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Correu Tudo Bem, em análise

O cinema europeu volta a ficar em destaque com a chegada de “Correu Tudo Bem”, uma obra do aclamado cineasta François Ozon. Descobre o que a equipa achou do filme!

HÁ MUITAS CORES NO CINZENTO

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Em 2021, participa na competição do Festival de Cannes e no final do ano chega aos ecrãs nacionais TOUT S’EST BIEN PASSÉ (CORREU TUDO BEM), dirigido pelo ainda “jovem” mas já veterano François Ozon. Na origem do argumento encontramos o livro de Emmanuèle Bernheim, que o cineasta francês adaptou, atribuindo a Sophie Marceau o papel da filha de um homem que, após sofrer um acidente vascular cerebral, semi-paralisado na cama de um hospital mas mais do que consciente de que a partir dali viverá uma existência diminuída e fortemente dependente dos outros, decide morrer. Mas não o quer fazer a qualquer preço. Morrer, sim, mas com dignidade. Para os devidos efeitos, propondo a si próprio e aos mais próximos que o apoiem na decisão de acabar os seus dias através da prática da eutanásia. Neste contexto familiar irá sobretudo manter uma relação muito intensa e nem sempre pacífica com a referida filha que, ao contrário da irmã, parece ser a fiel depositária dos mais íntimos desejos do pai, mesmo quando o histórico de relacionamento com este se revela difícil e pleno de contradições. Sabemos que assim foi porque o cineasta nos faz ver isso mesmo de forma muito clara, através da inserção de sequências do passado de ambos no fluir narrativo presente. Este dispositivo ficcional que se apresenta por vezes com alguma ambiguidade e que não se deve confundir com um simples flashback ilustrativo, adiciona maior complexidade ao supremo dilema entre pai e filha, matar ou não matar, que gradualmente passa a ser o conflito principal do filme. Na verdade, no desenvolvimento da acção vão sendo incluídos aspectos colaterais da dialéctica familiar que revelam posições, por vezes favoráveis e outras vezes contrárias ao que se adivinha ser a proposta daquele homem em sofrimento, deixando ao espectador muita margem de manobra para reflectir de forma concreta sobre algo que geralmente anda associado a julgamentos demasiado subjectivos e de ordem moral. Dilema muito mais pesado, sobretudo quando se coloca a questão da vida ou da morte num contexto povoado de memórias, onde o negrume da angústia parece sobreviver a qualquer opção mais luminosa. Leia-se, qualquer solução que evite a solução derradeira, o sono profundo e sem retorno.

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Será importante dizer que a adaptação ao grande ecrã, como dissemos anteriormente, foi realizada a partir de um livro que Emmanuèle Bernheim, recentemente falecida, escreveu sobre a agreste e dura experiência pessoal no acompanhamento da eutanásia do seu pai. De algum modo, para além da actualidade e importância do assunto, assim como da urgência com que em muitos países se perfila a questão da eutanásia, podemos dizer que François Ozon, com a produção deste filme, quis prestar uma homenagem a alguém que ele via como uma amiga, uma mulher que admirava, colaboradora de longa data em diversos argumentos de filmes seus como SOUS LE SABLE (SOB A AREIA), 2000, SWIMMING POOL, 2003 ou 5X2: CINCO VEZES DOIS, 2004. De igual modo, dar visibilidade ao seu caso, e polarizar a atenção sobre um assunto e uma prática que não deviam ficar apenas pela mera discussão filosófica ou religiosa e, muito menos, por redutoras estratégias socio-políticas.

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Para interpretar o pai da escritora na versão filme, porque no fundo estamos diante de uma ficção baseada de forma inequívoca em factos e pessoas reais, François Ozon convocou André Dussollier, intérprete com uma carreira bem versátil, que neste filme cumpre de forma exemplar a missão de se apresentar, com o devido rigor, coragem e seriedade, enquanto figura assombrada pelas vicissitudes da vida, mas decidido a ser dono e senhor do seu corpo e alma. Em grandes planos, ou planos próximos, que nos dão conta da sua condição física, com um sentido da realidade material que se aproxima da perfeição, o actor emprega na construção da sua personagem uma dose de credibilidade emocional e artística nada fácil de obter, já que o seu rosto aparece visivelmente condicionado e deformado pela maquilhagem que recria as consequências de um AVC. Ele e Sophie Marceau são ambos magníficos, e vê-los representar prova que um belo exercício de direcção de actores funciona muito melhor quando os protagonistas se articulam como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. E não é…! Em suma, os espectadores deste filme não darão por mal passados os 113 minutos durante os quais irão saborear cada gesto e cada palavra dos protagonistas, a que devemos adicionar a presença complementar mas significativa de Géraldine Pailhas, Hanna Schygulla e sobretudo Charlotte Rampling, no papel da mulher ausente e da mãe cuja doença neurológica a impossibilita de comunicar normalmente com a família, aquela que já foi sua. Não obstante, apesar da sua aparente fragilidade emocional, será dela uma das frases mais lúcidas e poderosas do filme. No seu estúdio de escultora, Sophie Marceau, no papel da filha, pergunta-lhe por que motivo as suas obras são sempre de uma só cor, o cinzento. E a resposta da mãe, ponderada mas firme, ouve-se assim: Há muitas cores no cinzento…! Palavras que se conjugam sem mácula com a dimensão narrativa de TOUT S’EST BIEN PASSÉ. E, feitas as contas ao que se irá ver lá para o final, será mesmo que as coisas correram bem? Na derradeira sequência há quem diga que sim, mas fica no ar um sentimento amargo, uma compaixão plena de ambiguidade, uma incerteza de chumbo.

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Entrecruzada na narrativa e na perspectiva pessoal e humana, os espectadores irão saber ainda os limites impostos pelo Estado francês, que não permite a eutanásia nem o suicídio assistido, situação que o filme não podia ignorar. Este obstáculo legal introduz no filme o segundo grande dilema, sair ou não sair do país. E a saída mais fácil, para quem a possa pagar, passa por uma viagem combinada até uma clínica na Suíça, onde no respeito por certas condições e, já agora, uma boa soma em dinheiro, a eutanásia não é ilegal. François Ozon irá lidar com este assunto de forma directa e incisiva, e não deixa de criticar, com alguma ironia, que a hipótese suíça pode concretizar o desejo daquele pai, mas apenas porque no conforto da sua condição social possui rendimentos para o fazer. Quem não os possui, pura e simplesmente, sofre, ou então encontra alternativas que nada devem aos valores civilizacionais que, em boa verdade, uma sociedade moderna devia defender.

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Por fim, um desabafo. Ninguém ignora, pelo menos aqueles que acompanham de perto a produção fílmica de François Ozon, a orientação sexual que há muito assumiu e que marca de forma muito clara a quase globalidade da sua filmografia. Basta recordar o seu belo filme anterior, o Été 85 (Verão 85), 2020. Na verdade, no contexto do chamado cinema gay, o cineasta destaca-se sem favor de outros cineastas, digamos, sectários, pela forma inteligente e de certa forma descontraída como aborda as matérias relacionadas com o seu modelo de ser e estar na vida. Sem excessos, que encontramos noutras obras, muitas vezes contaminadas por um espírito panfletário de afirmação meramente pessoal, um egocentrismo que só fragiliza algumas propostas ficcionais ou documentais, no fundo, opções pseudo-radicais face a algo que não devia ser encarado, por gays ou não gays, senão como um assunto perfeitamente normal. Pessoalmente, a minha relação com os seus filmes começou nos anos 90 e com o visionamento das suas curtas-metragens que, maioritariamente, programei e exibi no ONDA CURTA da RTP2. Recordo uma das melhores, o magnífico UNE ROBE D’ÉTÉ (UM VESTIDO DE VERÃO), 1996, uma belíssima abordagem da relação entre dois rapazes num Verão particularmente quente. Introduzo aqui estas linhas porque me parece que num filme onde a justa abordagem da eutanásia, sem concessões gratuitas aos códigos mais básicos do melodrama, dá a certa altura espaço para a identificação do protagonista como sendo gay, a narrativa que até ali dispensara essa revelação fica um pouco menos equilibrada naquilo que era a exposição nua e crua do conflito principal, ou seja, uma ficção dominada pela forte personalidade de alguém que deseja morrer com dignidade e que desafia uma das suas filhas a concretizar o seu propósito. Quando se lida com um argumento onde estão presentes questões muito sérias, nomeadamente, a escolha entre a vida e a morte, assim como os dilemas prevalecentes na consciência pessoal e colectiva, quer da família, quer dos cidadãos, quer do Estado que dificulta ou impede a prática da eutanásia, ou seja, como no caso deste filme, situações e problemáticas que nada devem a qualquer condição sexual, introduzir a orientação gay nesta já de si complexa equação acaba por ser uma decisão de realização assumida um pouco a martelo. E, por muito delicadas que sejam as marteladas, não deixam de ser artificiais, leia-se, desnecessárias. Ruído que nada acrescenta ao que até aí se estava a visionar. O mesmo martelo que faz entrar em cena uma personagem bizarra, a quem as filhas do pai enfermo dirigem epítetos pouco simpáticos. Como se costuma dizer, não aquece nem arrefece, pouco ou nada adianta a sua presença, apesar de alguma estranheza polvilhada de um fraco ou inútil suspense. Justifica o retrato difuso de uma atribulada relação gay? E depois?

Na mesma linha, também não se percebe a necessidade da introdução na estrutura da montagem de um segmento em que dois funcionários de uma ambulância levantam objecções de carácter religioso e moral sobre a eutanásia. Está lá num momento muito particular e sensível da ficção, podia ser o início de um outro conflito narrativo com alguma importância, mas acaba por não passar de um fait-divers, já que não sobrevive a esta discussão nenhuma consequência que influencie o desfecho final.

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Seja como for, neste Inverno do nosso descontentamento pandémico, ver e discutir um filme como CORREU TUDO BEM pode contribuir para que a defesa de um controverso acto de amor pela vida, mesmo que passe por decisões difíceis de aceitar, possa ser encarado como algo que passa por escolhas que não são as mais imediatas nem as mais óbvias. Se isso acontecer, se o pensamento sobre a condição humana for assumido sem preconceitos que o contaminem e bloqueiem, as coisas até podem correr bem…!

Correu Tudo Bem, em análise
Correu Tudo Bem

Movie title: Correu Tudo Bem

Date published: 28 de December de 2021

Director(s): François Ozon

Actor(s): Sophie Marceau, André Dussollier, Géraldine Pailhas, Charlotte Rampling

Genre: Drama, 2021, 113 min

  • João Garção Borges - 65
65

Conclusão:

PRÓS: Um filme, baseado em factos reais, sobre um assunto que devia ser encarado e debatido com urgência, seriedade e humanidade. Eutanásia, sim ou não?

Duas grandes interpretações de André Dussollier e Sophie Marceau, pai e filha na encruzilhada dos seus dilemas existenciais.

CONTRA: Ruído desnecessário sobre a condição gay do protagonista que, muito sinceramente e sem querer negar a legitimidade das opções do realizador e argumentista, não aquece nem arrefece a questão principal e, por isso mesmo, surge no filme com alguma artificialidade no decorrer da narrativa.

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