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Quando Neva na Anatólia, em análise

Portugal dá as boas-vindas a “Quando Neva na Anatólia”, a premiada obra do cineasta turco Ferit Karahan!

DE PEQUENINO SE TORCE O PEPINO

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Este provérbio popular, que em cima uso como referente e porta de entrada para este artigo, vem sendo referido quase sempre com uma natural bonomia. Mas, se virmos bem as coisas, nas suas entrelinhas essa frase feita possui um grau de ambiguidade que faz depender o seu possível ou presumível significado da intenção e do ponto de vista de quem o diz. E as intenções que assim se verbalizam podem nem sempre ser positivas, antes pelo contrário, podem ser extremamente negativas e denunciar um pensamento ultra reaccionário. No caso do filme que aqui analisamos, poderíamos acrescentar a DE PEQUENINO SE TORCE O PEPINO qualquer coisa como E NO PROCESSO MATA-SE O MENINO. Não será difícil aceitar que numa estrutura concentracionária e autoritária como a que descobrimos no seio de um internato integrado no sistema de ensino público da Turquia, situado numa região desfavorecida do país onde numerosos conflitos subsistem, nomeadamente com as comunidades curdas, o “pepino” que ali se quer moldar a um certo modelo de crescimento pode não ser, e na verdade neste caso não é, o beneficiário de uma educação justa e adequada, mas antes a vítima de uma política de dominação ideológica exercida por uma hierarquia de professores e funcionários movidos pelo vulgar pensamento dos burocratas que, ao contrário do que fazem crer, estão mais interessados em defender os seus interesses particulares do que a falaciosa nobreza moral das novas gerações destinadas a servir a propagandeada grandeza da Pátria.

Quando Neva na Anatólia
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Neste OKUL TIRASI (QUANDO NEVA NA ANATÓLIA), 2021, realizado por Ferit Karahan, logo de início somos confrontados com a brutal arbitrariedade exercida, sem dó nem piedade e aos berros, pelos que se vêem a si próprios como os vigilantes da disciplina e dos bons costumes a que os jovens alunos de uma instituição estatal se devem submeter sem levantar quaisquer objecções. Na sequência inicial, estes rapazes meio vestidos meio despidos, encontram-se alinhados uns atrás dos outros e caminham lentamente, passo a passo e nem sempre de uma forma muito airosa, para umas cabines abertas onde recebem um pouco de água para o seu banho semanal. Mais do que um rapaz em cada cabine, lá se vão organizando no meio de alguns encontrões e atropelos da privacidade, devido ao espaço exíguo que são obrigados a partilhar, naquilo que parece ser um duche algo subdesenvolvido. Tigelas e bacias são utilizadas para despejar água, supostamente quente, sobre a cabeça e o corpo. Entretanto, a certa altura, numa dessas cabines levanta-se uma discussão, questão de lana caprina e aparentemente sem grande importância que num ambiente menos paranóico podia ser resolvida com calma e descontracção. Mas esses predicados são coisa que por ali não existem. Deste modo, por causa de uma situação ridiculamente fútil, um dos professores no papel de supervisor irá aplicar um castigo pesado ao pequeno grupo de rapazes que se envolveu no burburinho, usando igualmente a cumplicidade seguramente forçada de um aluno apelidado de “chefe do banho”. Pesado castigo, sem dúvida, porque naquelas paragens geográficas onde o frio se faz sentir muito abaixo de zero, ser obrigado a usar água fria, leia-se gélida, para concluir o banho faz arrepiar qualquer um. Mesmo o espectador mais insensível, sentado na mais confortável das poltronas, reagiria com compaixão perante a visão de uma barbaridade daquelas. Os pobres alunos encolhem-se mas aguentam a provação sem um pio, habituados que estão a sofrer múltiplas humilhações dos seus professores, a maior parte motivadas por faltas que mereciam rigor na apreciação mas não precisavam de ser motivo para desencadear a aplicação regular da violência física, como o ritual das bofetadas, nem a violência psicológica como cortes de cabelo abstrusos destinados a marcar e separar do grupo quem os passa a usar de forma compulsiva. Faz lembrar antigas práticas medievais ou a humilhação a que as mulheres adúlteras eram submetidas em certas comunidades ultra-religiosas do Novo Mundo: recordam-se da Scarlet Letter, a Letra Escarlate dos extremistas puritanos? Depois, a acção passa para as camaratas, onde continuamos a assistir ao prolongamento dessa política de repressão sistemática do afinal normal furor juvenil, com gritos de “vão para cama, apaguem a luz, pouco barulho”, como se a escola fosse um quartel de comandos em potência, carne para canhão de futuras guerras, não apenas no plano militar mas no mais vasto contexto da inserção social. No entanto, passada a noite será no dia seguinte, logo pela manhã, que o drama maior vai acontecer. Um dos alunos que fora castigado com o banho de água gelada, Memo (Nurullah Alaca), não se levanta e quando o vão acordar não reage, está numa espécie de coma. Daí em diante, o seu colega de quarto e amigo curdo, Yusuf (Samet Yıldız), irá protagonizar os possíveis e impossíveis para o salvar, confrontando numa fase inicial a completa indiferença e mesmo a desconfiança dos mais diversos funcionários da instituição escolar. Uns acham que o rapaz está a fingir, mesmo sem o ver, outros enviam-no com alguma indiferença para a enfermaria, mais uma vez sem sequer questionarem a verdadeira situação do rapazinho doente, aliás, uma enfermaria que mais não é do que uma sala despojada e sem grandes condições onde, pelo que se ouve dizer, o medicamento mais usado parece ser a básica aspirina. E, depois de Memo ser levado para aquela desolada divisão e deitado numa marquesa, que passa por ser o único equipamento parecido com o de um posto médico digno desse nome, começa o calvário de Yusuf, que anda para lá e para cá a procurar chamar a atenção para a condição hora após hora mais preocupante do amigo, algo que só a custo e depois de muitas evasivas dos adultos vai conseguir, nomeadamente quando um dos professores se apercebe de que qualquer coisa não está de facto a correr bem e se vier a acabar mal, por exemplo, com o agravamento do estado de saúde e consequente morte do rapaz, pode cair em cima deles. Só então, para se afastarem de maiores responsabilidades, passam a agir rapidamente. Mas a neve cai na Anatólia, e o que parece uma escola isolada do mundo ainda mais isolada fica quando não há rede que chegue para fazer uma simples chamada, sendo necessários expedientes de diversa natureza para conseguir um mero contacto casual. Divertidos e impregnados de um certo humor sarcástico, mas igualmente de um sorriso amarelo, são os planos em que um professor faz uma chamada junto do busto de Kemal Ataturk, o pai fundador da Turquia moderna, onde não falta sequer uma festinha no alto da cabeça, assim como os que nos dão a ver o director do internato subir para cima de um banco numa posição de fragilidade que contrasta em pleno com as suas atitudes arrogantes e altivez no discurso apresentado em anteriores sequências. Diga-se a este propósito que o realizador podia nestas alturas aproveitar para fazer uma crítica impiedosa a certas figuras do funcionalismo público usando a caricatura para os denegrir, mas não. De forma inteligente, ele deixa ao espectador a margem de manobra necessária e suficiente para julgar com a devida distância as motivações de cada uma das personagens, mesmo as que manifestam um cinismo ambíguo e mais difícil de classificar. De algum modo, ele deixa adivinhar que conhece bem aquelas pessoas, passou provavelmente por situações semelhantes e lidou com casos porventura piores dos que estão relatados no desenrolar da narrativa, mas não quer fazer juízos sumários sobre ninguém. Ele sabe que os carrascos de hoje foram as vítimas de ontem e que o sistema até certo ponto foi bem-sucedido ao perpetuar um conjunto de valores que as condições socio-económicas, até mais do que as políticas, acabaram por inculcar na personalidade global de uma classe de duvidosos privilégios. Sim, porque como um dos professores diz a certa altura, o que eles realmente esperam um dia é poder sair dali e não voltar mais a este exílio nas regiões onde mais de metade do ano neva, neva, neva. Fica-nos a ideia de que os que reproduzem as idiossincrasias do poder não são os principais beneficiários dos favores de quem está acima deles, o real e no fundo verdadeiro poder. E a realização sublinha este aspecto sem entrar no redutor estilo panfletário que no fundo seria uma manipulação semelhante ao da propaganda veiculada por aqueles que manifestamente deseja criticar.

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Quando Neva na Anatólia
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Para concretizar este projecto, ao longo do qual iremos observar as relações e interligações, assim como as contradições das diferentes personagens e o desvendar de um mistério que a partir de certa altura se adensa, Ferit Karahan demonstrou a sua competência na direcção dos actores, quer dos jovens quer dos adultos, e nem o perigo latente que se faz sentir de forma subliminar na composição das personagens que exercem o poder no interior da escola (onde prevalece uma maior inclinação para a visão estereotipada da sua importância relativa no decorrer da acção), deita a perder o sentimento de denúncia, um autêntico grito de revolta, que o realizador carrega aos ombros até ao último plano de QUANDO NEVA NA ANTÓLIA, altura em que ficamos com o grande plano de Yusuf, debaixo do duche e a olhar de frente para a objectiva como um pássaro ferido no seu orgulho de ser humano submetido a um castigo que nesse momento ainda nos parece mais incompreensível, embora aí já saibamos a justificação.

Um filme sobre um mundo fechado sobre si próprio que podia ser rodado num qualquer outro país e numa qualquer outra época submetida a um similar sistema de valores.

Quando Neva na Anatólia, em análise
Quando Neva na Anatólia

Movie title: Okul Tirasi

Date published: 7 de April de 2022

Director(s): Ferit Karahan

Actor(s): Samet Yildiz, Ekin Koç, Mahir Ipek, Melih Selcuk

Genre: Drama, 2021, 85min

  • João Garção Borges - 65
  • José Vieira Mendes - 70
68

CONCLUSÃO:

PRÓS: Muito cuidada e precisa escolha do elenco. Destaque para Samet Yıldız no papel do jovem curdo, Yusuf.

Muito boa inserção da acção no espaço fechado de um internato situado numa região remota da Turquia. Retrato muito fiel do micro-cosmos onde se reproduzem os mecanismos do poder arbitrário e autoritário da hierarquia escolar sobre alunos formatados para seguir o pensamento dominante no resto da sociedade, assumido por quem sabe do que está a falar.

Direcção de Fotografia compatível com a visão global de um projecto destinado a concentrar o olhar do espectador num espaço fechado e frio, onde neva sem parar, que convida ao despojamento dos mais elementares sentimentos de humanidade. Noção de que a exposição das situações não precisa de ser redundante nem panfletário para ser eficaz.

CONTRA: Nada de especial. Um ou outro pormenor, como a utilização da câmara ao ombro onde se fazia sentir mais a necessidade de um plano fixo. Mas o que é isso, comparado com o inegável impacto que o filme possui junto das nossas consciências?

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