O alegórico "O Casaco Rosa" integrou a Competição de Curtas 3 |©MONSTRA

MONSTRA 2023 | Competição de Curtas 3, em análise

A MONSTRA 2023 decorre em Lisboa entre os dias 15 e 26 de março, em salas célebres como o Cinema São Jorge ou a Cinemateca. Continuamos a mergulhar na programação, e desta vez analisamos uma seleção rica – a Competição de Curtas 3. 

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A Competição de Curtas 3 continua a ‘tradição’ de sessões de curtas bem-equilibras, quer falemos de temáticas ou estilos de animação, apresentando um conjunto variado de 7 curtas, todas elas vindas de diferentes proveniências e exibindo estilos de animação bem distintos.

A nível tonal, estes pequenos filmes diferem também significativamente, de curtas adequadas aos mais novos, que poderiam constar da programação da MONSTRINHA até alegorias políticas e narrativas de arrepiar a espinha.

COMPETIÇÃO DE CURTAS 3 – ESFOLADO (FRANÇA, 2022, 15′)

Competição de Curtas 3 MONSTRA
“Esfolado” na Competição de Curtas 3 |©MONSTRA

Num edifício abandonado no meio do pântano vivem duas gémeas siamesas. À noite, uma delas tem pesadelos aterradores em que vê a carne da irmã a cobrir-lhe o próprio corpo…

No dia 22 de março, e na Sala Manoel de Oliveira, pelas 19h00, arrancou a Competição de Curtas 3, com uma curta francesa capaz de marcar esta sessão através da alta componente bizarra aqui apresentada.

Não fosse o título “Esfolado” já sintomático do tipo de conteúdo que aqui viríamos a encontrar, a verdade é que esta curta é bem mais tenebrosa que a maioria de filmes presente na seleção de 35 filmes que compõe a competição da curtas da MONSTRA em 2023.

Escrito e realizado por  Joachim Hérissé, “Esfolado” apresenta-nos uma espécie de entidade siamesa, uma delas satisfeita com a sua situação profundamente interligada e a outra profundamente inquietada, atormentada com pesadelos nos quais se vê coberta pela carne da sua irmã. Sedenta por libertação, durante um dos seus pesadelos acaba por se separar forçosamente da sua outra metade, que fecha no quintal. Assim, procede a viver em harmonia com os seus coelhinhos, ao invés de os esfolar e comer. Rapidamente estabelece uma profunda cumplicidade com um pequeno coelho, dormindo até abraçada ao pequeno animal. Todavia, a harmonia não havia vindo para ficar.

“Écorchée”, no original, pede emprestados vários códigos do terror para construir uma curta tenebrosa e que depende, em grande parte, dos contrastes entre preto, branco e vermelho vivo, cor de sangue. Extremamente gótico em natureza, “Esfolado” vence ainda através do seu uso invulgar do stop-motion e animação de volumes. Com materiais realistas utilizados para a criação das personagens, inicialmente conseguiríamos imaginar motivos mais alegres associados a estes materiais. Todavia, esta curta-metragem subverte expectativas e lança-nos para um mundo de bizarria, ainda assim munido de um grande valor de choque e emotividade.

E se o ponto de partida desta curta é invulgar e tenebroso, fica apenas aquém do seu imprevisível e horrífico desenvolvimento, digno de um conto de Edgar Allan Poe, e particularmente capaz de não cair no fácil esquecimento entre o sem fim de curtas que vemos, ano após ano.

Um pesadelo metafórico e reflexivo, “Esfolado” não é senão memorável, e muito mais negro do que poderíamos esperar. Um especialista em animação 3D, que trabalhou nesse formato para vários estúdios, o realizador Joachim Hérissé “cansou-se” do formato e decidiu regressar ao tradicional. Deste lado, saudamos a audácia deste criador!

Nota: 90/100




PELO AR (POLÓNIA, 2021, 8′)

Competição de Curtas 3 MONSTRA Airborne
“Airborne” |©MONSTRA

Airborne é um encontro surreal entre o mundo da natureza e as máquinas voadoras. Durante um voo psicadélico sem limites, até uma agressão pode transformar-se em amor.

A sessão continua, num estilo bem distinto, à medida que evoluímos do narrativo para o mais conceptual e de uma história mais longa para uma mais sucinta e assente na própria valorização dos elementos de animação.

“Airborne”, traduzível em português para “Pelo Ar”, é uma curta-metragem da autoria de Andrzej Jobczyk que se pauta pela sua capacidade reflexiva, acerca de elementos essenciais como a relação entre a humanidade e as máquinas de guerra – tão impressionantes quão terríveis e temíveis. Aqui, estabelece-se também uma conversa em torno das criações feitas pela mão humana e a nossa relação modificada com a natureza e o meio natural.

Em entrevista a um meio de comunicação polaco, o realizador admitiu o seu fascínio pela aviação, algo que salta bastante à vista ao longo desta pequena curta. Aqui, o híbrido entre a natureza e a máquina ganha forma, e uma forma visualmente capaz e sedutora.

Nota: 75/100




SERRA (ESTÓNIA, 2022, 16′) 

Sierra curta competição de curtas monstra
“Sierra” |@MONSTRA

Pai e filho estão a perder uma corrida. Para tentar vencer, o rapaz transforma-se num pneu. Sierra é um filme vagamente inspirado na infância do realizador, que nos leva ao mundo surreal dos carros de corrida.

Um dos filmes desta Competição de Curtas 3 que tivemos o prazer de ouvir apresentado, em sala, pelo seu realizador Sander Joon, “Serra” é uma pequena maravilha de 16 minutos de duração onde se casa a nostalgia pela infância com a pura imaginação sem limites.

Convenhamos, uma história acerca da amizade entre pai e filho, assente numa paixão partilhada por corridas de automóveis, dificilmente parece o tema perfeita para uma narrativa dinâmica, única e divertida. Mas é isso mesmo que nos espera em “Sierra”, um festim de cor, intercalado com filmagens analógicas a preto e branco, e onde alguns pontos altos da história incluem sapinhos a partilhar um baloiço ou um rapazinho que se transforma num pneu para desgosto da sua mãe.

“Serra” chegou à shortlist nas nomeações aos Óscares em 2023 e, embora não tenha chegado aos 5 finalistas da categoria, sem dúvida consideramos que Sander Joon tem muitas outras histórias a partilhar connosco em anos vindouros.

Nota: 80/100




QUANTO A NÓS (ITÁLIA, 2022, 5′) 

Curta-metragem Quanto a Nós MONSTRA
©MONSTRA

A história desenvolve-se, a escuridão molha-nos a roupa.

Visualmente impactante, “Quanto a Nós” é uma curta que depende, em grande parte, da força da sua animação, e que não consegue nunca tornar-se memorável do ponto de vista narrativo. Por isso, três dias depois de ser vista, esvazia-se já da memória.

Com realização e argumento do animador Simone Massi, “Quanto a Nós”  destaca-se através de um estilo de animação interessante, a evocar o desenho a carvão, e que, perante uma pequena pesquisa, revela ser transversal a toda a obra do realizador italiano.

Nota: 65/100




CASA (KOSOVO, 2022, 7′)

MONSTRA 2023 CASA
©MONSTRA

Podemos encontrar conforto em coisas que nos envergonham, nos prendem e nos prejudicam. Sair desta zona de conforto pode ser difícil, ainda mais se tiver um poltergeist a segui-lo a toda a hora…

De uma proveniência menos usual, “Casa” é uma curta-metragem de animação produzida no Kosovo e que nos apresenta uma peça metafórica e que, através de um traço delicado e acções com várias significações, resiste à fácil categorização. Um filme que podemos interpretar de várias formas, devido à sua forte componente alegórica, “Casa” chega através da mão e mente de Flaka Kokolli, uma talentosa realizadora que estudou em Budapeste e que fundou posteriormente o estúdio criador desta animação – o Studio Pink-i.

Como obra, “Shpija” (2022, nome original), merece também reconhecimento por ter sido o primeiro trabalho levado a cabo por este novo estúdio.

Nota: 70/100




COMPETIÇÃO DE CURTAS 3 – SUZIE NO JARDIM (REPÚBLICA CHECA, 2022, 13′) 

Suzie no Jardim na MONSTRA
“Suzie no Jardim” |©MONSTRA

Suzie é uma pequena menina loira que vai com a mãe e o pai para fora da cidade. Um dia, conhece um cão negro e descobre um jardim misterioso. Quem é que lá vive? Suzie tem um pouco de medo, mas o que fazer quando se tem medo de alguém, mas se encontra a sua chave perdida no meio do caminho?

Não temos nada contra “Suzie no Jardim” (que recebeu uma Menção Honrosa na cerimónia de encerramento de 25 de março) uma curta deveras mágica e imaginativa, capaz de recriar, de forma fiel, o raciocínio e os mundos encantados povoados pela mente de uma criança. Todavia, não deixamos de acreditar que a animação de Lucie Sunková, que se distingue através de um estilo muito simples e clássico, a evocar a mais tradicional das animações, merecia antes entrar na secção MONSTRINHA (aliás, “Suzie no Jardim” realmente integrou a secção dedicada aos mais novos, mas defendemos que poderia ter ficado só por aí).

A curta que aqui se apresenta é pautada, do início ao fim, pelo poder da mente de uma criança e também narrada desse mesmo ponto de vista. É perfeitamente antagónico quando comparado, por exemplo, com os temas pesados de “Esfolado” ou de “O Casaco Rosa”, que viria a fechar esta sessão. Embora bonito, achamos “Suzie no Jardim” demasiado desprovido de leituras complexas para se enquadrar nesta Competição de Curtas 3, tão repleta de filmes pejados de nuance e alegoria. Contudo, as suas evidentes qualidades técnicas sem dúvida serão responsáveis pela sua inclusão nesta seleção.

Nota: 65/100




O CASACO ROSA (PORTUGAL, FRANÇA, 2022, 9′)

O Casaco Rosa na MONSTRA
©MONSTRA

Um filme musical político sobre Rosa Casaco, inspector da polícia, durante o regime fascista português. No conforto doméstico, o Casaco Rosa conspira e tortura, com recurso à linha e costura, contra os opositores do sistema.

Uma curta-metragem da autoria de Mónica Santos que resulta de uma co-produção entre Portugal e França, “O Casaco Rosa” é muito mais português que francês na sua natureza temática, como obra extremamente política que recupera o reino de terror do Estado Novo e a impunidade por parte dos membros que compunham o seu executivo e forças de autoridade cuja intervenção se pautava pela brutalidade.

Mais especificamente, a curta fala do reino de terror de Rosa Casaco, e a partir daí estimula um conjunto de trocadilhos acerca dos seus atos como inspector do Estado Novo. À primeira vista, as cores coloridas, o stop-motion, os trocadilhos constantes, podem soar um pouco infantis e até despropositados. Mas à medida que esta curta musical animada vai progredindo, compreendemos o quão negro é verdadeiramente o teor da história. As metáforas leves, em torno de costura e lides domésticas ecoam os valores do Estado Novo e tornam a metáfora mais forte e coesa. “O Casaco Rosa” é incrivelmente inteligente em toda a sua simplicidade. Pode parecer tosco na superfície, mas alguns dos seus versos são capazes de regelar os nossos ossos.

Para além da sua alegoria política, não podemos deixar de celebrar as cores vibrantes que fazem este “O Casaco Rosa”, uma obra invulgar e que orgulhosamente exibe a sua estrutura distinta. Dentro do universo das narrativas acerca do Estado Novo e da PIDE, não nos apresentar uma colagem de imagens a preto e branco, oriundas dos anos 50 a 70, intercaladas com relatos verídicos, mas sim algo completamente diferente, é de facto louvável.

O filme retrata também, na perfeição, a negligente resolução destes crimes, muitos deles nunca condenados, à medida que a curta abandona a cor no final, deixando os espectadores entregues a sombras na noite.

Nota: 90/100

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