Let's Eat Grandma (foto de Margarida Ribeiro)

Nos Primavera Sound 2019 | Let’s Eat Grandma comem a avó e os capuchos de chuva

No primeiro dia do Nos Primavera Sound, o temporal só estragou a festa de quem quis. Pôr-do-sol com Men I Trust, Miya Folick ao crepúsculo e Let’s Eat Grandma já nas estrelas. 

Eram já seis e meia e o temporal não amainara nos campos verdes do Nos Primavera Sound. A chuva viera ao fim da manhã e, salvo pequenos momentos, ainda não tinha parado. Quando a multidão se começou a formar para o concerto dos Men I Trust estávamos num desses momentos fortuitos, o céu cinzento, a multidão encolhida nos impermeáveis, a cabeça protegida pelos capuchos, tudo porque o regresso da chuva estava eminente.

A banda apareceu mal soaram as 18:50 e, entre sorrisos e saudações, iniciaram o concerto. O som a que estamos tão bem habituados soou logo clara e distintamente nas colunas. Não duvidara estar perante os Men I Trust quando os vi entrar, mas agora, absorvida por aquela sonoridade, a certeza apoderou-se de mim e de todos. Envolvidos por aquela atmosfera ligeira, porém potente, não demorou muito até a plateia ondular em sintonia. O céu mantinha-se cinzento, os impermeáveis vestidos, mas a sensação de frio, vinda da roupa encharcada, desaparecera.

Men I Trust no Nos Primavera Sound 2019
Men I Trust no Nos Primavera Sound 2019 (© Margarida Ribeiro)

Emmanuelle Proulx, de casaco comprido azul escuro, era exactamente o que imaginamos quando a ouvimos. Sempre calma e sorridente guiava a música com a sua voz rouca e suave. Foi por esta altura que as nuvens deram lugar ao sol. O globo luminoso urgiu já não muito alto no céu, mas forte o suficiente para nos bater de lado e desenregelar o rosto e os ossos com o seu calor. Os membros da banda, lá em cima, trocavam constantemente sorrisos entre eles e connosco, sempre naquele ritmo moderado mas vibrante. Entre sol e nuvens, num ambiente de total descontração, tivemos direito a um final de tarde com um pôr do sol que relembrou o verão.

Ainda não anoitecera completamente quando nos juntámos à audiência do Pull & Bear, que, ansiosa, esperava por Miya Folick. Era uma plateia bastante heterogénea, desde grupos de raparigas nos seus vinte anos e casais até àqueles suspeitos do costume que já somam várias edições do Primavera Sound. “We fucking love your city!” gritou-nos Miya ao entrar em palco com uma camisola a dizer Porto. Era vermelha e condizia com o seu cabelo curto, desta feita em tons vermelhos rosados. Apesar de ter sentido o frio, Miya estava a adorar estar no Porto e atacou a primeira música com uma voracidade surpreendente. Para grande surpresa da plateia, que partilhara a sua opinião sobre a temperatura, bastou desvanecerem-se as últimas notas de “Premonitions” para que tirasse a sweatshirt com que nos elogiara, ficando apenas de top. Miya assumiu uma postura séria, um tanto altiva, sem grandes sorrisos no final das canções, sempre concentrada no que fazia.

Miya Folick no Nos Primavera Sound 2019
Miya Folick no Nos Primavera Sound 2019 (© Margarida Ribeiro)

De uma forma mais ou menos intencional, os temas oscilavam entre picos de energia e instantes mais sonhadores e comedidos. Em “Cost your Love”, Miya deu uso à dimensão do palco percorrendo-o de uma ponta à outra. Dançava, sentava-se, levantava-se, apontava para a plateia aos saltos e incentivava as palmas. Ao lado, o guitarrista e o baixista acompanhavam-na no frenesim. Saltava-se em cima do palco, saltava-se cá em baixo. Escondidos pelas árvores do parque, longe dos restantes palcos, indiferentes à agitação que se formava por se aproximar a hora de jantar, aquele grupo de pessoas estava absorvido nas batidas infecciosas e nos crescendos explosivos dos refrães. Mas já “Thingamajig” começou tranquila e suave, num fio de voz vibrante, no centro do palco. Com gestos suaves, Miya entorpeceu-nos os olhos, para que pudéssemos passar pela experiência auditiva de a ouvir chegar às notas mais altas. Sem pressas, percorreu a música debaixo dos olhos atentos de um público zeloso que via a sua silhueta por entre luzes incandescentes e fumo branco.

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Miya sorriu e decidiu vir falar connosco. Disse-nos que a próxima música seria um cover da Joni Mitchell, “Woodstock”. Era sobre o início dos festivais, porque antes não era assim. Antes as pessoas não se reuniam em enormes grupos para passar vários dias a ver uma série de artistas diferentes. “Estamos a viver tempos maravilhosos”, declarou-nos confiante Miya. Tem razão ela. Mesmo com toda a imperfeição que subjaz no mundo, ou até mesmo por causa dela, que haja um espaço onde artistas e ouvintes se reúnem e comungam o seu gosto pela música é de facto espantoso. Quem o aproveita está de facto a viver um “tempo maravilhoso”.

“I want to be out of control”, dizia-nos antes Miya num comedido grito de libertação e agora chegara a hora de corresponder a este íntimo desejo. Novamente, mais dois temas carregados de energia ressoaram imponentes. Pouco antes de findarem, os membros da banda que a acompanhavam saíram de palco, deixando Miya sozinha. Chegara à altura de nos apresentar um tema novo. Sentou-se na borda do palco, fazendo-nos reparar, de repente, que ficara escuro e como fora engraçado passarmos juntos por esta mudança. Depois de sintonizar a guitarra, começou.  Foram sete minutos de absoluto silêncio e concentração por parte do público, com a sua voz a soar ainda mais voraz e mesmo hipnótica. Foi assim que Miya se despediu de uma plateia que se mantivera fiel e consistente, apesar dos concertos de Mormor e Jarvis Cocker já terem entretanto começado.

Jarvis Cocker no Nos Primavera Sound 2019
Jarvis Cocker no Nos Primavera Sound 2019 (© Margarida Ribeiro)

No palco NOS tocava agora Mormor. Já no Seat, na ponta oposta do recinto do festival, como seria de esperar, o concerto de Jarvis Cocker estava cheio. A multidão parecia bastante animada, a temperatura não era a mais agradável mas já nem se pensava em usar impermeável. Jarvis Cocker relembrou a sua última visita a Portugal em 2011, no Paredes de Coura, tendo-se já nessa altura surpreendido com a quantidade de pessoas que estavam no concerto. Às primeiras notas da música seguinte, pingos de chuva – daqueles bem gordos com três dos quais se fica já ensopado – começaram a cair descontroladamente e, como reação, um fluxo de gente a correr abandonou o concerto. O icónico líder dos Pulp, aqui a solo, apercebeu-se do sucedido e quis mostrar simpatia pelos que decidiram ficar (provavelmente os mesmos que puseram os braços no ar quando perguntou quem fora ao seu concerto há oito anos). Assim, desceu do palco e pôs-se a provocar alguns membros do público que se encontravam nas primeiras filas. A multidão achou piada e cantando à chuva, Jarvis conseguiu reter a plateia até ao final da atuação.

À hora dos Stereolab subirem ao palco, lá estávamos para os receber. Só mesmo para isso porque o horário inclemente do festival depressa nos levaria para outras bandas (o trocadilho não foi intencional). Juntámo-nos às vozes que, ao som de entusiásticos aplausos, simpaticamente os acolhiam gritando “ Welcome back!”. Deu para ouvir as duas primeiras canções, que prometiam mais um concerto memorável da banda, mas o concerto das comilonas de avozinhas chamavam-nos e tivemos de, pesarosamente, abandonar apressados o palco Seat.

Stereolab no Nos Primavera Sound
Stereolab no Nos Primavera Sound (© Margarida Ribeiro)

De facto, as Let’s Eat Grandma eram o nosso mais aguardado concerto da noite. Ainda assim, aquelas duas miúdas de 20 anos, amigas a viverem juntas o sonho impossível de fazer música, conseguiram superar as nossas já bem elevadas expectativas. Ambas de cabelo solto, encaracolado e volumoso, sorridentes, completamente sintonizadas, as suas vozes fundiam-se numa só. Uma de calças, a outra de saia, cada uma na sua ponta, cada uma com o seu sintetizador, as suas vozes alternavam. “Hot pink” abriu logo o concerto. Jenny Hollingworth e Rosa Walton sorriam animadas mas não se deixavam desconcentrar, mantendo aquela postura de quem está focado em que tudo saia bem. E estava a sair muito bem, com o público a juntar-se a elas num “Hot pink” bem demarcado.

Não havia tempo a perder, as músicas seguiam-se ininterruptamente, uma após outra sem que o público tivesse tempo para pensar no que se estava a passar, comidos por aquele ritmo e energia. Jovens, adultos e até avós (ou assim me pareciam, vistos aqui deste lado do milénio) todos acompanhavam as duas amigas, numa movimentação que não dava tréguas ao frio e arrancava os últimos capuchos.

Ora Rosa, ora Jenny chegavam-se à frente, largavam o sintetizador e, num gesto libertador, afastavam os fios do microfone cantando para nós. Enquanto Jenny percorria a melodia em voz de anjo moderno, Rosa deixava o seu cabelo encaracolado cobrir-lhe a cara e tocava energicamente as teclas do sintetizador. Chegava a vez de assumir Rosa o microfone. Fitando sorridente o público e cantando energicamente, enquanto Jenny desaparecia do palco e aparecia cá em baixo a saudar o público, sempre naquele passo infantil e saltitante. Já juntas em palco, entoavam um “It’s not just me” que fazia o público rejubilar. Noutros momentos, tingidas de uma robusta luz vermelha, as suas vozes fundiam-se num bramido “I wanna be bold and unaffected”, ou num grito de desolada esperança por algo que poderá nunca vir em “I will be wating”.

Let's Eat Grandma - Nos Primavera Sound 2019
Let’s Eat Grandma no Nos Primavera Sound 2019 (Margarida Ribeiro)

Não prescindiram de uma constante interação uma com a outra, em danças alusivas àquelas brincadeiras com as mãos que, em pequenas, fazem todas as raparigas. Houve espaço para coreografias improvisadas, mas também para a Macarena, que no momento pareceu estranhamente adequada. Quando as vi deitarem-se no chão fui assombrada por sentimentos contrastantes. Por um lado, rejubilei com a vinda da “Donnie Darko” mas, por outro, desolou-me o prenúncio de que o concerto estava a chegar ao fim. O público sabia bem que um dos melhores momentos se avizinhava e até mesmo os que se preparavam para sair e ir ver a Solange pararam para ver. Chegada às estrelas, não tinha mais para onde viajar. Repousando nelas, abandonei o recinto, cheia do calor da memória do que já vira e da esperança do que estava para vir.

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