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O Som do Nevoeiro, a Crítica | Ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos III

Hiroshi Shimizu realiza “O Som do Nevoeiro”, uma das obras em destaque no Ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos III da The Stone And The Plot!

Prosseguindo a excelente iniciativa de nos permitir ver em grande ecrã e em cópias de imaculado restauro uma série de filmes oriundos da indústria cinematográfica japonesa com produção situada entre os anos 1950 e 1960, a produtora e distribuidora The Stone And The Plot propõe agora na Terceira Parte do ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos uma singular programação: longas-metragens onde nas matérias abordadas se podem constatar algumas diferenças, não obstante existirem pontos de contacto, relativamente aos assuntos que ocupavam o principal das obras que integraram a Segunda Parte, mais voltadas para questões políticas e sociais que subsistiram no seio de numerosas contradições no período pós-Segunda Guerra Mundial, ou seja, o da reorganização democrática do país, o da redefinição das estruturas económicas e, de um modo geral, o das alterações das relações de classe e de género cujo cariz conservador sempre fora um espartilho do ponto de vista ideológico para o desenvolvimento sustentado do Japão. O salto em frente que acabou por ser assumido quando o país conseguiu libertar-se em grande medida do passado militarista e imperialista, assim como da canga da ocupação americana, passando com a devida distância a ocupar um lugar similar ao que hoje ocupa a sociedade chinesa com os seus índices de integração nos mercados a uma escala global.

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Três filmes. Três Realizadores. Três visões de um país e de um povo que então despontava para um novo rumo, mantendo no entanto a sua ligação a práticas e códigos de comportamento ancestrais, no fundo aquilo que definia e define a identidade nipónica.

MUTAÇÕES DO AMOR – A MONTANHA E OS EQUINÓCIOS DE OUTONO

O Som do Nevoeiro
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Este magnífico melodrama, “O Som do Nevoeiro”, de Hiroshi Shimizu, foi realizado por aquele que pode ser considerado o mais conhecido dos mestres “desconhecidos” do ciclo agora proposto. Da sua extensa filmografia recordo obras como “Raparigas Japonesas no Porto”, 1933, “Senhor Obrigado”, 1936, e “Os Massagistas e a Mulher”, 1938. Eram filmes que demonstravam um sentido estético e uma economia narrativa muito apreciáveis. Foi por isso com entusiasmo que aguardei o visionamento de “O Som do Nevoeiro”, uma obra onde esperava encontrar um decisivo salto qualitativo e quantitativo na síntese dos novos meios de produção da indústria nipónica (no período de reconstrução pós-Segunda Guerra Mundial) com os ecos da estética clássica que o autor dominava com perícia. E a surpresa não podia ser maior ao perceber que, mesmo numa era em que se começava a pôr decisivamente em causa as grandes linhas que formataram o passado, incluindo a do fascismo militarista e imperialista, havia lugar para argumentos que falavam das mutações da natureza humana, histórias aparentemente simples que levavam até ao extremo o fulgor de paixões perdidas, sem cair na armadilha do sentimentalismo fácil e na por vezes medíocre visão melodramática de amores contrariados.




Neste filme dividido em capítulos que se sucedem mantendo um ponto comum – a presença da majestática materialidade da montanha e a luz espectral da Lua iluminando os homens e a Natureza no equinócio de Outono – iremos descobrir a história singular de um professor, Kazuhiko Onuma (Ken Uehara) que em Kamikochi, Prefeitura de Nagano, se instalou numa cabana dos Alpes japoneses para se afastar dos conturbados anos da ocupação americana e do erguer de novas estruturas políticas e administrativas que nem sempre foram organizadas por gente séria, nomeadamente quando se sabia que alguns dos que haviam defendido o regime anterior se apresentavam agora sob o falso manto de “democratas”, como era o caso da mulher do professor, ausente em Tóquio, mas que um dia decide aparecer para confrontar o marido com o desejo de divórcio e com aquilo que já pressentia, a presença de outra mulher, Tsuruko (fabulosa prestação da actriz Michiyo Kogure). Esta, perante a pressão e provocações da legítima, decide afastar-se, e aí começa o seu calvário. De assistente e amante de Kazuhiko, anos depois ganha a vida como geisha. Será nessa condição que a vamos encontrar, no momento em que o professor, acompanhado da filha doente, regressava ao local onde outrora fora feliz nos braços de Tsuruko. Por mero acaso e, digamos assim, porque o destino não quis, só anos depois do desencontro que nessa altura irá acontecer, alterando e penalizando o futuro percurso de ambos, se irão de novo encontrar. Mas então já as contas se fazem de outra maneira.

O Som do Nevoeiro
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Na verdade, Tsuruko casara com um homem manifestamente nos antípodas do seu pretérito e, não custa acreditar, verdadeiro e sincero amor. Ele, apesar de viúvo e de certo modo livre, não resiste ao quadro apertado das convenções sociais que os impedem de avançar para uma união que parecia ser a solução existencial mais harmoniosa, aquela que podia rimar com o sentimento de pacificação interior que a montanha emprestava ao ritmo das coisas naquele lugar com qualquer coisa de mágico e, sobretudo, muito belo. Não vou adiantar mais, mas o final constitui a peça amarga, mas perfeita, que encaixa como uma luva na componente melodrama que dá corpo e alma a este conto moral sobre as mutações da paixão ao longo da vida. Quem não sentir um nó na garganta e uma saudável lágrima a correr pelo rosto ao assistir ao singelo mas grandioso e eficaz plano final, não sabe o que perde. Mil e um filmes foram feitos com estes pressupostos, alguns são obras-primas. Também os há que não funcionam. Mas esses não nos enchem a alma e não ficam na memória. Seja como for, para mim, “O Som do Nevoeiro” passou a figurar na lista sempre revista e ampliada dos melhores melodramas da História Mundial do Cinema. (100/100)

O Som do Nevoeiro, a Crítica

Movie title: Kiri no oto

Director(s): Hiroshi Shimizu

Actor(s): Ken Uehara, Michiyo Kogure, Keizô Kawasaki, Keiko Fujita, Chieko Naniwa, Takeshi Sakamoto, Bontarô Miake, Kumeko Urabe, Eijirô Yanagi

Genre: Drama, 1956, 84min

  • João Garção Borges - 100
100
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