"La Bête dans la Jungle" | © Aurora Films

Queer Lisboa ’23 | La Bête dans la Jungle, a Crítica

Mais um ano, mais um fabuloso Queer Lisboa, o festival mais antigo da capital, já na sua 27ª edição. Para abrir as festividades, os programadores escolheram “La Bête dans la Jungle” de Patric Chiha, estreado originalmente na Berlinale. Em Portugal, o filme será distribuído pela Nitrato Filmes.

Originalmente publicado em 1903, “The Beast in the Jungle,” também conhecido como “A Fera na Selva,” serviu de inspiração a dois grandes cineastas em 2023. A história de Henry James considera o reencontro entre John e May, dois estranhos que se haviam cruzado, dez anos antes, e partilhado um segredo. Desde tempo imemorial, o cavalheiro é assombrado pela certeza que algo está prestes a acontecer, ora tenebroso ou milagreiro, que lhe vai alterar a vida. No precipício do cataclismo sem nunca nele cair, ele espera por essa reviravolta que lhe persegue o pensamento, qual predador nas sombras do arvoredo, preparando-se para saltar sobre sua presa.

Vidas embaraçadas num remoinho, John (Tom Mercier) convida May (Anaïs Demoustier) a esperar com ele, caindo os dois num ciclo de expectativa perpétua. Passam anos, décadas, John distanciado da existência comum e relações íntimas, levando May no mesmo caminho. Sem revolução à vista, a espera finalmente termina quando John se apercebe que a espera em si foi a fera. No temor da mudança, o homem rendeu-se a um êxtase absoluto. Tanto se antecipa um fado que se deixa o tempo passar, imóvel perante o movimento imparável do relógio. A maior tragédia é como John condenou a companheira ao mesmo, ambos soterrados debaixo de uma avalanche de arrependimento.

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© Aurora Films

Trata-se de uma premissa incrível que Bertrand Bonello usou como ponto de partida para “La Bête,” com Léa Seydoux no papel da alma perseguida pela premonição. Só que, nessa adaptação muito livre, o trabalho de Henry James dá origem a um conto de regeneração em existências sucessivas – primeiro na Belle Époque, depois na contemporaneidade e, finalmente, num futuro não muito distante. Em comparação, o cineasta austríaco Patric Chiha optou por uma via menos radical, mas não por isso menos idiossincrática. De facto, a sua versão de “La Bête dans la Jungle” é como um culminar da sensibilidade artística e todos os trejeitos do seu cinema.




Para fãs do realizador, esta obra será uma delícia do princípio ao fim, começando, como não podia deixar de ser, com a euforia da dança. Nesse êxtase retro, algures na segunda metade do século XX, desenrola-se um bailarico enquanto os créditos se desenrolam por cima da imagem granulosa. Não há diálogo, mas apercebemo-nos da dinâmica sobre a qual o restante filme irá trabalhar. Uma rapariga dança, livre e eufórica nessa comunhão de corpos na pista. Como que puxada por uma força maior, ela repara num rapaz que tudo observa às margens da festa, tristonho, talvez apático. Este é o primeiro de muitos encontros entre os dois.

Desse sonho de um passado imaginado, passamos para outro templo da dança, um clube noturno na Paris de 1979. Seguimos saltos altos a caminho da folia, pavimento molhado refletindo os brilhantes dos sapatos, enquanto, na banda-sonora, ecoam os passos na rua vazia e a música da discoteca. À porta do estabelecimento sem nome, uma porteira aparece-nos qual arauto do submundo. Ela quer ser chamada Fisionomista e é quem nos narra o conto e evidencia o buraco negro de John, quem sussurra o espírito de Henry James e estabelece ligação entre uma fonte literária e um cinema no limiar do abstrato, o texto suprimido perante a expressividade do corpo.

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Nesta noite, o clube é palco para um baile de máscaras e assim conhecemos May, jovem e luminosa, num traje de toureiro que recorda outra heroína de James – pensem em Helena Bonham Carter como Kate nas “Asas da Pomba.” O ambiente é o máximo fulgor do glamour e da liberação queer, sem regras e sem preconceito, coreografia improvisada em orgasmo com os figurinos de Claire Dubien. É fácil ficar inebriado com o ambiente, mesmo que a câmara faça pouco para estabelecer os seus limites geográficos. Em certa medida, o clube é tanto um estado de espírito como um lugar físico e Chiha trata-o desse jeito, prescrevendo a cenografia à lógica do sonho.

É aqui que May e John se reencontram, ela a única pessoa capaz de compreender o que o aflige, esse terror profundo e existencial, sem forma, mas tão forte que se sente como algo a fechar-se em volta da garganta. Sua conversa invoca o “Marienbad” de Resnais, mas os atores não se perdem nos labirintos da memória. Há algo muito presente no trabalho de Anaïs Demoustier e Tom Mercier, mesmo quando ambos têm que personificar aqueles que vivem divorciados da realidade, flutuando sobre a vida sem a experienciar na pele. Esse destino é traçado à luz impossível de uma lua eclipsada, quando John faz a sua proposta a May – “Fica à espera comigo.”




Com o pacto fechado, também se fecha o filme, a câmara conscrita à discoteca. Estabelece-se um ritmo repetitivo, ciclos viciosos que, no entanto, não significam que o filme se torne numa provação da paciência. Chiha e sua equipa capturam a beleza quimérica do espaço, entrando nos anos 80 com farrapos de fumo iluminados pelas luzes de espetáculo, fantasmas coloridos sobre festas temáticas- Há um Natal esquálido e uma passagem de ano em tons de escarlate. Passam os tempos e alguns envelhecem, mas não o nosso par principal. Muitos morrem também, especialmente quando deflagra a crise da SIDA.

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© Aurora Films

De repente, esvazia-se o espaço, barman e porteira à espera de uma nova geração agora que a anterior está enterrada a sete palmos de terra. Espera-se e espera-se, as contemplações do realizador ganhando qualidades de Antonioni, gestos espelhados e espaço-tempo diluído. Lentamente, May vai-se tornando também ela numa observadora passiva. Já não é ela que dança, deixando o júbilo do corpo suado a outra gente que vive no momento ao invés de na expetativa. Ela está na mezzanine, removida do presente pois sempre pensa num futuro que se calhar nunca virá. Pensando no futuro, desligamo-nos do presente, desperdiçamo-lo.

Nesta imutabilidade aterradora, emerge o novo milénio, vampírico e escuro, com um holofote gritante a queimar a vista e uma manhã cruel a cheirar a vomitado. Em contextos tais, dá-se uma rutura e começa o ato final de “La Bête dans la Jungle,” quando as preocupações estilísticas e filosóficas de Patric Chiha florescem e colapsam sobre si mesmas. O que se perdeu não se pode recuperar e esse sentimento de perda contamina o filme, rouba-lhe a vida numa resolução amarga que, no entanto, faz todo o sentido com a tese proposta. Deixamos o cinema em ressaca e remorso, destroçados pelo génio de Chiha e em antecipação do seu próximo milagre. É assim que se começa um festival de cinema!

La Bête dans la Jungle, em análise
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Movie title: La Bête dans la Jungle

Date published: 24 de September de 2023

Director(s): Patric Chiha

Actor(s): Tom Mercier, Anaïs Demoustier, Béatrice Dalle, Martin Vischer, Sophie Demeyer, Pedro Cabanas, Mara Taquin, Bachir Tlili

Genre: Drama, 2023, 103 min.

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO:

Quer lhe chames “La Bête dans la Jungle,” “The Beast in the Jungle” ou “A Fera na Selva,” o novo filme de Patric Chiha é o culminar do seu cinema, passando do documentário híbrido ao máximo fulgor de uma narrativa existencialista. Dança-se e perde-se o rumo da vida, espera-se pelo que nunca acontecerá, e assim sentimos a tragédia no âmago. Num furacão de suor e purpurinas, o filme esperneia rumo ao oblívio e nós ficamos hipnotizados, testemunhando duas almas perdidas perdendo-se ainda mais.

O MELHOR: O mistério da Fisionomista, a euforia esfarrapada da pista de dança e o trabalho de figurinos através de 25 anos de moda. Os vestidos embonecados de May são especialmente divertidos quando postos em contraste com o erotismo queer da multidão, ora em andrajo andrógino ou provocação quase nua.

O PIOR: O filme baseia-se na repetição e na espera por algo que nunca acontece. Por isso mesmo, haverá muito espetador que se sentirá perturbado pela proposta e francamente aborrecido. Não podemos criticar o filme por se manter fiel à ideia basilar, mas entendemos que o cinema de Chiha não é para todos os gostos.

CA

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