"O Que Arde" | © Alambique Filmes

LEFFEST ’19 | O Que Arde, em análise

O Que Arde” de Oliver Laxe foi premiado no Festival de Cannes e, agora, chega a Portugal na secção competitiva do Lisbon & Sintra Film Festival.

Tudo começa nas trevas. É noite e um brilho etéreo rompe a santidade da sombra, árvores sinuosas a serem desenhadas pela luz. Estamos a ver uma floresta, mas ela é-nos apresentada de forma estranha, fantasmagórica, a câmara transfigura a realidade num sonho de quietude hipnotizante. Ouvem-se ruídos indefinidos à distância, o rugir de gigantes quiçá ou a canção da Terra e suas divindades primordiais. A calma é violada quando forças invisíveis dilaceram as árvores, fazendo oscilar os seus troncos no céu noturno até que elas caem. Trata-se de um espetáculo aterrador e belo, um pesadelo venenoso e poético que nos faz delirar antes do acordar violento.

A câmara de Oliver Laxe assim filma a floresta galega, elevando a sua mundana destruição ao patamar de uma lenda ancestral. Acontece que as forças que violentavam os troncos não eram divindades tenebrosas, mas sim buldózeres. A luz etérea não provinha de uma lua sinistra, mas sim dos faróis poderosos dessas máquinas de destruição. É com um apocalipse florestal que “O Que Arde” começa e é com outro apocalipse que vai terminar. O título não engana e, muito depois deste espetáculo de lenharia espectral, iremos ver o mesmo arvoredo explodir num inferno de labaredas furiosas.

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© Alambique Filmes

Nesse aspeto, o filme afirma-se como uma tragédia, tão mais forte pela inevitabilidade do seu fado. A floresta é a heroína trágica da história, mas é o destino de um homem que dá forma à narrativa observacional. Amador Coro é um pirómano de regresso à comunidade rural onde vivia, depois de anos atrás das grades devido à sua mão em incêndios desastrosos. Quando ele se sai da prisão ninguém o espera com sorrisos na cara e só a mãe idosa lhe celebra a libertação. Benedicta está em casa, pronta a acolher o filho e a continuar a trabalhar na quinta que parece pertencer à família desde tempos imemoriais.

O trabalho é duro, especialmente para uma idosa frágil e um magro homem de meia-idade, mas a parelha lá se orienta pelos afazeres da vida rural. Perto dos caminhos por onde mãe e filho passeiam o gado, um grupo de destemidos renovadores tenta reconstruir um casarão antigo. A esperança de que a floresta frondosa possa atrair turistas à região é o combustível que lhes motiva o trabalho, sugerindo um futuro moderno para este local que parece perdido nas marés do tempo. Constrói-se e renova-se, o gado pasta e as vacas são ordenhadas, atravessa-se a serra de carro e o sol brilha.

Assim se desdobram os dias destas figuras e assim é “O Que Arde”, este poema do quotidiano rural que parece mais interessado em embalar o espectador do que em o estimular. Quem vê o filme é docemente conduzido a um estado de transe, envolvido pelos seus crepitantes da Natureza e embriagada pela sua beleza pastoral. Até as personagens humanas parecem ser uma extensão da flora verdejante, tão perpétua é a sua comunhão com os caprichos da terra e sua maravilha. Laxe efetivamente compõe uma carta de amor à floresta da Galícia e, pelo caminho, faz-nos também apaixonar por essas paisagens.

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Dessa paixão vai florescer muita dor, mas antes de tais prantos, “O Que Arde” desenha-nos um estranho estudo de personagem focado em Amador. Apesar de sua culpa ou inocência nunca serem postas em causa, Laxe delineia-nos a pintura de uma espectro vivo que é rebaixado pela comunidade que integra. Esse tratamento pode ser justificado, mas não deixa de assombrar o filme com a melancolia de um pária social. A câmara grava a paz terrena da vida rural, não deixando de capturar sua solidão e mesquinhices também. É vida dura e vida bela, sôfrega e transcendente, cosmicamente simples e complicada pelos espectros da desgraça passada e da desgraça futura. A paz é insustentável e o terror é súbito quando aqui se manifesta.

Por conseguinte, outro assombro da película é o crime de Amador. Ele é como que uma profecia de desgraça iminente, destinada a se concretizar quando todos menos esperam. Laxe não se fica por meias medidas, catapultando “O Que Arde” para um novo registo com tanta violência como aquelas árvores decepadas no prólogo da fita. De um momento para o outro, o fogo deflagra pela floresta e todos tentam travá-lo em desespero e agonia. Os bombeiros tornam-se os protagonistas desta história de água e fogo, de vida verde e Morte carbonizada. É aqui também que a membrana que separa a ficção do documentário se começa a desfragmentar, originando uma experiência bizarra com um pé na dor real e o engenho do cinema.

Uma coisa é certa, não obstante as possíveis fusões de artifício dramático e documentário improvisado, este ato de “O Que Arde” é um testamento aos talentos do seu realizador. Oliver Laxe filma tudo com o olhar de um pintor e de um jornalista, fundindo o lírico com o documental sem nunca vacilar ou dar a impressão de um desequilíbrio tonal. A fotografia queima as retinas do espectador com visões de fogo tornado monumento e o som sufoca com o pânico de quem tenta salvar a casa do fogo. É um pesadelo lúcido e prova de como a poesia devastadora do prólogo era só o aguçar do apetite para o espetáculo inglório do clímax. Tamanho é este inferno que, quando o fogo acalma e o fumo levanta, o espectador sente-se quase exausto e abençoado com uma falsa noção de catarse.

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Afinal, a calma que se restabelece neste campo de eucaliptos queimados é moribunda e nada tem que ver com a paz da floresta natural. A fusão de todas estas imagens e ideias, destas histórias de criminosos retornados e empreendedores esperançosos, conjura uma tapeçaria de significado incerto. Sente-se o poder da mensagem do cineasta, mas decifrá-la é um afazer mais complicado. Felizmente, “O Que Arde” não é nenhum puzzle a pedir para ser resolvido e transformado num tratado ambientalista. Mais do que isso, o filme é uma sedução dos sentidos e um espicaçar do medo, é uma homenagem à floresta e seu elogio fúnebre. “O Que Arde” arrebata os sentidos e inflama a imaginação, consagrando Oliver Laxe como um dos grandes cineastas dos nossos tempos.

O Que Arde, em análise
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Movie title: O Que Arde

Date published: 20 de November de 2019

Director(s): Oliver Laxe

Actor(s): Amador Arias, Benedicta Sánchez, Elena Mar Fernández, Inazio Abrao, Luis Manuel Guerrero Sánchez, Rúben Gómez Coelho, David de Peso

Genre: Drama, 2019, 90 min

  • Cláudio Alves - 88
  • Virgílio Jesus - 90
89

CONCLUSÃO:

“O Que Arde” é uma história de reticências e elipses, um conto incompleto e deliberado sobre um incendiário e a floresta a que ele chama casa. Trata-se de um documento de desastres modernos, mas é também um hino sobre a luta humana contra o caos, sobre o seu poder e inevitabilidade. Trata-se de um grande filme, podemos dizer. Um grande filme feito para enfeitiçar os sentidos e frustrar o intelecto, para confundir e maravilhar.

O MELHOR: A imersão sensorial de todo o aparato, desde o pesadelo etéreo do prólogo aos infernos incendiários do clímax, passando pela paz bucólica do quotidiano pastoral.

O PIOR: O flagelo do incêndio é doloroso de ver, mesmo que também seja belo.

CA

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