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O Sol do Futuro, a Crítica | Nanni Moretti e Margherita Buy no centro deste filme italiano

Nanni Moretti dá a conhecer às audiências nacionais a sua mais recente obra, “O Sol do Futuro”, protagonizada por Margherita Buy e Moretti.

Como se faz uma salada russa? Bom, aqui vos deixo os ingredientes para a receita básica: batatas, cenouras, ovos cozidos, ervilhas, feijão-verde, maionese, sal e pimenta q.b. e, quem quiser juntar cebolinho, não fica nada mal.

E agora aqui vão os ingredientes, igualmente básicos, de um filme intitulado “Il Sole Dell’ Avvenire” (“O Sol do Futuro”), 2023, produção franco-italiana realizada por Nanni Moretti: um realizador septuagenário que gosta igualmente de escrever para cinema articula as suas ideias com outros argumentistas, Francesca Marciano (“Escobar: Paraíso Perdido“), Federica Pontremoli (“Lucia Cheia de Graca“) e Valia Santella (“O Traidor“). Desse esforço comum surge um guião em que o próprio surge a representar o seu duplo e par de profissão, aquele que no argumento divide a atenção entre o mês de Outubro de 1956 (já explico porque sei o mês em causa) e os nossos dias, sejam eles quais forem, mais ano menos ano (mas cheira-me que se referem ao período pós-24 de Fevereiro de 2022).




UM FILME ESCRITO NA PAREDE OU QUEM FOI QUE PEDIU UMA “SALADA RUSSA”…?

No passado situam-se as circunvoluções ficcionais que “eles” (a equipa de argumentistas) inventaram para Nanni Moretti, actor/Giovanni, personagem, integrando-as numa ficção sobre o papel e as contradições de alguns militantes e dirigentes do PCI (Partido Comunista Italiano) na véspera e durante os acontecimentos ocorridos na chamada Revolução Húngara de 1956 (lá está, iniciada a 23 de Outubro desse mesmo ano). No filme há uma história de luta e redenção em defesa de um ideal, paralelamente a uma outra de superação humana que leva os homens e mulheres a acreditarem que “O Sol do Futuro” está próximo, mas que para lá chegarem será necessário manter uma sólida organização e uma liderança determinada, algo natural no contexto de qualquer partido político mas que surge como um anacronismo aos olhos dos cínicos ou dos ignorantes, como se comprova quando, durante um ensaio de leitura, um dos actores do elenco que o realizador Giovanni dirige fica surpreendido ao constatar que afinal existiam comunistas em Itália e não apenas na Rússia.

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Facto seguramente anacrónico aos olhos dos oportunistas e plutocratas da produção cinematográfica, porque o sonho de um futuro radioso e colectivo vai contra a pura e dura lógica individualista do negócio do cinema que sempre desejou invadir a maioria dos ecrãs com obras de carregar pela boca desde que no final das contas a sua exploração no circuito comercial signifique lucro. A estes só lhes falta apelar aos carros blindados de Wall Street para vencer a resistência dos que defendem os valores perenes da sétima arte inscritos na já longa e, muitas vezes, gloriosa História do Cinema, e que insistem, contra ventos e marés, em continuar a ver no grande ecrã algo mais do que um pretexto para engolir um balde de pipocas e litros de bebidas gasosas.

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Entretanto, para enquadrar a martelo a matéria “revolucionária” que está mais do que desenquadrada, porque o realizador Nanni Moretti não quis ou não a soube contextualizar, há uma peculiar e redundante companhia de circo húngara que, a convite do PCI, viaja até Itália ao encontro dos seus parceiros ideológicos e que, num determinado momento, apenas pelo que assiste nas notícias da imprensa oficial italiana, em parceria com os supostamente ingénuos italianos que os haviam acolhido de braços abertos, vira o bico ao prego e passa a apoiar as manifestações ocorridas no seu país contra o governo de então. Factos que na realidade deram origem a uma escalada insurreccional e a um princípio de guerra civil que só acabou com a intervenção das forças militares do então Pacto de Varsóvia (fundado a 14 de Maio de 1955), o contraponto no período da Guerra Fria da Organização do Tratado do Atlântico Norte, mais conhecida por NATO (fundada a 4 de Abril de 1949).




Por outro lado, Nanni Moretti, novamente na pele do realizador Giovanni, para dar mais colorido aos meandros da narrativa ficcional, atravessa uma crise existencial e matrimonial. Ele e a mulher, Paola (Margherita Buy), estão prestes a separar-se, o que complica as coisas ainda mais do que já estão, pois ela foi e continua a ser a produtora dos projectos do marido, apesar de estar agora mais preocupada em despachar um filme de acção pela acção (porque as contas precisam de ser pagas), um daqueles que na gíria podemos designar de “arte e porrada”. Filme produzido por uma equipa super convencional e um grupo meio alucinado de sul-coreanos.

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Pelo meio, a filha de Giovanni anda metida com o embaixador da Polónia, com para aí o dobro da idade dela, a mulher anda num psicanalista que não parece muito competente e, não raras vezes, a equipa de rodagem do filme de arte e ensaio, sobre a vida militante mas igualmente sobre a militância q. b., mete os pés pelas mãos e, com ou sem vontade, lá vai subvertendo o já de si complexo jogo de imponderáveis que assalta o dia a dia de quem se mete a realizar cinema com preocupações autorais na era da Netflix. De repente, a notícia de que o produtor francês (interpretado por Mathieu Amalric) não havia garantido o financiamento indispensável para a rodagem do filme rebenta como uma bomba, e Giovanni fica sem alternativa viável no quadro normal de produção, aquele em que sempre se movimentou. Será aí que, numa das mais hilariantes quanto demagógicas sequências do filme, se vê obrigado a engolir em seco e confrontar a sua ideia de cinema com a cartilha de frases-feitas regurgitada por um painel de executivos, ditos da Netflix, que entre outros argumentos de pouco ou nenhum interesse, acusam Giovanni e o filme de não apresentar um momento WTF (leia-se, What The Fuck…!) Nem mais, WTF…!

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Pelo meio do que já foi enunciado, veremos ainda uma longa e penosa sequência em que o realizador Giovanni interrompe uma cena de violência, um assassinato a sangue frio anunciado como a cena final do filmezeco de acção produzido pelos aluados sul-coreanos. Plano único dirigido por um imberbe que está ali para fazer o que lhe pedem e não está disposto a pensar no enquadramento ou no significado profundo do que se está a filmar. Podia ser aqui uma bela oportunidade para Nanni Moretti dar asas ao seu proverbial humor, misto de sarcasmo e crítica contundente. Na verdade, consegue por alguns minutos o seu momento WTF, mas de súbito congela a acção, a sua e a dos outros, para falar, falar e ir buscar nomes e exemplos de filmes alheios, nomeadamente o fabuloso Krótki Film o Zabijaniu (“Não Matarás”), 1988, do mestre polaco Krzysztof Kieslowski (1941-1996).




E, porque os seus dotes de actor são inegáveis, consegue neste ponto preciso um momento de grande intensidade dramática (independentemente de ser ou não WTF). Mas logo após concluir a sua exposição parece resignado face ao seu isolamento e abandona o local de rodagem. Estranha metáfora para este filme dentro de um filme onde outro filme se cruza. Há momentos WTF, seja lá o que isso for, e de repente momentos Pfff…! Mesmo os segmentos musicais, e alguns são bem interessantes, podiam ser mais eficazes e sobretudo contundentes no modo como aqui e além pudessem subverter a planificação e a linguagem proposta a partir das linhas mestras do argumento e no restante espaço fílmico.

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Perguntarão agora os que me leram até aqui: será que gosto ou não gosto deste “O Sol Do Futuro”? Para dizer a verdade, esperava um filme diferente, muito mais maduro do ponto de vista da construção dramática, onde as diferentes parcelas constitutivas fossem mais coerentes, mas não necessariamente lineares. Se há qualquer coisa de muito especial que admiro na obra de Nanni Moretti são os ziguezagues, o silêncio de um olhar que diz mais do que mil palavras, e uma certa dose de anarquia que o impede de ser catalogado ou encerrado nas gavetas burocráticas de um certo pensamento contemporâneo que se dá muito bem com a normalidade bacoca, o falso politicamente correcto, o consenso a qualquer preço de uma certa sociedade que gosta de se considerar moderna, mas não passa de modernaça.

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Não, aqui há coisas mais fortes a ponderar, ou seja, ao contrário de outras obras em que o seu ego se perfilava numa personagem como se fosse o negativo dele próprio (por exemplo, no “Palombella Rossa“, 1989), em “O Sol do Futuro” o realizador/actor, que no filme citado falhava o pénalti na hora H de um desafio de polo aquático, anos depois parece não aguentar o esforço de umas quantas braçadas que se vê obrigado a dar numa piscina enquanto pensa no próximo filme. Quando sai deste ambiente de criatividade forçada acaba por se levar demasiado a sério, chegando ao ponto de convocar amigos e cúmplices para caucionarem o seu percurso, quer de vida quer cinematográfico. Personalidades mais ou menos conhecidas que irão desfilar alegremente na parada final, curiosamente não sob o Sol do futuro mas na sombra de um poster erguido ao alto, onde em vez do imponente, paternal e soviético José Estaline vemos agora o italiano rosto de um filósofo, jornalista e político, membro fundador do PCI, o marxista António Gramsci (1891-1937), (parece Leão Trotski, mas não). Mais um momento WTF…!

O Sol do Futuro, a Crítica
O Sol do Futuro

Movie title: Il sol dell'avvenire

Director(s): Nanni Moretti

Actor(s): Nanni Moretti, Margherita Buy, Silvio Orlando, Barbora Bobulova, Mathieu Amalric, Zsolt Anger, Jerzy Stuhr, Arianna Pozzoli, Valentina Romani, Teco Celio, Elena Lietti, Flavio Furno, Francesco Brandi, Michele Eburnea, Laura Nardi, Giuseppe Scoditti, Arianna Serrao, Blu Yoshimi

Genre: Drama/Comédia, 2023, 96min

  • João Garção Borges - 60
60

Conclusão:

PRÓS: Nos prémios Nastri d’Argento de 2023, atribuídos desde 1946 pelo Sindacato Nazionale Giornalisti Cinematografici Italiani, duas actrizes foram galardoadas pelas suas interpretações em “O Sol Do Futuro”: Barbora Bobulova e Valentina Romani, ambas sem dúvida excelentes nos seus papéis ditos secundários.

De uma forma geral, mesmo um Nanni Moretti a meio gás, vale mais do que muita fancaria cinematográfica que anda por aí.

Pode parecer superficial, mas está longe de o ser. Refiro-me aos primeiros planos do filme em que um grupo de homens pendurados por cordas (serão operários, militantes políticos, ou as duas coisas?) pinta a vermelho numa imensa parede e em formato gigante o título desta obra, “Il Sole Dell’ Avvenire”. Parece singela a ideia, mas o efeito obtido, precisamente por ser depurado e directo, não podia ser mais poderoso. E fica na memória, garanto-vos.

No mesmo dia em que “O Sol do Futuro” chega ao grande ecrã, a Midas Filmes irá estrear outro filme de Nanni Moretti. Trata-se de um documentário, “La Cosa” (“A Coisa”), 1990, que no essencial dá voz aos militantes comunistas em diferentes pontos de Itália na altura em que se debatia a mudança de nome e identidade do Partido Comunista Italiano. Rossana Rossanda do jornal “Il Manifesto” considera os seus quase sessenta minutos uma lição de jornalismo.

CONTRA: Mesmo com os reparos que apontei, nada que comprometa a minha fé num dos maiores realizadores contemporâneos, o signor Nanni Moretti. Que lhe volte rapidamente a inspiração e o saber fazer que demonstrou nas obras maiores como “Caro Diario” (“Querido Diário”), 1993, “La Stanza Del Figlio” (“O Quarto Do Filho”), 2001, “Mia Madre” (“Minha Mãe”), 2015, só para citar aqueles a que dou, sem hesitações, cinco estrelas ou o 100/100 da MHD.

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