10ª Festa do Cinema Italiano | Perfetti sconosciuti, em análise

A caixa de Pandora que é o telemóvel onde cada pessoa guarda alguns dos seus maiores segredos é violentamente aberta em Perfetti sconosciuti com efeitos devastadores. Este é um dos filmes em exibição na 10ª Festa do Cinema Italiano, dentro da secção Panorama.

Perfetti sconosciuti festa do cinema italiano

Amizades que perduram desde a infância até às antípodas da meia-idade sem perderem o seu fulgor são algo relativamente raro na vida real, mas o mesmo não acontece no mundo do cinema. Nos filmes, grupos de amigos assim parecem existir sem qualquer problema, sempre unidos, fazendo parte do mundo uns dos outros independentemente da passagem do tempo e das marés incertas de vidas desenroladas a diferentes ritmos. Para a audiência, tal preciosidade torna-se num ideal escapista, numa fonte de júbilo na felicidade alheia, mas também se torna num punhal que rasga melancolia, ao sugerir ao público a perda de algo que, talvez, muitas pessoas nunca tiveram. De algum modo, o vazio da inexistência torna-se mais doloroso que a perda genuína.

Em Perfetti sconosciuti, o realizador e argumentista Paolo Genovese mostra-nos um desses grupos, mas a sua apresentação está longe de ser uma celebração de tal ideal sacro do cinema de entretenimento. Pelo contrário, este é um filme em que sete amigos de meia-idade cuja ligação, pelo menos dos homens, remonta à juventude partilhada, e que, ao longo de uma noite, veem os seus segredos tornarem-se públicos e as suas vidas estilhaçadas no processo. Tudo começa com estes três casais e um homem que diz ter a namorada doente em casa, a juntar-se para um jantar em que participam num peculiar jogo.  Ao longo da noite, todos eles mantêm os telemóveis em cima da mesa e comprometem-se a partilhar qualquer mensagem que lhes seja enviada e a atenderem os telefonemas em altifalante para todos ouvirem. Essa verdade absoluta que nos diz que todos nós temos segredos prova ser verdade e, como o título sugere, amigos de longa data, namorados e esposos olham uns para os outros como se se tivessem apercebido que são, na verdade, perfeitos estranhos.

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Se formos sinceros, temos de admitir que este não é um filme de grande originalidade a nível concetual. Afinal, quem é que nunca já ouviu ou experienciou tal dissecação dos segredos íntimos que nos separam mesmo daqueles que mais amamos? Existem inúmeras séries televisivas que se apoiam singularmente nessa ideia, que mesmo em comunidades pequenas, todos têm segredos e que ninguém realmente conhece completamente outra pessoa, por muito que se sinta segura que isso não é verdade. Para além do mais, a conflagração de todo este conflito num jantar dá uma aparência particularmente teatral a todo o filme, ou pelo menos, dá-lhe a atmosfera de um “bottle episode” de um drama televisivo.

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A nível formal, a situação está longe de ser melhor e essas qualidades teatrais e televisivas são apenas exacerbadas. O apartamento principal, por exemplo, é enorme cheio de salas amplas e luzes constantemente ligadas a impedir qualquer sombra indesejada a cortar visibilidade ao movimento dos atores em cena. Tal cenário poderia dar azo a uma crítica de teor social que saliente o ignóbil privilégio económico destes indivíduos sofredores e mentirosos, mas é a sua qualidade de palco que perturba a nível estético. Efetivamente, o apartamento nunca parece vivido, tem sempre o ar de um cenário pisado pela primeira vez quando os atores chegam a cena. A montagem, se possível, é ainda pior, fragmentando ações e reações em pequenos estilhaços que violentam o ritmo natural do texto e seus intérpretes de um modo incrivelmente distrativo. De certo modo, essa abordagem lembra o recente filme de Denzel Washington, Vedações, em que, a montagem recortava cada instante em desnecessários fragmentos numa busca de dinamismo num drama espacialmente confinado a uma só localização.

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O que realmente funciona no meio de tudo isto é o guião que, não obstante uma diabólica falta de criatividade em termos de premissa e tema central, é bastante eficiente na sua conjugação de uma série de conflitos e narrativas pessoais em cataclísmica colisão e entrelaçamento. A maneira como cada pessoa tem os seus segredos revelados e a sequência de reações é orquestrada de modo surpreendentemente elegante e dramaticamente eficaz sem trair a coerência das personagens. Veja-se, por exemplo, o modo como Peppe, o amigo que veio ao jantar sozinho, troca de telefones com um dos companheiros casados. Isso é feito para impedir que a sua esposa descubra que, todas as noites, ele recebe uma foto picante de uma mulher com quem anda a manter uma relação adúltera. Infelizmente, o tiro sai pela culatra e o amigo de Peppe acaba por ser acusado de ter um caso com outro homem e de ter escondido a sua sexualidade de todos, incluindo da sua esposa.

É claro que, nesta situação, Peppe é quem realmente tem um namorado e quem nunca revelou aos seus amigos que era homossexual, mas o aspeto genial do esquema, é como a confusão permite a Peppe experienciar em segunda mão as reações homofóbicas de alguns dos seus amigos. Associando isso ao modo como todos pensam que se trata de um caso de adultério, eles são particularmente cruéis e abertos, assim como hipócritas, na sua resposta venenosa. Silenciosamente, observamos como Peppe reage a tudo isso, antes da sua revelação perto do final, acompanhada de um discurso que rasga qualquer semblante de amizade e respeito que ainda houvesse entre estas pessoas, todas eles traidores, mentirosos ou preconceituosos sem capacidade de autocrítica.

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Graças aos atores e ao tom sério com que Genovese filma tudo isto, a louca pilha de segredos revelados não se torna em algo ridículo. Na verdade existe mesmo dor sincera, especialmente  em reações como as de Alba Rochwacher como uma mulher recém-casada que descobre uma traição enorme do marido após ter sido ela mesma questionada sobre o seu relacionamento com um ex-namorado agora seu amigo. Por muito que este circo de intrigas seja puro melodrama, nunca ousamos sorrir pois vemos o efeito que os segredos têm uns nos outros, como relações amorosas são esvaziadas de afeto, como confianças íntimas se evaporam e como essa tão sacra amizade que dura há décadas se prova oca e desprovida de qualquer poder genuíno, a não ser numa singular instância em que uma personagem aborta a sua saída dramática para arrombar uma porta, por detrás de onde ele teme que possa estar a acontecer uma tentativa de suicídio.

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Ao longo de quase toda a trama de Perfetti sconosciuti, Genovese emoldura o crescente caos com um eclipse lunar muito mal simulado por efeitos digitais. No final, quando praticamente todos os segredos foram postos a nu e o eclipse terminou, o realizador mostra-nos as várias pessoas a sair do edifício do apartamento. O que torna este final em algo especial é que se trata de uma conclusão alternativa em que, afinal, eles nunca fizeram o jogo dos telemóveis, nenhum segredo foi revelado e continuam todos unidos pelos mesmos laços do início do filme. Mentiras e fachadas são a base que nos permite viver em sociedade e, segundo o filme, também são o que permite a estes amigos e amados manterem-se exteriormente unidos. Sendo assim, levanta-se uma questão muito importante. Qual é a melhor escolha? A realidade em que os segredos foram revelados, em que as genuínas uniões emocionais perduram à força e em que todos realmente se veem uns aos outros com um semblante de honestidade; ou a realidade em que todos se mantêm protegidos atrás das suas máscaras, confortados por amizades e casamentos baseados em mentiras, falsidades e segredos nunca partilhados?

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O MELHOR: A interrogação que o filme deixa no coração do público aquando do seu final.

O PIOR: Toda a história do eclipse simbólico é terrível, mas ainda pior é o peculiar pânico tecnofóbico perante os telemóveis e seu controlo sobre a vida das pessoas na sociedade moderna.



Título Original:
Perfetti sconosciuti
Realizador:
Paolo Genovese
Elenco:
Giuseppe Battiston, Anna Foglietta, Marco Giallini,  Alba Rohrwacher,  Valerio Mastandrea
Drama, Comédia | 2016 | 97 min

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