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O Monge Apostador, a Crítica | Ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos III

A terceira edição do ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos dá a conhecer “O Monge Apostador”, uma obra de Shôgorô Nishimura.

Três filmes. Três Realizadores. Três visões de um país e de um povo que nos anos 50 e 60 despontava para um novo rumo, mantendo no entanto a sua ligação a práticas e códigos de comportamento ancestrais, no fundo aquilo que definia e define a identidade nipónica.

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Uma iniciativa da produtora e distribuidora The Stone And The Plot.

UMA QUESTÃO DE FÉ OU “EU REFUGIO-ME EM BUDA AMIDA

Tóquio. Cidade buliçosa e já naquele início dos anos 60 uma metrópole superpovoada e densamente urbanizada onde, mesmo assim, subsistiam alguns espaços verdes que são cada vez mais difíceis de encontrar nos nossos dias. Por experiência própria, sempre que passei por Tóquio nunca hesitei em apanhar um comboio para ir, por exemplo, a Kamakura, onde a vida se vive com outro ritmo e onde podemos encontrar no Templo Kotoku-in, da seita Jodo-Shu, o Grande Buda que eu vira antes num filme de Yasujiro Ozu. Trata-se de uma colossal estátua de cobre do Amida-butsu, mais conhecido por Kamakura Daibutsu (Grande Buda de Kamakura). Pois bem, Haruchimi (Shôichi Ozawa), o protagonista de “O Monge Apostador”, realização de Shôgorô Nishimura, por diversas vezes invocará no seu papel de monge dedicado ao negócio funerário a frase “Eu Refugio-me em Buda Amida”. Mas por detrás desta reza está mais do que uma questão de fé, aliás, muito difícil de enquadrar no perfil do homem que procurou, enquanto professor e afastado da grande cidade, uma alternativa para a herança que seria a sua caso seguisse a vontade de seu pai, ou seja, ser monge do Templo Hojuin.

O Monge Apostador
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Nos primeiros e nervosos minutos do filme, Harumichi recebe a notícia da morte do irmão e regressa a casa. Entretanto, o pai encontrava-se a braços com a sobrevivência cada vez mais complicada de uma actividade que associava duas vertentes que a morte fazia colidir, o material e o espiritual. Como um outro monge do Templo dirá com amarga resignação: “Nos dias de hoje há demasiadas pessoas a querer funerais baratos”. Depois da morte do pai, Harumichi irá encontrar-se numa encruzilhada ainda maior do que imaginara. Entre a opção que fizera a favor da sua autonomia e o assumir das suas responsabilidades, nomeadamente na continuidade do negócio familiar que a certa altura implicava a urgente angariação de fundos para a reconstrução do salão principal do local de culto, irá escolher a vida de monge. Desta vez, a frase feita “Eu Refugio-me em Buda Amida” adquire uma ambiguidade cuja ressonância se impõe como um eco perante o que parecia ser um destino inevitável.




Todavia, o futuro não parece risonho, sobretudo face ao pouco entusiasmo dos cidadãos que comungavam da mesma fé, cada vez mais divididos por outras seitas. Por um lado, acossados que estavam pelos constantes pedidos de ajuda financeira nas muitas peregrinações para obter donativos que Harumichi realizava pelas estreitas ruas de Tóquio, por outro, por causa do ambiente hostil devido a um rumor, com algum fundamento, escândalo surdo gerado por um mal explicado e estranho sub-negócio com carne de cão oriundo dos animais que o Templo deveria reduzir a cinzas nas cerimónias de cremação. Os dias seguem com altos e baixos e, num certo momento, ao primado da fé budista vai sobrepor-se uma outra questão de fé, a febre das apostas que faz Harumichi acreditar no pensamento mágico e na capacidade intuitiva de escolher os números certos das bicicletas e ciclistas vencedores no velódromo que descobre por acaso e que passa a frequentar com consequências dramáticas. Desde um episódio inicial em que numa aposta sucedera aquilo que se costuma designar “sorte de principiante”, o caminho sinuoso do vício vai de ilusão em ilusão empurrá-lo para um beco sem saída. E quem lhe empresta dinheiro ou quem se apercebe que o dinheiro que faz falta ao Templo desaparece sem retorno, não irá perdoar. Muito menos os agentes angariadores de apostas que não brincam em serviço quando não lhes pagam o que lhes devem.

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Dito isto, neste calvário de um monge budista que desce aos infernos do desespero e do alcoolismo, podemos dizer que  Shôgorô Nishimura, na sua primeira-obra como realizador, consegue dosear uma certa dose de simpatia pela pessoa que Harumichi fora, mantendo uma quase compaixão pelo pobre diabo quando ele entra numa acelerada decadência. Um monge que quis mudar de vida e caiu em desgraça. Seguramente, só quem não conhece a obra do grande realizador Shôhei Imamura não se apercebe da sua influência no argumento de “O Monge Apostador”, escrito conjuntamente com Nobuyuki Onishi. Não menosprezando as qualidades demonstradas por Shôgorô Nishimura (e são muitas as que revela ao lado de uma muito boa prestação do Director de Fotografia Kazue Nagatsuka e da Direcção Artística de Yasuhiro Otsuru), podemos dizer que a composição da maioria das personagens pertence a uma visão desencantada da realidade, enquadrada pelo retrato amargo das relações humanas.




Presente igualmente na opção generalizada de apresentar figuras femininas que não se deixam encaixar na ideia feita de serem o sexo fraco. Pelo contrário, as mulheres neste filme, mesmo num plano secundário, adquirem muitas vezes um protagonismo de bastidores que contraria o pensamento dominante num Japão muito mais voltado para as histórias concebidas ao redor de uma virilidade erguida sobre conceitos e preconceitos que gerações inteiras carregavam na sua prática quotidiana de afirmação pessoal e colectiva. Drama e comédia ácida, crítica e sátira a certos usos e costumes, narrativa impiedosa sobre quem semeia ventos para colher borrascas devastadoras. Não admira que na época da sua estreia o filme fosse encarado com alguma resistência. Não admira igualmente que hoje “O Monge Apostador” esteja a ser visionado com outros olhos. De facto, muita água passou por baixo das pontes da sociedade japonesa.

O Monge Apostador
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Entretanto, sobre os abismos a que a vertigem das apostas conduz, fica uma sequência genial em que Harumichi no seu dia de sorte escapa por “sorte” a uma morte certa. E mais não digo, por razões óbvias. Direi apenas que há nessa sequência uma figura feminina de presença fugaz mas inesquecível, e que no final veremos o protagonista rodeado de apostadores no velódromo onde como homem se perdeu e por caminhos sinuosos veio a ser recompensado, procurando saldar as contas passadas com avisos dados a outros como se fosse um monge maldito resgatado para um qualquer altar de verdade, um redimido mas quase falso monge, vociferando sobre as circunvoluções do que afinal vem a ser essa coisa da sorte e do azar. Transcendendo a própria existência e capacitando o atingir do Vazio Absoluto, ou seja, dito de outra maneira: “Eu refugio-me em Buda Amida”. (80/100)

O Monge Apostador, a Crítica

Movie title: Keirin shônin gyôjyôki

Director(s): Shôgorô Nishimura

Actor(s): Shôichi Ozawa, Aiko Ito, Yôko Minamida, Yoshi Katô, Munenori Oyamada, Masaya Takahashi, Noriko Matsumoto, Toshio Takahara, Takeshi Katô, Misaki Watanabe, Daisuke Ômi, Zenpei Saga, Eimei Esumi

Genre: Drama, 1963, 99min

  • João Garção Borges - 80
80
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