Yalitza Aparicio em Roma

LEFFEST ’18 | Roma, em análise

Roma” é o triunfo da Netflix que valeu a Alfonso Cuarón a merecida honra do Leão de Ouro na Bienal de Veneza. Este poema épico filmado em preto-e-branco e 65mm teve sua única exibição em cinemas portugueses como parte da programação do Lisbon & Sintra Film Festival de 2018.

Depois de 17 anos a explorar as possibilidades do cinema de Hollywood e seus orçamentos de blockbuster, Alfonso Cuarón regressa ao México e a um cinema apoiado em realismo, em História e na especificidade de seres humanos reais. Este retorno representa um gesto autobiográfico pela parte do cineasta e aquele que é talvez o seu filme mais pessoal de sempre. Em “Roma”, Cuarón conta a história da sua família no início dos anos 70, conta a História do México à escala humana e, acima de tudo isso, assina uma carta de amor e admiração às mulheres da sua vida. Nenhuma mais importante que Libo, a ama e criada da família burguesa do realizador, uma mulher de etnia indígena que talvez tenha sido uma presença mais maternal na vida de Cuáron que a sua própria mãe. Nesta narrativa, seu nome é Cleo.

“Roma” começa com o trabalho rotineiro desta mulher, mesmo que não vejamos de imediato. A câmara mira o pavimento de um pátio interior à medida que este se enche de água. Ao longe o ruído de uma vassoura é a primeira introdução que temos de Cleo, enquanto os nossos olhos são abençoados com a estranha beleza da água a cobrir a pedra. Suas ondulações profetizam o clímax choroso para o qual caminhamos, enquanto sua superfície espelhada pinta reflexos de um céu por onde voa um jato longínquo. Mesmo quando olha para o chão, Cuarón encontra lirismo, sua paisagem sonora sublinha a vida periférica ao centro das suas composições e detalhes minúsculos como o avião remetem para toda uma humanidade off-screen.

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Um hino humanista em gradações de cinza.

Estas dinâmicas estendem-se por todo o edifício fílmico de “Roma”, que Cuarón filma quase exclusivamente em planos gerais carregados de tanto detalhe vivo e ações secundárias que até Jacques Tati teria inveja. Nunca estamos só a ver o dilema imediato das personagens principais, mas sim a observar a sua contextualização num mundo muito maior que a sua pequenez humana, um mundo definido pelas marés da História e pelas hierarquias de uma sociedade injusta onde a etnia é indissociável de classe económica e onde os mais abastados vivem em estado de negação sintomática da sua nacionalidade e cultura.

O facto é que existe uma natureza míope e necessariamente narcisista no modo como o ser humano encara o mundo, sempre limitado pela sua consciência e condenado a entender o que vê como parte de uma narrativa biográfica a que chama vida. Em consequência, o cinema tende a replicar tal experiência, exacerbando a subjetividade do seu olhar e a importância dramatúrgica das personagens cuja perspetiva orienta a história. Cuáron viola tais convenções.

Ele torna o doméstico em monumental com o simples alargar do seu olhar, com o movimento constante da câmara, com a distância da objetiva e com a paisagem sonora que é livre de música, mas rica em ruídos idiossincráticos a vir de todas as direções possíveis. Assim, “Roma” assume-se como um poema épico que explora todos os temas acima apontados sem nunca sacrificar o seu foco nas experiências de Cleo ao longo de um ano traumático da sua vida. Ela faz os seus afazeres na casa, trata das crianças, testemunha o casamento dos patrões ruir e namora. Ela vive e sofre, ama e ri, sente-se abençoada e é traída. Ela persiste.

Se há algo que parece transcender barreiras de classe, idioma e etnia é o modo como os homens estão sempre prontos a partir, a rejeitar as suas responsabilidades e colocar o peso do universo sobre os ombros das mulheres. Cleo aprende isso quando o seu amante a deixa depois de saber que ela engravidou. Tal como o pai dos meninos que ela cria, tal como o seu pai cuja ausência em diálogo diz mais que mil palavras. Cuáron mantém a sua distância, nunca viola a integridade da sua protagonista e muito pinta com os vazios que deixa no retrato.

Pelo fim, nem o realizador nem nós, sua audiência, alguma vez vamos compreender Cleo, que pela sua condição humana é um mistério que só ela mesma algum dia poderá resolver. Até a prestação de Yalitza Aparicio reflete tais dinâmicas, sendo generosa em calor humano e emoções fortes, mas psicologicamente opaca em situações do quotidiano. Nas mãos de outros cineastas, essa abordagem poderia facilmente resultar num documento clínico e frio, mas Alfonso Cuarón não é um cineasta qualquer e “Roma” rebenta de compaixão e empatia, mesmo quando se desfaz em tragédias hospitalares que são tão mais horrendas pelo seu realismo ou em rituais automobilísticos de um patriarca frustrado.

Já muito se disse do valor épico deste monumento cinematográfico, mas há que entender que tal grandeza só pode existir quando os detalhes pequenos estão presentes como alicerces. “Roma” é um milagre de detalhe imersivo, tanto a nível histórico como pessoal. Há algo de maravilhosamente minucioso na recriação do passado mexicano e das cenografias, por vezes cheias de variedade urbana e outras cheias de opulência meio grotescas de uma classe alta de aspirações europeias. Ao mesmo tempo, tal requinte material vive em comunhão com a especificado das dinâmicas familiares e dos hábitos de Cleo e a família que serve.

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Alfonso Cuarón em estado de graça. Cinema em estado de graça.

Há poucas imagens mais cómicas no cinema de 2018 que a degradante carcaça de uma viatura americana que sempre que sai à rua com a matriarca burguesa ao volante acaba brutalizado. Há poucos instantes mais evocativos que dois irmãos a tentarem apanhar o granizo que fustiga as ruas. Há poucas sequências mais avassaladoras que uma ida à praia que Cuarón filma num plano contínuo dominado pelo som monstruoso das ondas. De idílio familiar, entramos num thriller, numa tragédia bíblica e finalmente num choroso melodrama que nos aquece o coração ao mesmo tempo que exige a libação das lágrimas.

Não há grande modéstia em “Roma”, que está sempre a esticar os limites do seu virtuosismo e a dimensão do seu retrato humano. Contudo, face ao génio nos esforços de Alfonso Cuarón, que aqui foi realizador, produtor, argumentista, técnico de montagem e diretor de fotografia, não podemos encarar essa falta de modéstia como nada que não pura honestidade. “Roma” é fruto de enormes ambições, sendo que a maior delas é a tentativa de sintetizar em cinema o amor sentido por Cuarón para com Libo e o amor que ele mesmo sentiu vindo da mulher que o criou. A complexidade de tais milagres do coração humano nunca será totalmente capturada por uma objetiva, mas “Roma” consegue chegar bem perto de fazer o impossível.

Roma, em análise
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Movie title: Roma

Date published: 26 de November de 2018

Director(s): Alfonso Cuarón

Actor(s): Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta, Marco Graf, Daniela Demesa, Nancy García García, Verónica García, Andy Cortés, Fernando Grediaga, Jorge Antonio Guerrero

Genre: Drama, 2018, 135 min

  • Cláudio Alves - 95
  • José Vieira Mendes - 90
  • Daniel Rodrigues - 80
  • Luís Telles do Amaral - 85
  • Inês Serra - 80
  • Miguel Pontares - 87
  • Virgílio Jesus - 100
  • Catarina d'Oliveira - 80
  • Maggie Silva - 95
88

CONCLUSÃO

Por entre telhados cheios de criadas indígenas a estender florestas de roupa a secar, incêndios que interrompem festas de Natal em jardins zoológicos taxidérmicos e tragédias na mesa de operação, “Roma” é um épico do mais alto gabarito. Alfonso Cuarón, que já foi ao espaço e ao futuro nunca assinou gesto tão grandioso, tão político ou pessoal.

O MELHOR: A praia, as ondas e as lágrimas.

O PIOR: Os limites de caracterização que as próprias premissas épicas e humanistas do filme exigem. Cuarón nunca pode tornar Cleo numa figura totalmente transparente ou a família burguesa em mais que impressões humanas o que não prejudica a experiência geral de “Roma”, mas rouba-a de alguma complexidade.

CA

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