade que transpareceu na entrada da tão aguardada banda norte-americana. De cabelo impecavelmente penteado, fatos engomados e postura resoluta, vimos os Interpol entrar e foi com um aplauso assombroso que os cumprimentámos. Um palco que Damian Abraham descompusera transfigurava-se também, avultando agora daquela classe que não entedia, mas nos faz desejar ser um deles.

“C’mere” iniciou o concerto numa atmosfera tão grandiosa quanto atrativa, com a banda a prestar assim honras a Antics, que celebra este ano o seu décimo quinto aniversário. A bola de espelhos, que já antes chamara a atenção no concerto de Jarvis Cocker, dardejava as alvas luzes em todas as direções. O público já ondulava e acompanhava o sereno vocalista na letra da canção. Foram vários os fantasmas do passado que assomaram neste concerto. “PDA” e “Say Hello to the Angels” de Turn On the Bright Lights, de 2002, foram amplamente recebidos. Todos sabíamos as letras, e os mais novos mostravam assim não desprezar o passado, cantando a plenos pulmões ao lado dos mais velhos, que os encaravam num misto de pasmo e orgulho. Lá em cima, no palco, Paul Banks, de olhar blindado pelo habitual par de óculos escuros, mantinha o seu pausado ritmo, enquanto colunas de luz branca se formavam imponentes.

Mas a geração mais antiga não ficou atrás da exibição dos mais novos e revelou estar a par dos acontecimentos. Quando chegou a vez de temas de Marauder e do novo EP eclodirem pelas colunas, não eram só os mais novos que cantavam, o uníssono era geral. Ao som do segundo tema do alinhamento, “If You Really Love Nothing”, a voz do público soou afinada e coordenada. “Fine Mess” e “The Rover” foram igualmente entoados por todos. A fusão entre gerações era total, com os Interpol a conseguir estabelecer uma notável ponte entre novas e antigas sonoridades, desfazendo qualquer efeito de abismo geracional sugerido pela presença de pais e filhos.

Interpol no Nos Primavera Sound 2019
Interpol no Nos Primavera Sound 2019 (© Margarida Ribeiro)

Ninguém aqui desconhece que de Paul Banks se deve esperar apenas a declamação vívida e precisa da música, enquanto dedilha infecciosamente uma guitarra. Se a sua expressão corporal é parca, é por concentração e coerência com a sonoridade, numa imersão naquela atmosfera procurada por todos os que ali se juntaram. Não é só o ambiente no público que é familiar, os próprios Interpol também são familiares. Tudo conjuga, como se percebe pela imediata e alargada adesão do público, que em temas como “Evil” ou “Take You On a Cruise” reagiu desprendida e entusiasticamente. Furor para o qual Daniel Kessler deu também o seu contributo, destacando-se em “Rest My Chemistry” com a sua energia cativante, que converte em momentos de dança e arranques de guitarra, ou mesmo pequenas derivações com as quais o público rejubila.

Foi seguramente o momento alto do dia, pelo menos para quem lá esteve. Do começo ao fim do concerto, iam-se ouvindo um pouco por todo o lado elogios ao poder e à força da música dos Interpol, até sob a forma dos que aproveitaram cada momento mais silencioso para gritar um “Louder!”, rouco e indistinto no meio de toda aquela carga energética a que fomos sujeitos. A verdade é que, neste segundo dia do Nos Primavera Sound, a noite aconteceu no palco Seat. Primeiro os Fucked Up, depois os Interpol, um poder sonoro que nos trouxe a loucura e o sublime daqueles velhos tempos que muitos de nós gostaríamos de ter vivido e nos eram agora oferecidos em toda a sua imorredoura pujança.

James Blake no Nos Primavera Sound 2019
James Blake no Nos Primavera Sound 2019 (© Margarida Ribeiro)

Após a hipérbole pitoresca e de gosto duvidoso de J Balvin, o Palco NOS recebia um homem que fala por entre silêncios e que se move por terrenos minimalistas e afetuosos: o britânico James Blake. “Assume Form”, a faixa homónima que abre o seu quarto trabalho de originais, é o ponto de partida para um concerto que nos provocou sensações nunca experimentadas em qualquer outro espetáculo de Blake. O britânico agora sorri, enfrenta a audiência de frente, é capaz de cantar despido de instrumentação sombria e emociona-nos com sopros de alegria que outrora foram de desalento. Sim, James Blake é um homem diferente, o seu mais recente novo álbum já nos trazia essa boa nova, mas ao vivo tudo é mais impactante e profundamente real.

Num concerto com pouco mais de uma hora, James Blake dedicou cerca de metade do seu alinhamento a vários temas de Assume Form, incluindo as várias colaborações com Travis Scott e Metro Boomin, em “Mile High”, Andre 3000, em “Where’s the Catch?”, e Rosalía, em “Barefoot in the Park” – a ausência da catalã em palco foi talvez o motivo de maior desapontamento de todo o espetáculo. No seio desses novos temas, surge um momento de particular comoção quando Blake interpreta “Are You in Love?”, acompanhado levemente por uma guitarra que, em registo minimal, exultava a sua voz límpida e imutável. O cupido foi implacável.

Os clássicos “Life Round Here”, “Retrograde” ou “Limit to Your Love” também se fizeram ouvir, ao qual se seguiu um delicioso interlúdio tecno em “Voyeur” e “CMYK”, mas o que sobressai mais desta passagem de James Blake pelo NOS Primavera Sound é a forma como as suas novas canções (apresentadas quase todas elas com roupagens diferentes das versões de estúdio) se encaixam de forma harmoniosa na (romântica, melancólica e, por fim, alegre) narrativa que Blake nos quer contar.

Reportagem de Margarida Seabra e Daniel Rodrigues.

Fotografia de Margarida Ribeiro.

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