©The Stone And The Plot

A Tragédia do Bushidô, a Crítica | Ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos III

Eitarô Morikawa é um dos destaques da terceira edição do ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos com “A Tragédia do Bushidô”.

Prosseguindo a excelente iniciativa de nos permitir ver em grande ecrã e em cópias de imaculado restauro uma série de filmes oriundos da indústria cinematográfica japonesa com produção situada entre os anos 1950 e 1960, a produtora e distribuidora The Stone And The Plot propõe-nos agora a Terceira Parte do ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos.

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SOMBRAS DE MORTE NUM ACTO DE AMOR

Filme da Shochiku, um dos mais importantes estúdios japoneses, integrado na época da produção numa nova dinâmica do cinema japonês que viria a ser conhecida e celebrada como uma nova vaga, “A Tragédia do Bushidô”, de Eitarô Morikawa, começa por contextualizar um dos seus conflitos dramáticos, o do amor pela vida face ao sacrifício da morte encarada como o cumprimento de um princípio moral. Para isso, avança logo a abrir com uma explicação de carácter histórico-filosófico: “Houve uma era em que o ritual suicida, após a morte de um senhor feudal, era glorificado como um gesto de lealdade em nome do Bushidô”. Para quem não saiba, o Bushidô não é outra coisa senão o código de honra que regia a vida (e pelos vistos a morte) de um samurai. São preceitos estabelecidos pela experiência de séculos de actividade militar que, precisamente, a classe guerreira deveria observar, fruto de vários contributos filosóficos e religiosos, cujos conceitos estão associados ao Budismo, Xintoísmo e Confucionismo.

A Tragédia do Bushidô
©The Stone And The Plot

Logo a seguir a essa legenda vemos um magnífico plano e um espaço imenso de dunas brancas atravessadas pela silhueta de um rapaz, que corre desesperado, perseguido por um grupo de samurais que não descansam até o alcançar. De súbito, cercado por estes, um golpe seco de espada e o jovem cai morto no chão. Depois, numa outra sequência saberemos a razão por detrás do que vimos. Traição será a palavra usada para definir a fuga daqueles que não corresponderam ao que era esperado, a morte ritual que devia constituir uma peça essencial, digamos, do luto pela morte do feudal senhor. Manifestação de respeito pela hierarquia e prova de lealdade materializada na ritualização do martírio. Seja como for, para salvar a face do Clã Honda abre-se a discussão sobre quem deveria recair o papel de novo mártir. E a escolha, muito por causa da fragilidade de certas relações de posicionamento social no seio da mesma classe, a dos nobres, recai sobre um rapaz de apenas dezasseis anos, Iori (Junichiro Yamashita). Era necessário um novo sacrifício. De forma peculiar mas directa, com movimentos de câmara que definem o ponto de vista dos protagonistas e acentuam o seu profundo significado e alcance, a realização mostra como a escolha se realiza de forma mais ou menos aleatória.




Mais adiante, a personagem do cínico Conselheiro-mor que movimenta os sinistros cordelinhos que regem o destino dos membros do clã nem sequer faz o que seria expectável, ou seja, assumir a responsabilidade de informar o sacrificado da obrigação a que fora sujeito. Pede antes ao irmão deste, o Senhor Nobuyuki (Miki Mori), para o fazer. Desde aquele momento, sabemos que a ordem não pode ser contrariada e que Iori Nobuyuki, o jovem escolhido, segundo as palavras do Conselheiro-mor “(…) deve morrer sete dias após a morte do nosso senhor”. Nos primeiros dez minutos de um filme que pouco ultrapassa os setenta e quatro, as cartas que definem o frágil jogo da vida foram lançadas, e Iori será levado para um local onde devia preparar-se para a cerimónia que se queria grandiosa de modo a agradar aos poderosos de Edo (nome antigo de Tóquio). Tudo de acordo com o código Bushidô. Mas há um outro conflito dramático que se vai erguer neste intervalo de uma semana e consumar no esplendor de um dia de paixão, fulgor sensual partilhado ao ar livre e junto a um lago onde o brilho do Sol e o pacífico plano de água parecem contrariar a triste sina de Iori. Na verdade, a mulher do irmão, Kô (Hizuru Takachiho), implorara ao marido que a deixasse cumprir no fundo o seu próprio ritual, composto pela expressão maior e material do desejo. Na prática, unindo o seu corpo e alma com quem ela criou desde menino.

A Tragédia do Bushidô
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Na satisfação do seu pedido, quer que o jovem Iori experimente através do amor físico, como ela diz, a plena condição da idade adulta. Morrer, sim, mas sem ignorar o prazer carnal. E o cineasta Eitarô Morikawa, realizador de um só filme (apesar de argumentista de alguns outros), avança então para uma subversiva figuração do relacionamento humano na intimidade possível de um acto sexual que Iori irá assumir pela primeira vez com a cunhada. Mulher que posteriormente acaba por mostrar uma ainda maior e mais subversiva ambiguidade quando, através de uma postura onde lhe escapa a humanidade de um gesto redentor, acaba por ostentar um olhar fixo de perplexa impotência no limiar da vida, sem nunca verbalizar ao marido o que lhe ficou gravado na memória daquela fugaz mas intensa relação. Em suma, ela inventou para si e para Iori um código que mexeu com a vida de ambos e com o destino assombrado do efémero casal de amantes. Baseado num princípio de amor, proibido mas consentido e ritualizado até ao ponto em que a paixão se esvai numa outra face da vida, a morte.

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Não fosse a precipitada conclusão da cerimónia, que antecede as portentosas sequências finais em que Iori deveria seguir em frente sem hesitações com o suicídio que lhe fora ordenado, cerimónia que cheira a falso apesar da sua plausibilidade, “A Tragédia do Bushidô” seria um filme para 100/100. De qualquer modo, não deixa de ser um grande momento de cinema, moderno e clássico, onde está patente alguma experimentação imagética e sonora perfeitamente integrada na estrutura da montagem. Filme que assume ainda as convenções da reconstituição histórica numa linguagem que aponta para novas vagas criativas, e que sobretudo aposta na exaltação de personagens que se encontram numa espécie de limbo entre a vontade genuína de viver e os abismos sinuosos da morte. (90/100)

A Tragédia do Bushidô, a Crítica

Movie title: Bushidô Muzan

Director(s): Eitarô Morikawa

Actor(s): Miki Mori, Junichiro Yamashita, Hizuru Takachiho, Fumio Watanabe, Mutsuko Sakura, Sôhei Kurata

Genre: Drama, 1960, 74min

  • João Garção Borges - 90
90
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