O Processo do Cão | Entrevista a Laetitia Dosch (Parte 1)
Na passada quinta-feira 3 de julho, à tarde, entrevistei a realizadora e atriz franco-suíça Laetitia Dosch, a propósito do seu novo filme “O Processo do Cão”, que estreou em Portugal na passada quinta-feira 10 de julho. Assim, numa curta passagem de Laetitia Dosch por Lisboa, entrevistei-a num Hotel.
Foi uma entrevista interessantíssima, realizada em francês. A realizadora e atriz foi extremamente simpática e acolhedora numa tarde bem quente. Além desta entrevista, podes igualmente ler a crítica que escrevi sobre o filme “O Processo do Cão” no passado dia 4 de julho. A saber, esta longa-metragem aborda o caso de um cão que é posto em tribunal por ter mordido uma mulher na cara.
Uma história verdadeira em O Processo do Cão
Vou então começar. Vi o seu filme ontem, gostei muito.
A sério? Ah, riu-se muito?
Sim, mas o fim é muito…
Ah, avisamos as pessoas no fim. Certo, vou parar de o interromper. Continue.
Um primeiro filme para Laetitia Dosch
Ok, a primeira pergunta é mais geral. Portanto, “O Processo do Cão”, vi que é o seu primeiro filme como realizadora. Qual foi o seu desejo de realizar este filme, uma história bizarra, no bom sentido?
Bom, eu também faço peças de teatro. Eu escrevo e sou também atriz de filmes e de teatro. E fiz uma peça com um cavalo. Atuei em palco sozinha com um cavalo. E uma espectadora veio ter comigo e contou-me sobre um processo que envolvia um cão. O cão tinha mordido uma mulher na cara. E este processo foi escandaloso na Suíça. Houve manifestações, as pessoas apaixonaram-se por esta história que foi, inclusive, até ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em Bruxelas.
Então, pensei: esta história é incrível. Havia muito sofrimento e injustiça nesta história. Isto levantou imensas questões sobre o facto de um cão ser ou não uma coisa, é assim na lei, um bem. E, depois, isso também permitiu… É tão louco que podemos na mesma rir. Pensei: podemos rir, podemos tratar o assunto de forma séria. E isso pode ser logo muito interessante e pode fascinar-me passar quatro anos a trabalhar nisso.
À procura de ajuda
Bom, uma das perguntas que tenho aqui é sobre a história, porque a narração diz que é uma história verdadeira. É um pouco verdadeira, portanto. A pergunta seguinte era de onde vinha esta história, mas já respondeu um pouco. Então, a ideia foi apenas sua? O que fez a coargumentista, neste contexto?
Então, eu comecei a escrever durante a COVID, o confinamento, em França, completamente sozinha. E, depois, quando escrevemos um filme, começamos por escrever meia página, depois transformamos em 10 páginas e, por fim, escrevemos os diálogos, fazemos o argumento, então eu… Comecei a escrever os diálogos e não consegui encontrar ninguém para me ajudar. Foi difícil.
E participei num filme que teve muito sucesso chamado “Jeune femme” [nota: este filme, realizado por Léonor Serraille, já do longínquo ano de 2017, não teve, até ao momento, estreia nacional]. E, nesse filme, usei um casaco vermelho e, ao mesmo tempo, fazia limpezas em minha casa. Então, disse: “Este casaco vermelho, tenho de o dar a alguém”. Escrevi no Instagram: Quem quer vir buscar o meu casaco vermelho do “Jeune Femme”? E esta rapariga veio. E disse-lhe, enquanto esperava: “Podes corrigir os meus diálogos?” E, de facto, ela ficou até ao fim do argumento e divertimo-nos imenso a inventar, a rever tudo juntas e a trabalhar juntas. Pronto. E ela teve a ideia da Comissão Ética, em particular.
O duplo papel de atriz e realizadora
Sim, essa é uma das cenas que mais gostei. Onde está a pergunta…? [pausa] Bem, lá chegarei.
“O Processo do Cão” fez igualmente parte da seleção oficial “Un Certain Regard” do Festival de Cannes. Como é que foi recebido?
Bem, eu estava bastante preocupada porque sei que… Não sabia se a secção “Un Certain Regard” tinha um público de comédias. Mesmo sendo uma comédia que levanta questões. Eles riram imenso, imenso. E eu fiquei tão aliviada. Pronto, emocionaram-se, tivemos 11 minutos de “standing ovation”, mas agora isso acontece com todos os filmes.
Além de ser realizadora, é também a atriz principal do filme. Pensou noutra atriz para o seu papel? Como conseguiu gerir este duplo papel de atriz e realizadora? Porque é um pouco difícil, penso.
Então, eu sou atriz no filme. Nunca pensei… Desde o início, sabia que escrevia para mim. É muito pessoal, na verdade. E pensei em filmes como os filmes do Woody Allen e do Nanni Moretti. Nas mulheres também, “Fleabag”, a série “Fleabag”. E, para mim, era normal que uma pessoa te convide… A ideia era que uma pessoa te convidasse para a casa dela. Bom, entra, então. Entra e faz a festa comigo. Achei isso natural. Depois, tive muita ajuda. Tive colaboradores geniais. Especialmente, a anotadora Angèle Pignon. Tive sobretudo uma diretora artística, Elsa Amiel. Construiu-se uma relação muito próxima com os colaboradores externos que deram muitas opiniões. E isso também deu um ambiente de trupe, de grupo, entre os atores. E, portanto, foi muito fixe.
Um espanto de argumento
Acho que “O Processo do Cão” também está muito bem escrito.
Obrigada!
Sim, é a tal pergunta, encontrei-a! É incrível ver as cenas no tribunal. Gostei imenso do tapete com os botões que o cão prime e a Comissão Ética também é muito, muito boa. Como é que surgiram estas ideias?
Bem, o tapete foi um jornalista da revista “Les Inrockuptibles”, Théo Ribeton, que me falou de um tapete para cães. E meti logo isso na minha história. E depois? A minha coargumentista disse que seria genial que houvesse uma Comissão Ética que viesse porque, de facto, nós seguimos a lógica do processo. E, por exemplo, em França, se você tiver 15 anos ou se for maior de idade, se tiver problemas psiquiátricos, se tiver problemas de dependência, não será julgado da mesma forma. É preciso determinar o estatuto sobre o qual o vamos julgar. Então, nós tentámos saber de um cão.
Julgamos, pela primeira vez, um cão, desde a Idade Média. Então, como decidimos julgá-lo? É preciso que haja especialistas que venham tentar saber se este cão tem, efetivamente, 8 anos. Tem 8 anos como uma criança ou é um cão adulto? Julgamo-lo como um humano adulto? Como é que o julgamos? E logo veio a ideia de criar uma Comissão Ética. Ela, a minha coargumentista, conhecia um pouco desse mundo e, depois, ela divertiu-se imenso a escrever sobre pessoas como os religiosos. As religiões. Um dos imãs, os imãs e os rabinos. Para que conste, os atores do filme que interpretam o imã e o rabino são os melhores amigos na vida real. Pronto.
O Processo do Cão será a comédia do Verão?
O cão também o acho genial. Ele mereceu mesmo o prémio Palm Dog.
Penso – isto é a minha opinião, claro… “O Processo do Cão” vai estrear em Portugal daqui a alguns dias. Eu penso que este filme pode ser a comédia francesa do Verão aqui.
Ah, gostaria muito, ficaria muito contente. Mas também é graças a si que acontecerá.
Um final difícil em O Processo do Cão
Eu não sei, mas penso que sim. Porque, para mim, “O Processo do Cão” é muito delirante no que à comédia diz respeito, mas o final é muito mau para os espectadores. Senti-o realmente, porque é um murro no estômago para nós. Não sei se quer…
Posso falar-lhe sobre isso, se quiser. Aí, as pessoas, quando nos ouviram, compreenderam que o cão ia morrer no fim. Sim, o cão vai morrer no final e eu mantive isso porque falamos da nossa relação com as outras espécies e que na história verdadeira o cão morreu, morreu de forma estranha. Houve vários recursos de seguida, uns atrás dos outros e chegou até ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e, enquanto havia um recurso em curso, bem, o cão foi eutanasiado à noite, em segredo, pela responsável da polícia. Foi isso que aconteceu.
E eu não podia, mesmo que tivesse vontade de fazer rir as pessoas. Achei bem que rissem, que houvesse tempo para se rirem. Então, aproveitem, no início podem rir e, depois, mostramos-vos a verdade. Porque quando falamos deste cão, falamos também da nossa relação com as outras espécies. A nossa relação com as outras espécies, os vegetais, os animais. É uma relação em que apanhamos o que precisamos de… E se isso nos incomoda? Bem, nós tiramos. Então, sim, é um pouco triste. É muito triste. E, ao mesmo tempo, é bom para a Anabela Moreira, vai ver. Quando vir o filme, isso renderá um bom serviço à Anabela Moreira.
A narração em O Processo do Cão
A narração é uma forma de dar também a sua opinião, não apenas como personagem, mas também como realizadora? Porque é uma narração um pouco… como hei de dizer…?
Não é clássica.
Exato, não é clássica e tem perguntas, análises…
Nem sempre boas. A narração serviu para muitas coisas. Em primeiro lugar, para melhor caracterizar a minha personagem, porque me esqueci um pouco durante a rodagem. É isso. A caracterizar um pouco mais a minha personagem e também para dar outras informações que não compreendíamos. [risos]
Depois, é verdade que as duas primeiras palavras que digo, ou melhor, as quatro primeiras palavras que digo no filme, mostram como a narração é boa: “Então, como eu começo?”. Efetivamente, isso diz qualquer coisa de alguém que está a tentar fazer um filme.
Sim, pensei precisamente nisso. Daí a questão da dupla… do duplo papel.
Sim.
Queres saber mais sobre O Processo do Cão?
Termina, assim, a primeira parte da entrevista que fiz a Laetitia Dosch a propósito do seu filme “O Processo do Cão”. Nela pudeste, então, saber mais de onde surgiu a história para este filme, que se inspirou numa história real.
“O Processo do Cão” é uma comédia, mas uma comédia com algo para dizer, onde um cão é arguido em tribunal. Na segunda parte, que poderás ler aqui já amanhã, segunda-feira 14 de julho, vais ficar a saber mais sobre as personagens, como Anabela Moreira entrou no projeto e como decorreu a rodagem e pós-produção do filme.