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O Acontecimento, em análise

Audrey Diwan trouxe-nos “O Acontecimento”, uma nova obra cinematográfica que conta com Anamaria Vartolomei e Kacey Mottet Klein no elenco. Descobre o que a nossa análise tem a dizer sobre o filme.

UMA VIDA ENCERRADA NA PROFUNDIDADE DE CAMPO

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Uma semana depois de estrear em Portugal o filme TOUT S’EST BIEN PASSÉ (CORREU TUDO BEM), do cineasta francês François Ozon, onde o conflito principal da narrativa passava pela abordagem de um assunto bem sério, o da eutanásia, voltamos ao cinema do hexágono para agora focarmos a nossa atenção num outro grande motivo de reflexão, o da condição feminina e a liberdade das mulheres disporem do seu corpo, sem restrições de outra ordem que não sejam as da matéria ética subjacentes aos valores que as sociedades modernas e desenvolvidas deveriam sempre defender. Nomeadamente o direito à IVG,  Interrupção Voluntária da Gravidez. O filme agora estreado chama-se L’ÉVÉNEMENT (O ACONTECIMENTO). Recebeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2021 e foi dirigido pela cineasta Audrey Diwan.

O Acontecimento
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De início vemos um grupo de raparigas, sem quaisquer atributos especiais que as diferenciem de milhares e milhares de outras estudantes cujas carreiras académicas passam pela “democrática” frequência de residências universitárias. Neste caso, estamos em França e numa cidade com uma escala humana bastante mais simpática da que podemos encontrar numa grande metrópole como Paris. Mais precisamente em Angoulême. Há quem prefira o urbano pelo urbano e, enfim, há quem prefira o relativo sossego. Estas raparigas estão ali para estudar, para conquistar um lugar ao sol através de uma carreira que, em alguns casos, as liberte da condição social e económica dos seus pais. Mas, lá por causa disso, não viram as costas aos prazeres da vida nem deixam de participar no clima lúdico associado a festas nocturnas, onde encontram a música do momento, as bebidas da moda e, porque não, o caminho aberto para a libertação do desejo. O despertar da Primavera entre quem já não se perfila como inocente mas que, bem medidos os prós e os contras, não deu ainda o salto para a vida profissional e adulta que lhes possibilite encarar de forma mais carnal a relação sexual pura e dura. De facto, a acção decorre no início dos anos 60, o que faz alguma diferença no que diz respeito aos costumes. Maio de 68, apesar da proximidade, não estava propriamente ao virar da esquina. Neste contexto socio-cultural, descrito num estilo quase documental, a realização desvia-nos o olhar para uma das jovens, Anne, que a partir de certa altura será o alvo preferencial da nossa atenção. Uma identificação pessoal mais incisiva que destaca esta futura protagonista do grupo de rapazes e raparigas com quem se cruza, e não apenas dos que fazem parte do seu círculo íntimo. Neste percurso, ficaremos a saber que ela encara o plano concreto das suas relações amorosas de forma muito mais aberta, leia-se, mais activa, do que as suas companheiras. Facto que irá provocar um desagradável desequilíbrio nas relações com outras jovens com quem partilha a universidade, algumas das quais manifestam contra ela ameaças de natureza reaccionária, vomitando alto e bom som umas quantas insinuações pouco nobres e assumindo atitudes abusivas, como a ideia de a excluírem do meio académico. Inclusivamente, as suas confidentes e amigas, apesar de mais contidas, demonstram um desconforto algo similar, sobretudo, quando ficam a saber que Anne está grávida de um homem que ela descreve em voz baixa como sendo apenas o companheiro de um breve encontro, mais ou menos casual. Na prática, estamos perante alguém que, aos olhos da opinião pública, seja lá o que isso for, não passa de uma galdéria. Em boa verdade, o “crime” desta mulher não foi outro senão o de fazer amor com alguém, porque assim o desejou, sofrendo posteriormente as consequências de uma gravidez indesejada, fruto da vertigem do prazer ou de circunstâncias que nunca serão descritas, porque não precisam de o ser. Deveria ser a coisa mais natural do mundo e não o acontecimento que faz o seu mundo girar ao contrário. Naturalmente, o filho em gestação não foi concebido por milagre, necessitou pelo menos de um outro protagonista, aquele que está ausente, na sombra. Não obstante, a partir do momento em que se vê na pele de mãe solteira, e sem poder contar com a protecção do Estado, o desespero cresce. Para a jovem estudante não restam grandes alternativas senão resolver o assunto contando apenas com as suas próprias forças, dando a cara perante a sociedade e os médicos a quem pede auxílio. Para poder continuar a estudar, Anne não vê outra saída a não ser a opção de realizar um aborto. Ela não quer de forma alguma ver a sua vida alterada e ser privada das habilitações que lhe darão um futuro diferente daquele que foi o da sua mãe, forçada a uma existência cinzenta e impessoal. Mas o confronto com a sociedade revela-se ingrato e logo se desfaz a ilusão da possível solidariedade. Por um lado, aqueles que parecem melhor compreender o seu drama e dilema existencial fecham-lhe as portas, seja porque receiam ser acusados de cumplicidade num crime, seja por pura e simples hipocrisia. Por outro lado, o Estado já as fechara do ponto de vista legal, e o que resta será sempre a pior solução, o aborto clandestino.

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Estas são as grandes linhas que balizam a narrativa, servida por um argumento que privilegia a descrição dos passos e dos espaços percorridos pela protagonista. Mas, para além das palavras, dos gestos, dos ambientes e da desencantada visão de um país que mantinha preconceitos redutores da liberdade individual, no meio de algumas falaciosas manifestações de modernidade proferidas por figuras influentes, que as apregoam sem verdadeira vontade de mudar seja o que for, há neste filme uma qualidade absolutamente fundamental que nos revela um olhar muito particular por parte da realizadora, naquela que é a sua segunda longa-metragem. Estamos a falar da notável Direcção de Fotografia, onde encontramos o nome de Laurent Tangy que, embora respeitando seguramente as indicações da Direcção de Actores, segue um caminho muito interessante e preciso ao enquadrar e filmar nos limites de uma reduzida profundidade de campo, ou seja, aquele espaço em que as pessoas ou objectos se encontram focados, usando igualmente o chamado “Academy Ratio”, 1:33, que equivale ao 4:3. Em O ACONTECIMENTO, do início ao fim do filme, as diversas sequências são definidas pelo uso sistemático dos grandes planos e planos próximos, no máximo planos médios quando se quer dar mais amplitude a um ou outro espaço que o justifique, como sucede no anfiteatro da Universidade. Laurent Tangy, chega ao ponto de focar, durante uma conversa a dois, apenas um dos actores, estando o que fala desfocado. Esta dialéctica fílmica, constitui uma das melhores surpresas desta obra e um convite para o espectador acompanhar de muito perto aquilo que está diante dos seus olhos no grande ecrã, nomeadamente o percurso atormentado da protagonista, perscrutando cada movimento, cada esgar do seu rosto, cada parcela do seu corpo. Um corpo que a actriz de forma muito corajosa expõe sem pudores inúteis. Nudez justificada em segmentos inseridos na narrativa, como se fossem gritos de dor contra a involuntária barbaridade a que ela se vai submeter. Riscos de elevada gravidade, provocados por um acontecimento que não consegue controlar de forma cabal. Fotografia que, ao focar o ponto certo na altura certa, impregna de verdade material o lado emocional gerado pelo impasse em que Anne se encontra. Os actores estão como que encerrados na limitada profundidade de campo a que a realização e a fotografia os confina. Mas isso constitui, quase por contradição, a sua forma de contrariar a invasão do seu universo próprio, o muito frágil refúgio material e emocional, que os separa e protege da agressiva realidade circundante.

O Acontecimento
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Em suma, fotografia e mise-en-scéne apresentam-se aqui numa articulação permanente entre o que se quer dar a ver e o que se deixa adivinhar. Muitas vezes, parece que as personagens vão sair para uma zona invisível, há ligeiros ajustes no foco, nas fontes de iluminação natural ou artificial. No pequeno ecrã, estes efeitos podem sofrer um pouco, devido a uma certa limitação da dimensão “gráfica” dos planos de fundo. Por isso, se quiser aproveitar ao máximo esta experiência de realização e sequenciação imagética, não hesite, não fique em casa, vá ao cinema, antes que  voltem a fechar as salas por causa da maldita pandemia.

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Por último, grande plano e muita profundidade de campo para a prestação da actriz protagonista, Anamaria Vartolomei. Sem qualquer dúvida, a sua presença merece rasgados elogios, sobretudo, pela sua entrega a um papel que, precisamente por estar mais próximo da objectiva, mais exigente se perfila. Cada milímetro de exposição do seu rosto necessitou de ser medido a régua e esquadro. Cada palavra dita, medida com um diapasão fino para surtir o impacto justo e certeiro. Para que no final o espectador não duvide que a dor que ela sente enquanto personagem não é uma dor que deveras sente. Ela, como mulher, e não só como actriz, sabe com certeza que o poder de ser livre e decidir sobre a questão fulcral da maternidade não se pode considerar apenas um exercício de ficção, ou algo que ficou fossilizado num passado recente. Porque, por muito que se avance, haverá sempre mais caminho a percorrer na defesa de valores civilizacionais básicos, que ainda estão por consolidar.

O Acontecimento, em análise
o acontecimento

Movie title: O Acontecimento

Date published: 5 de January de 2022

Director(s): Audrey Diwan

Actor(s): Anamaria Vartolomei, Kacey Mottet Klein, Sandrine Bonnaire

Genre: Drama, 2021, 100 min

  • João Garção Borges - 70
  • Maggie Silva - 86
78

Conclusão:

PRÓS: Ficção baseada no romance autobiográfico de Annie Ernaux, publicado no ano 2000. Uma obra com uma abordagem directa e incisiva de um assunto muito sério que está longe de ser uma sombra do passado. Na verdade, a partir da linguagem literária, a realizadora abordou no plano fílmico vários assuntos complementares. Na exposição do corpo e alma da protagonista, quis afirmar, alto e bom som, não só o direito de uma mãe solteira interromper uma gravidez indesejada, como o direito ainda mais amplo das mulheres a uma sexualidade plena, inserida sem equívocos num patamar de plena igualdade com os homens.

Para além do mais, o filme apresenta um excelente exercício de articulação entre a Direcção de Fotografia e a Direcção de Actores.

CONTRA: Nada de especial. Por isso, repito o que disse na crítica, vão vê-lo numa sala de cinema, antes que a pandemia nos obrigue a ficarmos outra vez reduzidos ao pequeno ecrã.

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One Response

  1. Wellington 29 de Abril de 2023

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