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Reunião, em análise

Jason Isaacs, Ann Dowd e Martha Plimpton marcam presença em “Reunião”, a nova obra cinematográfica de Fran Kranz!

O QUE RESTA DOS FACTOS NO CONFRONTO DAS PALAVRAS…!

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Reunião 1
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Não se podem queixar muito aqueles que gostam de projectos dignos dos melhores pergaminhos históricos do cinema, os que nos convocam a atenção para os diferentes caminhos da sétima arte, sobretudo os militantes cinéfilos das mais diversas sensibilidades que sabem distinguir a qualidade da pura e básica fancaria. Na verdade, face ao panorama de estreias que se verifica semana após semana no circuito comercial das salas, ainda há muito por fazer. Porque esta sensação de conforto junto das hostes cinéfilas passa mais pelo espírito de um lisboeta ou de um portuense do que pelo de outros cidadãos habitantes de regiões de um país que mais depressa se volta para o litoral do que para o interior. De qualquer modo, só na semana escolhida pela Alambique Filmes para nos dar a ver MASS (REUNIÃO), 2021, produção independente americana escrita e dirigida por um jovem autor na realização, Fran Kranz, podemos igualmente encontrar disponíveis no grande ecrã, por exemplo, OKUL TIRASI (QUANDO NEVA NA ANATÓLIA), 2021, produção turca e romena de Ferit Karahan, o muito interessante documentário de animação que se calhar com alguma vantagem podia ser igualmente uma ficção, FLUGT (FUGA), 2021, produção conjunta da Dinamarca, França, Noruega e Suécia, dirigida por Jonas Poher Rasmussen, um curioso EVERYTHING EVERYWHERE ALL AT ONCE (TUDO EM TODO O LADO AO MESMO TEMPO), de Dan Kwan e Daniel Scheinert, prova de que o cinema industrial americano não precisa de ser só “arte e ensaio” para ultrapassar o estatuto de mercadoria que na maior parte dos casos serve para engordurar as mãos e empestar as salas com o cheiro do milho pipoqueiro, e o imprescindível ACCATONNE, 1961, incursão desencantada por uma certa marginalidade romana, integrada num ciclo de uma muito bem-vinda retrospectiva dedicada ao cineasta italiano Pier Paolo Pasolini.

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Reunião
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Dito o que havia a dizer sobre a vitalidade inegável do sector da distribuição e exibição de filmes em Portugal, situação que só podemos encarar como sinal de resistência dos agentes que lidam com a cultura e, porque não, com o mais amplo conceito de entretenimento para os diversos segmentos do chamado grande público, mudemos de agulha para nos concentrarmos na análise mais particular de um filme intitulado no nosso mercado REUNIÃO. Nesta primeira obra como realizador, Fran Kranz, mais conhecido pela sua carreira de actor, partiu de uma premissa muito forte, a memória ainda viva e não cicatrizada de um ataque armado protagonizado por um aluno numa escola americana de que resultou um massacre e a morte de vários dos seus colegas. Mas nos minutos iniciais o guião prefere não dar a informação sobre os acontecimentos numa perspectiva, digamos, jornalística ou meramente cronológica, preferindo desvendar o local de encontro das personagens que irão dar corpo e alma a um outro confronto que resulta dos ecos viscerais do referido acto primordial de violência, confronto de outra dimensão supostamente destinado a pacificar as consciências dos que viveram o impacto da dor causada pela morte dos filhos, sentimento que aparentemente não foram ainda capazes de superar. Para o conseguir com a necessária eficácia ficcional, a realização evita que o espectador escolha uma das partes e a manipulação que daí podia resultar a favor de um ponto de vista pré-determinado, e faz o que lhe compete para, através de um jogo inicial de planos que se sucedem num campo contra-campo em movimento, nos situar ao lado do pai e da mãe do autor da investida criminosa e do pai e da mãe de uma das suas vítimas, quatro personagens que irão permanecer longos minutos no espaço fechado de uma sala emprestada para os devidos efeitos por uma entidade religiosa. Para ainda ser mais eficaz, o filme começa por nos fazer assistir ao que se passa imediatamente antes da reunião propriamente dita, através de uma meticulosa sequência que nos prepara para o que então só podemos adivinhar. Nela iremos assistir a uma exposição exagerada de zelo politicamente correcto e a um algo abusivo processo de “purificação” da sala, no fundo um retrato de uma encenação que  gera alguma perplexidade em nós ao darmos conta do como se comportam aqueles que, estando no exterior por detrás da organização do encontro, não são capazes de sentir por dentro as razões profundas da sua absoluta e verdadeira prioridade, burocratas da psicologia que na vida real nem se apercebem da fragilidade dos seus preconceitos, pessoas que podemos apelidar de mais papistas que o papa. O cuidado obsessivo e quase patético que uma representante legal coloca nos pormenores (a mesa precisa de ser aqui, a cadeira acolá, comida e bebida estão lá mas não podem ser oferecidas de forma ostensiva), o olhar seráfico dirigido para uns enfeites singelos que pendurados nas janelas simulam vitrais e que francamente não parecem fazer mal a ninguém, enfim, manifestações de dúvida e receio que, como se verá depois, serão liminarmente destruídos por serem inúteis quando os verdadeiros actores da reunião finalmente se encaram de frente para discutir o passado com amargura, hesitação inicial, dificuldades naturais, mas igualmente a humanidade possível perante a brutalidade do que viveram e, podemos dizer, com a razão de ser de ambas as partes alimentada pela franca e aberta exposição da sua verdade emocional. Fica claro que os pais da vítima sofrem, mas os pais do carrasco não sofrem menos. Naquela mesa redonda, só no plano geométrico equidistante, nunca será fácil equilibrar os pratos da balança do deve e haver, nem qualquer dos interlocutores irá arriscar jogar um jogo viciado, quer para disfarçar quer para ampliar a dor que ainda sente e que a certa altura, quando os ânimos se exaltam, parece sobreviver como uma faca espetada na alma daqueles adultos que, a partir de certa altura, acreditamos nunca puderam fazer nada de concreto para impedir ou evitar que os dramáticos acontecimentos se produzissem. Morreram jovens os seus filhos, na flor da idade, e depois disso só o vazio ficou, um espaço de solidão mais fechado ainda do que o daquela sala e daquela igreja. Um vazio que depois da reunião pode muito bem permanecer, independentemente do esforço que se realizou para o preencher. Prova disso mesmo, a amarga conclusão de que as palavras não chegam para apagar a sombra existencial gerada pelos factos e a sensação de silêncio que invade a memória dos vivos face aos mortos que obviamente não podem ser resgatados para a vida. Redenção apaziguada mas adiada. Mas, como se costuma dizer, a fé move montanhas e mais forte do que as palavras são os ecos próximos de um hino cantado por um coro no interior da igreja, o som que cura as feridas por sarar e que vai preencher e anunciar uma esperança de conciliação nos derradeiros minutos de MASS, aqui mais do que reunião, antes esse outro significado da palavra em inglês, ou seja, MISSA, reunião redentora capaz de fazer sobressair a esperança de uma paz interior junto dos homens e mulheres, mesmo daqueles que não sejam crentes nem sigam qualquer religião.

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Reunião
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Para levar a água ao seu moinho, ou seja, uma ficção sobre as encruzilhadas da expiação, dor, perdão, reconciliação e de forma subtil a questão do uso desgovernado de armas nos Estados Unidos, Fran Kranz foi buscar actores com larga experiência. Sem qualquer sombra de dúvida, são eles que dão ao filme a força que uma planificação depurada de efeitos não seria capaz de sustentar. Ann Dowd (Linda) e Reed Birney (Richard) são os pais do autor do massacre, Jason Isaacs (Jay) e Martha Plimpton (Gail), são os pais do rapaz que ele matou. A sua interpretação domina por completo e de forma exemplar o núcleo duro de MASS. No entanto, ao início, mesmo nos primeiros momentos e posteriormente nos últimos minutos, damos conta de uma outra personagem, que não deixa de ser importante na definição geral do realismo com que o realizador quis encarar esta ficção, uma funcionária da igreja episcopal que anda atarefada de um lado para o outro a preparar, diga-se, com a melhor das intenções, as condições ideais para a reunião. Esta personagem, Judy, será interpretada por Breeda Wool com segurança e uma dose natural de descontraída boa disposição, que não deixa de ser importante para desanuviar a densidade de um filme como MASS.

Reunião, em análise
Reunião Poster

Movie title: Mass

Date published: 7 de April de 2022

Director(s): Fran Kranz

Actor(s): Jason Isaacs, Martha Plimpton, Ann Dowd, Reed Birney, Breeda Wool

Genre: Drama, 2021, 111min

  • João Garção Borges - 65
  • Manuel São Bento - 90
  • José Vieira Mendes - 60
72

cONCLUSÃO:

PRÓS: Recebeu e foi nomeado para diversos prémios. Destaco aqui o Robert Altman Award atribuído no FILM INDEPENDENT SPIRIT AWARDS de 2022, porque muito justamente engloba a maioria dos nomes que fazem a diferença na definição geral da obra fílmica. Mas, independentemente dos prémios, o maior destaque vai directo e sem hesitações para o desempenho dos quatro actores protagonistas. Sem eles, o filme seria menos incisivo na abordagem de uma matéria muito sensível e, diante da sua admirável capacidade de compor personagens acossadas pela violência de um acto extremo sem recurso ao overacting ou a redutores exageros no plano das emoções, quem for ver MASS e ficar até ao fim dará conta de que os seus 110 minutos passam sem que o peso do espaço fechado de uma sala de reuniões nos caia em cima, como sucede com alguns outros filmes que, apesar da normalizada duração e 50 planos por minuto, parecem nunca mais acabar.

CONTRA: Se o apanhasse na rodagem, mesmo face a um resultado que me satisfaz, não me importava nada de sugerir ao realizador uma mais ampla intervenção da câmara neste filme. Fica para a próxima.

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