© Amin Jafari, via Alambique Filmes

O Perdão, em análise

Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha trazem-nos “O Perdão”, um drama inquietante protagonizado por Moghadam, e Alireza Sani Far.

NÃO MATARÁS…!

No início de 2022, diversas frentes da distribuição cinematográfica em Portugal apostaram na estreia de alguns filmes que, sem qualquer sombra de dúvida, merecem a nossa melhor atenção. Destaque justificado pelas suas qualidades intrínsecas, assim como pela importância das matérias que estão subjacentes aos seus argumentos. Muitos são os assuntos difíceis de abordar, e muitos são aqueles que nos fazem reflectir sobre o mundo real em que vivemos e, naturalmente, exigem uma disponibilidade do espectador que não se pode confundir com a mera visão de uma qualquer fantasia digital enquanto se despacha mais um balde de pipocas. Deste modo, recordemos CORREU TUDO BEM, de François Ozon, distribuído pela LEOPARDO FILMES, que incide na questão da eutanásia, assim como na denúncia da hipócrita forma de contornar a sua proibição, desde que haja dinheiro para o fazer. Destaquemos O ACONTECIMENTO, de Audrey Diwan, da NOS AUDIOVISUAIS, que nos convoca para a questão da liberdade de uma mulher, leia-se das mulheres face a leis redutoras, poderem escolher uma maternidade desejada, sem pressões ou penalizações de natureza política, religiosa ou ideológica. Por fim, assinalemos a estreia de O PERDÃO, produção franco-iraniana dirigida por Behtash Sanaeeha e Maryam Moqadam, distribuída pela ALAMBIQUE FILMES, uma obra corajosa que nos confronta com a questão da pena de morte e suas consequências no comportamento de quem continua vivo mas sofreu uma perda irreversível, a morte do marido, que quase equivale a uma segunda morte. Na verdade, O PERDÃO não refere apenas a barbaridade da pena capital propriamente dita. O argumento vai mais longe e expõe, de forma muito clara, a brutalidade da sua aplicação quando, como se verá neste filme, ela resulta na execução de um homem que posteriormente as autoridades judiciais descobrem estar inocente.

O Perdão
© Amin Jafari, via Alambique Filmes
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Estreado em Fevereiro de 2020 no Fajr Film Festival, para muitos, dentro e fora do país, um dos mais importantes festivais de cinema do Irão, esta realização conjunta foi posteriormente exibida em diversos circuitos internacionais, nomeadamente na competição do Festival de Berlim de 2021. O seu nome em inglês, BALLAD OF A WHITE COW, possui uma significativa carga simbólica que o desenvolvimento imagético-narrativo nos irá esclarecer, não de forma cabal, mas antes como proposta de reflexão sobre a atitude que a nossa consciência podia ou não ditar se estivéssemos no corpo e na alma de uma mulher, assombrada pela dor e pela revolta que se mantém a muito custo reprimida. De início parece estranha a imagem, mesmo após a leitura da citação extraída do Corão, mais precisamente uma passagem da Al-Baqara, a Sura da Vaca, inserida como pré-genérico. Nela, Moisés, como reparação pela morte de um homem, pede ao seu povo para sacrificar uma vaca, e a resposta que o povo lhe dá faz pensar que o desígnio do profeta seria motivo de controvérsia. Deste modo, nos primeiros e derradeiros minutos do filme cabe-nos igualmente a nós, e não apenas aos que produziram o filme, interpretar a visão daquele plano de uma vaca perfilada no pátio de uma prisão, fotografada como um ser imenso de contornos oníricos que divide homens e mulheres. Uma espécie de monstro prestes a ser salvo ou sacrificado, como se as possíveis respostas aos dilemas da vida e da morte estivessem ainda hoje por resolver, e o destino da vaca por decidir. Mas, para chegarmos a uma hipótese de solução a partir de uma reflexão interior, iremos acompanhar o autêntico calvário de uma mulher que assistiu a uma morte que nunca deveria ocorrer, acabando por ser igualmente vítima do erro fatal cometido pelo poder judicial. Este, por seu lado, procura sacudir as suas responsabilidades invocando uma falha no julgamento devido a uma confissão falsa e a uma confusão sobre o que realmente sucedera no local do crime que fez até a própria vítima do erro pensar ser sua a responsabilidade do crime que afinal não cometera. Uma falha grave de percepção que, não sendo reparável, porque o preço da vida não possui qualquer correspondência com qualquer atribuição de uma indemnização monetária, subverte por completo o conceito de justiça num sistema, qualquer sistema, em que a pena máxima continue em vigor. Porque os erros, com consequências desta magnitude, podem acontecer em qualquer parte do mundo onde os homens julgam outros homens, sendo por isso os primeiros responsáveis pelos seus actos, por muito que alguns queiram atribuir a responsabilidade maior ao destino ou a uma invocação de Deus que merece ser apelidada de abusiva e em vão. Este falso juízo sobre o que se passara irá de igual modo subverter a vida de um dos juízes que assinou a sentença e que, num expediente ficcional de grande eficácia, não se irá confessar como arrependido nem pedir perdão a quem o devia fazer, mantendo antes com a protagonista, a mulher do condenado, uma relação de gradual intimidade povoada de segredos e de um segredo maior que só o espectador e alguns colegas de profissão conhecem. Nós sabemos mais do que a viúva, Mina, magnífica interpretação da co-realizadora Maryam Moqadam. Por isso, sentimos uma certa cumplicidade com o silêncio de outras personagens, desculpamos as mentiras que ela conta para esconder da filha surda e muda o que realmente aconteceu ao pai. Há mesmo uma altura em que desejamos que ela esqueça o passado e encare o futuro com outros olhos e outros pensamentos, como muitos lhe propõem. Pouco a pouco sentimos que ela só poderia ganhar se o fizesse, mantendo o seu olhar inocente, o que acredita numa reparação através de um pedido de perdão público que, legitimamente, pensa ser-lhe devido. Infelizmente, ao confrontar a sociedade quer no plano privado quer nos meandros da burocracia oficial, nada favorece a sua demanda por uma pacificação espiritual, sobrevivendo apenas um pesado impasse existencial.

O Perdão
© Amin Jafari, via Alambique Filmes

No plano da realização, como sucedia com os outros filmes inicialmente citados, estamos de novo na presença de um exercício fílmico que deixa a porta aberta para a Direcção de Fotografia definir um espaço preciso onde, através de planos maioritariamente fixos, o que de mais importante sobressai são os actores e as suas relações, as contradições geradas pelos que apoiam a viúva e os que indicam caminhos que nada adiantam para resolver os seus problemas familiares. Há muito do ser e estar iraniano nesta abordagem de uma sociedade que, por um lado, possui uma flexibilidade de pensamento sem barreiras e, por outro, não sabe ou não quer saber como se abandonam velhos conceitos, nomeadamente os que apontam para práticas discriminatórias, numa sociedade influenciada mas não completamente dominada pelo pensamento religioso. Diga-se em abono da verdade que, no mundo que se julga livre, a cartilha dos preconceitos nem sempre se mostra muito divergente da que prevalece no interior de algumas fronteiras onde devíamos sentir apenas saudáveis diferenças culturais.

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Será importante dizer que este filme não usa ficção panfletária e manipuladora para denunciar a realidade nua e crua da pena de morte num determinado contexto geográfico. Como referi anteriormente, faz muito melhor do que isso, porque nos deixa espaço para pensarmos. No percurso de uma mulher em busca de justiça, justiça que falhou por a análise da realidade ser falível, o filme aponta o perigo de julgamentos materiais ou morais de consequências irreversíveis, seja no Irão, seja em qualquer parte do mundo. Deixem-me recordar aqui um grande filme polaco, KRÓTKI FILM O ZABIJANIU, 1988, que circulou internacionalmente sobretudo sob a designação inglesa A SHORT FILM ABOUT KILLING. No final dos anos 80, este filme dirigido pelo mestre Krzysztof Kieślowski mostrava o dilema de um jovem advogado que, após a execução de um criminoso, colocava em causa o direito do Estado e do sistema legal, em nome dos cidadãos, poder decidir sobre a vida e a morte de qualquer pessoa, mesmo que ela fosse culpada e autora de um crime. Seria interessante poder confrontar O PERDÃO com essa obra que, numa versão mais reduzida, acabou por integrar um dos grandes projectos do realizador polaco, o DEKALOG (DECÁLOGO), uma série de dez médias-metragens estruturada com base nos Dez Mandamentos bíblicos. Na hierarquia da série, o breve filme sobre o acto de matar correspondeu ao episódio NÃO MATARÁS!, e a sua matéria ficcional não podia ser mais esclarecedora da posição humanista e revolucionária do autor, num momento em que na Polónia e em muitas parcelas do mundo, mais ainda do que hoje, se aplicava a pena de morte.

O Perdão
© Amin Jafari, via Alambique Filmes

Em O PERDÃO, a acção situa-se no Irão, mas nunca será demais lembrar que erros, como os que estão na base do principal conflito dramático do filme, já foram cometidos em muitos outros países que insistem em manter a pena de morte. Infelizmente, muitos que dizem defender os valores da democracia continuam hoje a manter a pena capital.

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Se este filme contribuir para a discussão urgente sobre um assunto extremamente relevante do ponto de vista civilizacional, já pode ser considerado um vencedor na missão de nos mobilizar para a construção de uma sociedade mais justa onde, idealmente, nenhum inocente possa ser condenado. Onde, em vez do matem a vaca ou matem o homem, prevaleça o NÃO MATARÁS!

O Perdão, em análise
O Perdão

Movie title: O Perdão

Date published: 11 de January de 2022

Director(s): Maryam Moghadam, Behtash Sanaeeha

Actor(s): Maryam Moghadam, Alireza Sani Far, Avin Poor Raoufi, Pouria Rahimi Sam

Genre: Drama, 2020, 105 min

  • João Garção Borges - 70
70

Conclusão

PRÓS: Mais um filme que apresenta razões de sobra para uma reflexão séria sobre os assuntos que moldam as diferentes sociedades onde a justiça dos homens se aplica, nem sempre isenta de erros de consequências dramaticamente irreversíveis.

Uma realização corajosa, que merece ser apoiada no seu propósito de nos relatar uma realidade concreta que não passa necessariamente e só pela exposição dos meandros judiciais iranianos. Neste filme há uma outra realidade que acaba exposta através da visão dos impasses de culpa e da má-consciência dos que assinam sentenças erradas, na hipocrisia da burocracia, na forma egoísta como familiares próximos cercam a viúva de um homem condenado e executado por um erro judicial.

Direcção de Fotografia compatível com o propósito da dupla de realizadores fazer incidir sobre a protagonista, Mina, o foco de atenção dos espectadores, que ao longo de grande parte da narrativa irão partilhar um segredo com aquele que se aproxima da viúva e do seu espaço familiar para saldar uma dívida para com o marido morto. Dívida nunca explicada pelo próprio mas denunciada por outro, acabando essa provocação por desencadear a fortíssima descarga emocional que observaremos nos momentos finais, numa altura em que a montagem volta de novo ao plano simbólico da vaca e introduz outra dimensão simbólica e de morte, ou não, materializada na solitária e derradeira relação entre mãe e filha.

CONTRA: Nada que impeça o usufruto de um exercício fílmico a que devemos dar a devida e necessária atenção.

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