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Restos do Vento, em análise

Tiago Guedes presenteia o público português com “Restos do Vento”, um filme protagonizado por Albano Jerónimo e Nuno Lopes!

LAUREANO, RODEADO DE CÃES E DE CANALHAS

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Tiago Guedes, o realizador do agora estreado RESTOS DO VENTO, 2022, não nasceu ontem para o cinema nem para o audiovisual em geral. Na verdade, recordo um dos seus primeiros filmes, que visionei um par de anos depois de lançar o ONDA CURTA na RTP2 (1996-2013), ou seja, a curta-metragem O RALO, 1999, co-realizada por Frederico Serra. Recordo-me bem de que vi nessa obra os sinais necessários e suficientes para a consolidação das aptidões ali demonstradas, nomeadamente rumo a futuros projectos, mais consistentes do que a maioria das experiências que, com maior ou menor eficácia, se produzem no início de uma carreira. E não me enganei. Na verdade, a filmografia de Tiago Guedes conta com um bom número de obras que figuram, sem qualquer favor, entre as que souberam encontrar um ponto de equilíbrio entre aquilo que se pode chamar a produção que aceita o apelo dos diferentes segmentos do grande público com a outra de balanço mais instável, mas no nosso país mais sustentada por apoios institucionais, os domínios do cinema de autor. Isto sem perder o norte, nem o sul, ou qualquer outro ponto cardeal, e muito menos, a identidade própria de quem assina o resultado na cópia síncrona final.

Restos do Vento
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Por isso, RESTOS DO VENTO não surge como uma “agradável surpresa”, mas sim como a confirmação das potencialidades do realizador e da opção do produtor Paulo Branco que nele viu essas qualidades, sobretudo após A HERDADE, 2019. Pessoalmente, considero que RESTOS DO VENTO possui uma dimensão menos épica do que a citada investida pelas idiossincrasias do Portugal profundo e da alma lusitana num momento de revolução, seja lá o que isso for, mas isso não o diminui, antes pelo contrário. Nas linhas de força da narrativa, a matéria primeira da ficção foi desta vez assumida num contexto mais bruto, algures numa aldeia perdida, onde falta o brilho de um diamante polido, mas não falta um ponto de vista seco e violento sobre os abismos da condição humana e as contradições entre essa área difícil de analisar, a frágil linha divisória entre o Bem e o Mal. E, justamente, a partir de um ponto de vista mais violento, porque não se pode ser complacente com o caldeirão culturalmente retrógrado que está por detrás daquele bizarro e algo estrangeiro ritual de iniciação que, embora possua semelhanças com alguns praticados no nosso país, mais parece (aliás, como Tiago Guedes indicou numa recente entrevista a João Lopes, no Diário de Notícias) ser um ritual inventado que foi buscar elementos a rituais de iniciação que se podem observar na República Checa. Nem mais, eu próprio o confirmo, porque já os vi celebrados numa aldeia daquele país e, durante o visionamento, bem me pareceram ser aqueles os que serviram de referência para gerar a atmosfera primitiva, com aspas ou sem aspas, e puramente ficcional que a primeira grande sequência de RESTOS DO VENTO desenha com particular energia e eficácia. De início, um rapaz encapuzado caminha na nossa direcção, leia-se, na direcção da objectiva, para definir um plano servido por uma fotografia que usa intencionalmente o mínimo de profundidade de campo para nos revelar um rosto sem rosto e de seguida caminhar, literalmente, atrás daquela personagem que pouco depois se vai envolver, melhor dizendo, vai ser empurrada, para uma espiral de prepotência machista (selvajaria de que não se pode ser cúmplice se defendermos os valores da civilização contra a barbárie), uma espécie de praxe que deixa marcas para a vida e que recai sobre quem não quer ser excluído do grupo de “bons” cidadãos, os homens de barba rija destinados a serem as forças vivas da região e dar as cartas na vida adulta como funcionários, polícias, comerciantes, quase sempre metidos até ao pescoço na sua vidinha medíocre, cujas fronteiras são definidas pelo perímetro redutor das suas parcas ambições. Festarolas e febras grelhadas no querido mês de Agosto, com música a condizer, e mulheres que não se importam do seu papel de fadas do lar, ou outra coisa que aqui não digo porque sou bem-educado. Nessa sequência inicial iremos descobrir a personagem de Laureano (muito boa interpretação de Albano Jerónimo), a quem alguém insultara o pai para o humilhar a ele, o filho que nem sequer o nome de família do progenitor seria autorizado a pronunciar.

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Depois de ser submetido a um ritual de pancadaria e pontapés, Laureano regressa cambaleante pelo mesmo caminho que víramos ao início, e o plano encerra com a mesma ausência de profundidade de campo, mas desta vez aquele espaço e as circunstâncias da sua queda na berma do caminho são imagens bem nítidas na memória do espectador. Não precisamos da distância focal justa, mas só da justa distância em relação ao primitivismo dos acontecimentos. Daqui para a frente há um outro filme que completa esta introdução e, como se costuma dizer, não pode ser “vendido” separadamente. Laureano ficou marcado para sempre, vive nos arredores da aldeia, num monte onde partilha um casebre com uma quantidade de cães rafeiros. Os “bons” habitantes da aldeia dizem cobras e lagartos dos cães, acusando-os de atacar os rebanhos e de serem um perigo para a população em geral, reservando para Laureano um sentimento de falsa aceitação, porque no fundo o consideram o elo mais fraco de uma geração que fez o seu caminho, um marginal que se comporta como uma criança, um louco relativamente inofensivo, mas que evitam sempre que com ele se cruzam. Só uma mulher, Judite (Isabel Abreu), casada com um GNR, Paulo (João Pedro Vaz), o vai visitar e apoiá-lo nas coisas mais corriqueiras do quotidiano. Das restantes personagens que dão corpo a esta ficção, Tiago Guedes destacou o papel determinante de um homem forte naquele microcosmos provinciano, Samuel (Nuno Lopes), e por razões igualmente determinantes a filha de Judite, de seu nome Salomé (Leonor Vasconcelos). Iremos conhecer ainda o pai dela, Vítor (Gonçalo Waddington), que mais parece ser uma ave rara naquela atmosfera de granito, mas que saberemos posteriormente não ser flor que se cheire. Mas quem não se cheira mesmo é um grupo de adolescentes, meio imbecis, meio delinquentes, que atormentam Laureano e, não contentes com as façanhas cobardes que contra ele engendram, num determinado momento, quando o vento sopra e altera o status quo existencial entre os homens e sobretudo entre as mulheres, o filho de Samuel ataca Salomé na noite orgíaca e, essa sim, primitiva na sua dimensão cósmica. Magnífico o momento em que o vento sopra divino e bacante sobre a festa da aldeia, como se saísse de uma caverna onde permanecera encerrado. E Salomé, provavelmente por essa hora, fazendo justiça ao nome bíblico, não manda arrancar a cabeça ao filho de Samuel – sim, o filho do respeitado senhor – mas na sua ferida dimensão humana espeta-lhe duas facadas que o deixam na berma da estrada para repasto dos cães, os esfomeados cães de Laureano. Dito isto, nada mais acrescento para não estragar o prazer da descoberta das circunvoluções narrativas que vão definir o desenlace final. Digo-vos apenas que, num determinado momento, pensamos que a culpa do que sucedeu, porque ninguém sabe quem foi ao certo o responsável pelo crime, recai sobre o elo mais fraco. Mas Tiago Guedes sabe introduzir na engrenagem a matéria que nos faz pensar de outra maneira e, quando damos conta do que se passou e quando as personagens passam a saber o mesmo que o espectador (falo por mim, mas penso que falo igualmente pela esmagadora maioria daqueles que fizerem uma análise objectiva dos factos revelados e dos estratagemas orquestrados), a maior violência não será a do ritual de passagem. Essa fica reduzida ao subdesenvolvimento ideológico de uma parcela, quero acreditar, cada vez mais ínfima da sociedade. Na realidade, a maior violência foi a que cidadãos ditos civilizados exerceram quando não olharam a meios para atingir os fins, em suma, para ocultar a verdade. Por isso, Laureano merece ser louvado como vítima, e os seus carrascos, mais reles que os cães raivosos, não passam de meros canalhas. Parafraseando um grande filme alemão do imediato pós-guerra, DIE MÖRDER SIND UNTER UNS (OS ASSASSINOS ESTÃO ENTRE NÓS), 1946. E eles não são sempre os que primem o gatilho, são antes os cúmplices cobardes dos crimes cometidos.

Para os devidos efeitos, um filme a não perder!

Restos do Vento
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Restos do Vento, em análise
Restos do Vento

Movie title: Restos do Vento

Director(s): Tiago Guedes

Actor(s): Albano Jerónimo, Nuno Lopes, Isabel Abreu, João Pedro Vaz, Gonçalo Waddington, Leonor Vasconcelos

Genre: Drama, 2022, 127min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

PRÓS: Destaque maior para o argumento, da responsabilidade de Tiago Guedes e Tiago Gomes Rodrigues, e para a globalidade do elenco que lhe deu corpo e voz: Albano Jerónimo, num papel difícil mas que leva até ao fim sem demonstrar dificuldade de maior; Nuno Lopes, disforme, mais inchado do que gordo, quase feio, numa palavra, perfeito para o papel do básico que na verdade acaba por ser, para já não falar no filho que ele defende, enquanto personagem, em piloto automático convencido da sua superioridade moral; Isabel Abreu, no papel da mulher que parece querer ser diferente numa aldeia de pensamento granítico, mas que alinha como a maioria dos outros na barbárie para salvar a pele e reputação da família.

CONTRA: Nada que impeça a visão desencantada deste filme, necessário e urgente.

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