“O Deus da carnificina”, “Quem tem medo de Virgina Woolf” revisitado
Em “O Deus da Carnificina” (de Yasmina Reza) dois casais encontram-se para discutir como deverão proceder após uma briga entre os filhos de ambos: um rapaz terá “agredido” o outro e precisará de ser disciplinado.
As personagens perdem-se na altercação acerca do significado das palavras e na procura de sinónimos, com o objetivo de minimizar a sua dose de culpa no incidente. O que a princípio parece ser uma situação amistosa entre dois casais, sofre uma metamorfose e culmina num jogo de poder interpessoal causado pela dissolução das aparências que deixam ao descoberto o grotesco da condição humana. Ao longo da peça a interação deixa de ser entre quatro adultos de classe alta que procuram arranjar uma forma de melhor educar os seus descendentes, passando antes a tratar-se de um conflito entre candidatos à posição de alfa num coletivo.
“O Deus da Carnificina” inicia o trabalho do encenador e ator Diogo Infante como diretor artístico do Teatro da Trindade e acaba por seguir a linha dramatúrgica traçada em “Quem Tem Medo de Virgina Woolf”, encenada pelo mesmo no ano passado no teatro supracitado. Textualmente, as peças têm temáticas similares: tratam o encontro entre dois casais de aparente classe alta e o modo como o discurso politicamente correto se vai destruindo à medida que a interação avança para um confronto entre classes sociais. Para além disso, em termos formais, o tempo e o espaço da ação mantêm-se por toda a peça havendo a negação de analepses ou prolepses. Aquando uma comparação lado a lado, poder-se-á dizer que a peça de Albee é mais profunda no que toca à exploração da psicologia, motivações das personagens e de temas como a memória, anseio e desapontamento. “O Deus da carnificina” escolhe uma narrativa superficial resultando quase numa comédia de situação, pondo de parte a premissa que primeiro delineia: as repercussões emocionais do modo como as personagens se relacionam dentro da sua família nuclear e com o meio que as rodeia. Em “O Deus da Carnificina”, entre os casais não parece haver uma relação afetiva e nenhuma das personagens é desenvolvida ao ponto do espectador conseguir relacionar-se e, por consequente, importar-se com a sequência de acontecimentos. Alcança-se, apesar disso, uma tentativa de explorar a questão da solidão e da ferocidade humana: a peça acaba por transmitir a ideia de que cada persona se associou às outras por uma questão de conveniência e apenas defende o seu herdeiro para preservação do seu próprio estatuto social.
A criação de Diogo Infante não acrescenta ao paradigma artístico que tem vindo a ser traçado nas diversas encenações de “O Deus da Carnificina”. Em vez disso, reproduz o trabalho por si feito em “Quem tem medo de Virgina Woolf”, ao mesmo tempo que despe a peça de Yasmina Reza da sua roupagem dramática e retira a componente negra da comédia através de métodos de representação que elevam o teatro físico ao ponto da comédia situacional. Diogo Infante (que nesta peça demonstra a sua boa capacidade de representação), selecionou também um elenco conhecido pelo seu trabalho televisivo e cómico que, num ambiente teatral, não tem a melhor prestação. A projeção vocal e a falta de plasticidade motora prejudicaram as performances.
Apesar disto, a peça arrancou várias gargalhadas junto de um público maioritariamente de meia idade e classe alta que divertidamente falava ao telemóvel e comentava as suas dores nas costas aquando a representação. É caso para perguntar onde estavam os funcionários de frente de sala ou mesmo o respeito pelos artistas em palco por parte de um público que aplaude quando é dito um palavrão como se de um espetáculo de stand up comedy a peça se tratasse. Afinal não é como dizem e não são só os millennials que são desprovidos da “cultura do teatro”. Este tipo de comportamentos acaba por ser reforçado pela própria estrutura teatral: é, por exemplo, reproduzida uma lista infindável de nomes de empresas privadas que terão financiado aquela peça, ou o próprio Teatro da Trindade, mesmo antes do anúncio que pede aos espectadores que desliguem os seus telemóveis. O teatro shakespeareano teve repercussões muito importantes para o teatro ocidental contemporâneo, no entanto, talvez devêssemos aproveitar a passagem dos tempos e evitar uma reprodução, nos dias de hoje, do comportamento ostensivo e hostil do público do século XVI aquando a representação.
“O Deus da Carnificina” procura atingir a identificação do público para com as personas através de um espelhar da classe alta e de uma provocação através do grotesco. Isto faz com que o espectador procure pensar no quão diferente é o seu universo daquele retratado na peça, acabando, no entanto, por estabelecer pontes entre si próprio e a diegese.
“O Deus da Carnificina” tenta, a partir de um cenário contemporâneo, regressar ao primitivo da condição humana com recurso ao sarcasmo, ironia e cinismo fazendo uma morna reposição do clássico de Albee, “Quem ter medo de Virgina Woolf”. O resultado é um jogo entre a realidade e a aparência, onde a máscara e a delicadeza se vão desvanecendo com cada estucada do discurso das personas: o banal transfigura-se em mortífero numa representação da realidade burguesa com tiques representativos de revista.
O cenário, no entanto, está muito bem conseguido, tendo como fundo uma estrutura em cartão enaltecida por uma iluminação bem estudada que vai de acordo com a estética quase televisiva escolhida pela encenação.
Já tudo foi inventado, todas as histórias foram contadas e recontadas milhares de vezes. O que nos dá vontade de as refazer e rever é a necessidade de acrescentar ou de assistir a uma nova roupagem dada à antiga narrativa. O que faz uma nova diegese destacar-se das até aí criadas é o modo como nos é apresentada ou a nova visão artística que poderá transparecer.
CARTAZ| DIGRESSÃO PORTUGUESA DO ESPECTÁCULO
“O Deus da Carnificina” embarcou no início do mês de maio numa digressão que passará, ao todo, por 11 salas de espectáculos um pouco por todo o país.