"Pinóquio de Guillermo del Toro" | © Netflix

Pinóquio de Guillermo del Toro, em análise

Há mais de uma década em produção, o “Pinóquio de Guillermo del Toro” finalmente estreou. Primeiro passou nas salas de cinema, mas agora pode ser encontrado na Netflix, onde deliciará miúdos e graúdos com uma adaptação idiossincrática do romance clássico de Carlo Collodi. Com Ewan McGregor, David Bradley, Cate Blanchett e Tilda Swinton no elenco, esta é uma fita luxuosa, com canções e banda-sonora assinadas pelo Oscarizado Alexandre Desplat. Na corrida para o Óscar de Melhor Filme de Animação, já se afigura este projeto como um dos grandes favoritos. Aliás, já conquistou três nomeações para os Globos de Ouro.

Guillermo del Toro é um daqueles cineastas que, fosse o que fosse, havia sempre de realizar um filme de animação. Não dizemos isto para desvalorizar o milagre do seu “Pinóquio,” mas para situar o leitor no contexto de uma filmografia que sempre teve tendências animadas. Tanto esse mestre mexicano investe no design rebuscado dos seus mundos, nutrindo sempre muito amor por monstros possibilitados pelos efeitos especiais, a maquilhagem e o figurino expressivo. Aliás, rara é a localização real na sua obra, sendo quase tudo feito em estúdio, onde o controlo é absoluto e artifício hermético possibilita a magia máxima.

Na transição para o cinema animado, quase nada se altera a não ser a dimensão dos cenários e a natureza dos atores. Rejeitados sãos os intérpretes de carne e osso, confinados à gravação vocal enquanto as personagens se manifestam em materialidades desumanas. De facto, quando se fala dessas figuras, quiçá fosse bem elaborar uma mini lição de História. É que, não obstante o título, o “Pinóquio de Guillermo del Toro” tem outro realizador. Trata-se de Mark Gustafson, cujo currículo inclui alguns hediondos sonhos de stop-motion em estilos rígidos como as várias desventuras pelo Claymation e “The Adventures of Mark Twain” em 1985.

pinoquio de guillermo del toro
© Netflix

Gustafson está associado ao “Pinóquio” há ainda mais tempo que del Toro e, se o colega definiu o aspeto do mundo, foi este animador de longa data quem elaborou as marionetas. Isso é importante, pois uma das características mais inconfundíveis deste filme é quanto a animação dos bonecos foge à regra de fluidez estabelecida por casas como a Disney ou a Laika. Desde Geppetto à Morte, existe uma inexpressão deliberada no seu semblante, cabelos esculpidos e faces severas como se de esculturas em madeira se tratassem. Estamos perante um cosmos narrativo onde a Humanidade se afigura como uma coleção de brinquedos antigos manuseados pela mão de alguma criança divina. É um efeito que tanto remete para o infantil como para o sofisticado.

Curiosamente, só uma personagem foge à regra. Não, não é o Grilo Falante que nem boca parece ter e cujos olhos esbranquiçados jamais brilham com vida. Não, também não é a parelha de espíritos do além, irmãs que dão vida e concedem o fim, seus corpos entre o anjo bíblico e a esfinge egípcia, suas caras máscaras imóveis. Em escolha surpreendente, Pinóquio é quem tem mais vida. Parte disso deve-se ao uso de várias cabeças moldáveis, enquanto as restantes figuras foram fabricadas com esqueletos internos. Além dessa concretização técnica, o menino de madeira move-se com uma vitalidade distinta, não necessariamente realista, mas mais perto do que o olho reconhece como organismo.

Essa qualidade vinga no final comovente e depressa nos dá a entender quanto este filme retorce o conto original ao mesmo tempo que se mantém fiel ao tom. Acontece que, se as personagens animadas devem mais a Gustafson, o argumento tem a marca de Guillermo del Toro gravada a ferro e fogo. Logo se entende isso com a transposição temporal da história, de uma Europa indefinida algures no século XIX, para uma Itália fascista ainda a recuperar do flagelo da Primeira Grande Guerra. Não é a primeira vez que o cineasta repensa histórias clássicas segundo o preceito do antifascismo. O que é “O Labirinto do Fauno” se não “Alice no País das Maravilhas” em Espanha franquista?

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Para quem julgue que essa contextualização é mero adorno, o prólogo do filme depressa tira as dúvidas e mostra como os cineastas estão empenhados em filtrar o conto-de-fadas através da História. Nessas passagens de abertura, encontramos Geppetto como carpinteiro envelhecido que passa os dias na companhia do filho pequeno. Em tempo de guerra, um bombardeamento inesperado mata a criança, escoriando parte da igreja local também. A criação de Pinóquio é assim vista como um ato de luto, o desespero de um patriarca virado para a bebida e para a autodestruição depois da tragédia. A própria madeira vem de uma pinha plantada pelo menino defunto e o desejo mágico ocorre entre paroxismos de dor.

Quando a vida é concedida por entidades superiores, o protagonista não é nenhum filho perfeito, mas um traquinas cuja inocência resvala em rebaldia. Enquanto entidade caótica, este Pinóquio renega a moral oitocentista do original pois, para del Toro, desobedecer à autoridade não é algo negativo. Novamente, o contexto histórico redefine as personagens, tornando-se esta odisseia fantasiosa numa lição sobre aceitar os acasos da vida e não tentar impor ordens com força destrutiva. Isso aplica-se tanto à política como aos valores tradicionais em que cada filho é propriedade do patriarca e deve ser por ele moldado à imagem de masculinidades estoicas.

Muito se fala de Itália como um Pai sobre-humano e de Mussolini como uma espécie de líder paternal. Os inimigos da marioneta sem fios querem-no explorar, ora como comodidade económica, ora como soldado perfeito e é Geppetto quem tem de aprender a amar a criação como algo diferente das suas expetativas. A ilha dos prazeres já não é lugar de hedonismo vilificado, mas sim um campo de treino para a juventude fascista, entre muitas outras mudanças. Contudo, com cada alteração dramática, del Toro e companhia mantêm-se próximos dos poderes mais inefáveis da prosa de Collodi. Nomeadamente, entre o sentimentalismo, o revisionismo e a marotice cómica, este “Pinóquio” é extramente mórbido.

pinoquio de guillermo del toro critica
© Netflix

Como já apontámos, a Morte é personagem, dando ares fatalistas à aventura, mais sublinhados pelos coelhos cangalheiros reapropriados do livro e tornados trabalhadores do além. Indo a extremos estilísticos, podíamos até definir esta animação como um filme de terror para crianças. Isso não é uma fragilidade, mas sim uma das maiores mais-valias do projeto e razão pela qual seus laivos mais lamechas não desequilibram a ordem de tons. No final, somos avassalados pela emoção e sentimos que a fita essa reação conquistou com honestidade, sempre contrabalançando o seu amor com horror, seu coração mole com calafrios na espinha.

Nem tudo funciona, contudo. Alexandre Desplat compõe aqui uma banda-sonora lindíssima toda atuada com instrumentos de madeira e nem um toque metálico. Só que a beleza instrumental nem sempre passa para as canções e, como musical, “Pinóquio” não é grande coisa nem em termos de imemorabilidade ou dramaturgia. Enfim, os interlúdios cantados são sólidos, mas não arrebatam da mesma forma que a cenografia ou as personagens apaixonantes. Também o humor nem sempre resulta, a não ser a piada recorrente sobre o pobre Grilo que nunca consegue cantar o seu número sem ser interrompido. Dito isso, além desses pormenores menosprezáveis, “Pinóquio de Guillermo del Toro” é um milagre d animação stop-motion, um dos grandes filmes do ano, merecedor de muitos aplausos e amor.

Pinóquio de Guillermo del Toro, em análise
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Movie title: Guillermo del Toro's Pinocchio

Date published: 13 de December de 2022

Director(s): Guillermo del Toro, Mark Gustafson

Actor(s): Gregory Mann, David Bradley, Ewan McGregor, Tilda Swinton, Cate Blanchett, Ron Perlman, Finn Wolfhard, Christoph Waltz, Tim Blake Nelson, Burn Gorman, John Turturro

Genre: Animação, Drama, Família, Musical, 2022, 117 min

  • Cláudio Alves - 90
90

CONCLUSÃO:

“Pinóquio de Guillermo del Toro” também é obra do corealizador Mark Gustafson e, juntos, os dois artistas reinventaram o clássico de Carlo Collodi para o século XXI. Em trejeito antifascista e estilizações sombrias, a moral da história inverte-se e a lição passa a ser sobre aceitar o caos inerente à vida.

O MELHOR: As texturas artesanais das personagens, a espetacularidade do mundo cenográfico, a emoção forte que vem com um final maduro, meditativo, quase filosófico para este contexto infantil. Além disso, especial menção para Cate Blanchett como um macaco doido – uma das grandes figuras do ano cinematográfico!

O PIOR: A disfunção entre primor visual e estilo musical. Tirando uma ou duas canções, passagens cantadas parecem acrescentar pouco. Pelo menos lá dão oportunidade a um grande elenco para mostrar seus dotes vocais – Ewan McGregor é especialmente divertido como o Grilo e David Bradley parte-nos o coração com o seu Geppetto.

CA

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  1. Paulo Sérgio Ferreira 21 de Março de 2023

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