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LEFFEST ’18 | A Pereira Brava, em análise

“A Pereira Brava” encontra o realizador Nuri Bilge Ceylan a refletir sobre a impetuosidade e arrogância do artista na sua juventude. O filme competiu no Festival de Cannes deste ano e está agora no Lisbon & Sintra Film Festival.

Desde que foi edificada pela trupe da Cahiers du Cinéma, que a teoria de autor se tem vindo a tornar tão importante para a apreciação fílmica atual que é praticamente impossível imaginar a esfera da crítica cinematográfica sem a base de valores estabelecida por essa mesma teoria. Até quem não conhece a existência destas ideias é de alguma forma influenciado por elas, pois até os meios de consumo cinematográfico são moldadas pelos seus ditames. Sempre que alguém fala de um filme no contexto do trabalho do seu realizador está, mesmo que inadvertidamente, a avaliar a obra por um prisma intelectual derivado da teoria de autor.

Sempre houve quem se opusesse às ideias de autor singular e glorificação desmedida da figura do realizador promovidas pela teoria, mas, hoje em dia, em círculos académicos e críticos, parece estar a tornar-se cada vez mais comum encontrar vozes contra a hegemonia desta forma de pensamento. Tal retórica anti teoria de autor terá um bom caso de estudo na forma de “A Pereira Brava”. Trata-se de um filme cuja relação com a obra, estilo e vida do seu realizador é tão importante para o entendimento das suas intenções que a obra ganha uma qualidade confusa, quase incoerente, quando retirada desse contexto.

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Uma obra essencial para fãs de Nuri Bilge Ceylan.

O mais recente filme do cineasta turco Nuri Bilge Ceylan retrata o regresso de Sinan à sua terra natal de Çan e à casa dos pais, depois de ter passados os últimos anos a estudar na faculdade. Ele é um aspirante a escritor que tanto reconhece a sua pequenez graças uma perspetiva niilista da vida, como se considera muito importante, genial e portador da razão num mundo cego. Sinan desdenha o pai pela sua excentricidade e fraqueza, pelo vício no jogo e pelo que o patriarca pedagogo reflete a Sinan sobre si mesmo. Talvez ainda mais intenso é o seu desprezo pela mãe, que ele menospreza por se ter casado com o marido falhado. Nesta unidade familiar existe também uma irmã mais nova pela qual nem o filme nem Sinan se interessam muito.

Sinan é um homem cheio de ódio misógino e condescendência para tudo e todos os que rodeiam, justificando-se com a ambição artística que lhe corre nas veias. Ele assume uma atitude de antagonismo e provocação típica de elites intelectuais com aspirações a grandeza cultural. É com isso e boa dose de idealismo imaturo que ele confronta as várias pessoas a quem pede ajuda e conselhos para a publicação da sua aparente magnum opus, “A Pereira Brava”. Reunindo em si vários ensaios e contos onde Sinan reflete sobre Çan e suas pessoas, esta é uma obra de suposta metatextualidade e natureza biográfica, um miasma de complicações literárias que nem o autor consegue descrever. Além do mais, a odisseia da sua publicação constitui o único esqueleto estrutural nesta tapeçaria de intermináveis conversas.

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Ceylan nunca se manifesta em relação à qualidade deste livro, mas também nunca deixa trespassar qualquer julgamento sobre o seu protagonista. Por um lado, podemos admirar quão abrasivo Sinan é, quão a sua pessoa serve de crítica a esferas da sociedade prontas a virar a cara aos ambientes rurais que os viram nascer, a jovens que egocêntricos que se julgam detentores da verdade e que aceitam políticas violentamente ditatoriais com uma gargalhada gozona ou pacata indiferença. No entanto, há uma reticência no modo como o realizador filma esta personagem profundamente antipática, uma relutância em articular um texto e discurso formal que ativamente condenem as atitudes de Sinan.

Tal ambivalência resulta em muita frustração para o espetador. Contudo, é também algo entendível quando consideramos quanto Sinan representa um reflexo do próprio realizador na sua juventude, em confronto direto com os limites da sua ambição, do seu talento e com a potencial irrelevância do seu trabalho. Na viagem do escritor de volta à terra natal e seu minar de inspiração nas pessoas e paisagens que o viram crescer, Ceylan parece estar a exumar o fantasma dos seus primeiros dois filmes, “Kasaba” e “Mayis Sikintisi”. O primeiro foi uma ficção focada no diálogo de uma família rural interpretada pelos familiares e amigos do realizador, enquanto o segundo é um metafilme refletivo sobre as filmagens do esforço anterior.

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Há uma qualidade quase apocalíptica em algumas das imagens do filme.

Não é difícil ver paralelos entre Sinan e seu realizador, entre o escritor embriagado na arrogância da juventude e o cineasta que Ceylan terá sido em tempos. Até o encontro tempestuoso entre o jovem e um escritor consagrado reflete a discórdia entre o realizador turco e um dos seus mentores. Tal dinâmica abençoa “A Pereira Brava” com um lugar de primazia na filmografia de Nuri Bilge Ceylan, representando uma meditação sobre o começo da carreira do realizador construída com todo o primor e mecanismos estilísticos que agora o afirmam como um dos portentosos mestres da contemporaneidade cinematográfica. Contudo, também representa um trabalho que, sem essa ligação pessoal, facilmente seria encarado como uma coleção de clichés do cinema de festival intoxicado pela sua própria autoimportância e gestos estilísticos reacionários.

“A Pereira Brava” é uma obra feita de imensas e muito longas conversas filosóficas entre Sinan e uma variedade de intervenientes, desde seus familiares a dois imãs que ele encontra a apanhar maçãs de uma árvore selvagem. Como já tem sido costume na filmografia recente do cineasta, a referência narrativa a Tchekhov e Dostoiévski nunca está muito distante. De facto, são precisamente estes diálogos de duração indulgente e filmados com ênfase nas paisagens circundantes que constituem a parte menos bem conseguida do filme. A não ser em momentos fulcrais, como uma conversa tardia entre Sinan e seu pai ou o já mencionado confronto com o outro escritor, os diálogos tendem a ser pouco claros e dar a todo o filme uma pátina de indisciplina híper verbosa.

No meio de tudo isto, “A Pereira Brava” contém em si um filme que não é só interessante pela reflexão pessoal de Ceylan sobre si mesmo. Com mais uma passagem pela mesa de corte, no lugar desta obra poderíamos um drama familiar complexo, com considerações políticas urgentes e uma visão intelectualmente desafiadora sobre as impetuosidades da juventude do artista. Enfim, esse filme não existe e temos de encarar a realidade de “A Pereira Brava”, com seus problemas e muitas sugestões de grandeza. Pelo menos, a obra tem a decência de terminar com o seu mais astuto gesto, um homem a escavar um poço inútil, em luta sisífia contra a irrelevância do seu gesto artístico e a morte dos sonhos que lhe dão razão para viver.

A Pereira Brava, em análise
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Movie title: Ahlat Agaci

Date published: 20 de November de 2018

Director(s): Nuri Bilge Ceylan

Actor(s): Dogu Demirkol, Murat Cemcir, Bennu Yildirimlar, Hazar Ergüçlü, Serkan Keskin, Tamer Levent, Öner Erkan, Ahmet Rifat Sungar, Akin Aksu, Kubilay Tunçer

Genre: Drama, 2018, 188 min

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO

“A Pereira Brava” é uma obra essencial para fãs de Nuri Bilge Ceylan e representa uma necessária meditação sobre as origens do realizador e seu percurso artístico. Contudo, seu amor por diálogo excessivo e ambivalência sintomática em relação ao protagonista tendem a ofuscar os melhores elementos da fita, nomeadamente toda a dinâmica familiar no seu centro. Os atores são exímios, o texto problemático e as imagens oscilam entre a grandiosidade aborrecida e a genuína espetacularidade solene.

O MELHOR: A conversa acompanhada de imagética quase apocalíptica que Sinan tem com o seu pai, perto do fim de “A Pereira Brava”.

O PIOR: Sinan é um dos protagonistas mais irritantes no cinema de 2018.

CA

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