luchino visconti neorrealismo italiano roberto rossellini

Rossellini, Visconti e o Neorrealismo Italiano

Roberto Rossellini e Luchino Visconti são duas das figuras mais importantes na história do cinema, em parte pelas obras das suas respetivas filmografias que se incluem no Neorrealismo Italiano.

Em tempos, a estética estandardizada do cinema mainstream, independentemente da sua nacionalidade, era grandemente caracterizada pelo romantismo antinaturalista a que muitos historiadores e teóricos costumam denominar como classicismo cinematográfico. Hoje em dia, vivemos uma hegemonia do realismo, onde noções de credibilidade visual, textual e performativa se impõem e qualquer gesto cinematográfico que fuja a estes limites é um objeto de imediato destaque.

Historicamente, a grande reviravolta nestes valores e gostos, tanto de audiências como de cineastas, é facilmente encontrada nas vanguardas europeias dos anos 60 e sua subsequente influência sob o cinema de Hollywood, que então renascia por entre os escombros do sistema dos grandes estúdios cujo apocalipse já se via no horizonte desde o pós-guerra. Com isso dito, foi na Itália dos anos 40 que algo próximo das nossas ideias presentes de realismo cinematográfico foi pela primeira vez manifesto. Tratava-se do cinema Neorrealista Italiano, talvez um dos movimentos e estilos mais influentes em toda a história da sétima arte.

neorrealismo italiano
ROMA, CIDADE ABERTA (1945) de Roberto Rossellini

Como sempre acontece na História da Arte, a génese do Neorrealismo Italiano é algo gradual, por muito que haja sempre uma tendência a se querer apontar para uma obra como o definitivo início da sua existência. Tradicionalmente, essa obra tem sido “Roma, Cidade Aberta” de Robert Rossellini. Trata-se de uma extraordinária história da resistência italiana durante o auge do fascismo que foi escrita durante esse mesmo período, mas que viria somente a ser filmado após a vitória dos Aliados, no meio das ruínas fumegantes de Roma.

Tal escolha para o nascimento do Neorrealismo faz sentido, especialmente quando consideramos a ligação inquebrável deste tipo de cinema com a Itália ruinosa do pós-guerra. Contudo, cinco anos antes de Rossellini mostrar ao mundo um padre a ser fuzilado por um pelotão nazi, já outro cineasta italiano havia construído uma obra que, nas suas escolhas visuais, trabalho de atores e não-atores e foco na miséria social da contemporaneidade italiana, parece um perfeito exemplo de Neorrealismo.

Só que, ao invés de ser assinado por Rossellini, um romano que toda a vida viveu sob o signo do cinema, “Obsessão” é obra de Luchino Visconti di Modrone, Lonate Pozzolo. Aristocrata decadente, marxista ferrenho, homossexual assumido, amante de ópera e comunista militante, Visconti é das figuras mais complexas e singulares em todos os anais do cinema e, apesar de ser uma persona muito mais difícil de encaixar na história do Neorrealismo Italiano, ele é tão pai desse cinema como Rossellini.

Não obstante o dilema de qual destes filmes merece ser posto no pedestal do primeiro filme Neorrealista de sempre, ambas as obras são objetos esteticamente revolucionários na cronologia da evolução do cinema. Pela sua parte, Rossellini passou os anos que se seguiram a “Roma, Cidade Aberta” a completar a sua Trilogia da Guerra, que também inclui “Paisá” e “Alemanha Ano Zero”, ajudando a cristalizar os cânones do Neorrealismo, incluindo uma aparente necessidade do discurso sociopolítico inerente ao gesto estético da sua captura crua da realidade experienciada pelos seus criadores.

neorrealismo italiano
A TERRA TREME (1948) de Luchino Visconti

No caso de Visconti, a longa-metragem que se seguiu a “Obsessão” não constituiu nenhuma repetição ou solidificação estilística com base na primeira obra. Muito pelo contrário, em “A Terra Treme” de 1948, Luchino Visconti antecipou Rossellini, começando a testar os limites do Neorrealismo, acabando mesmo por ultrapassá-los, redefini-los e traçar o caminho para a sua necessária destruição. Ao representar a vida de pescadores sicilianos que se representam a si próprios no grande ecrã, Visconti disserta o dogma neorrealista e injeta na sua pesquisa antropológica a grandiosidade do épico clássico, elevando o proletariado a heróis mitológicos e suas vidas a lendas tão primordiais como a crispação das ondas na costa agreste da Sicília.

O lirismo do cinema modernista do pré-guerra, especialmente aquele de tradição francesa, une-se aqui a um gosto operático singularmente italiano e explode com o Neorrealismo nascido na miséria urbana de uma nação destroçada pelo Fascismo. Infelizmente para todos nós, este Neorrealismo epopeico nasceu e morreu com “A Terra Treme”, sendo que o seu próprio realizador viria a passar deste registo a um de sátira cruel ao mundo do cinema italiano com “Bellissima”, antes de dar asas ao seu amor pela ópera em “Senso”, onde uma visão marxista da história oitocentista italiana dá de caras com todo o fausto do palco wagneriano.

Rossellini não foi um dos muitos cineastas italianos que, ao contrário de Visconti, se deixaram acorrentar aos dogmas do Neorrealismo. Tal como Visconti também, foi um filme rodado na Sicília que expandiu os horizontes de Rossellini, se bem que no seu caso, mais do que as paisagens naturais, foi a influência de uma inquestionável estrela de Hollywood que veio alterar o código genético do seu trabalho Neorrealista. O filme foi “Stromboli” e a estrela foi Ingrid Bergman, com quem o cineasta teve uma escandalosa relação amorosa e uma espetacular colaboração profissional que havia ainda de dar origem a mais meia dúzia de projetos.

O culto da estrela de Hollywood contaminou assim o Neorrealismo cinematográfico de Rossellini, forçando-o a mutar, o que imediatamente abriu as portas ao melodrama beatifico, que, mesmo assim, se orienta por temáticas que vêm evoluindo desde a trilogia da guerra. Mais do que esse melodrama ou a inserção de Bergman enquanto observadora, espelho e filtro distorto da Itália do pós-guerra e seu cinema de excelência, as colaborações entre a atriz sueca e o realizador italiano são algumas das obras mais importantes na história do cinema pelo modo como se vão progressivamente transformando em filmes sobre a sétima arte.

neorrealismo italiano
VIAGEM A ITÁLIA (1954) de Roberto Rossellini

“Viagem a Itália” é o suprassumo exemplo dessa mesma natureza autorreflexiva, quase meta textual do cinema de Bergman e Rossellini. Com a persona da estrela no seu centro e o pano de fundo da Itália contemporânea, o realizador deixa-se cair na indulgência do romantismo clássico, nos dogmas mais ossificados do Neorrealismo, numa observação proto documental e até em outros gestos cinematográficos que recordam os dramas aristocráticos tão celebrados durante o tempo de Mussolini. É claro que, no mesmo instante em que Rossellini reproduz tais sensibilidades e mecanismos, também ele as disseca e desconstrói.

O modernismo formal de “Viagem a Itália” e suas metódicas repetições poderão, a uma primeira análise, sugerir uma obra fria, mas este é um filme a fervilhar de emoção. Em certos casos é o júbilo da invenção, noutros o terror de atores que parecem aperceber-se da sua mortalidade ao mesmo tempo que contemplam o filme em que se encontram como uma preservação eterna dos seus espectros de celulóide. No final, tais registos colidem, quando Rossellini olha para o futuro da sua arte e parece vislumbrar o cinema moderno de um modo que mais nenhuma obra sua contemporânea assim o fez.

Mais do que tipificarem versões calcificadas e imutáveis do Neorrealismo, os dois pais deste cinema manipularam as suas características de modo a olharem o passado primordial e o futuro assustador. Visconti olhou para os épicos do passado e tornou o realismo cinematográfico no material do qual lendas ancestrais são feitas. Rossellini, trouxe o mainstream de Hollywood à Europa em ruína e daí fez nascer um modernismo insano que aponta sempre para o que está para vir, mesmo que isso implique a destruição do que já foi e a aniquilação do Neorrealismo de “Roma, Cidade Aberta” em nome de um cinema novo.

Muitos dos filmes aqui mencionados estão disponíveis na plataforma online FILMIN. Não percas esta oportunidade de ver algumas das obras mais importantes na história do cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *