Os melhores guarda-roupas de 2016 | 6. Sing Street

Os anos 80 e suas absurdas e excessivas modas estão de volta em Sing Street, um dos mais divertidos e bem-vestidos filmes do ano.

 


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É difícil encontrar, na história do cinema, uma melhor representação visual de opressão institucional prestes a ser dilacerada do que um uniforme escolar cinzento. A imagem é tão forte e indicativa de conformismo em colisão com volatilidade pubescente que a sua utilização em filmes recentes cai no absoluto cliché. Mas, como se costuma dizer, clichés são clichés porque resultam e Sing Street é o perfeito exemplo disso mesmo, construindo uma das suas primeiras grandes cenas em volta da violação deste código opressivo, quando o protagonista é confrontado por um dos padres da sua nova escola católica pelo facto dos seus sapatos serem castanhos e não o preto preferido pela instituição educativa.

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Consequentemente, Sing Street trata-se de uma escolha um pouco óbvia para esta lista dos melhores guarda-roupas do cinema de 2016, sendo que se trata de um filme onde a importância dramatúrgica dos figurinos é constantemente reforçada pelo próprio texto. A apoteose dessa linha de pensamento são os sapatos castanhos que referimos acima. Primeiro, são um sinal de como Conor, o protagonista adolescente, é um pária social e uma figura solitária no seu novo ambiente escolar, quando ele os cobre de graxa preta temos uma primeira indicação de casmurra rebeldia ao mesmo tempo que se vê uma tentativa de inclusão. Finalmente, depois de ganhar confiança graças à banda titular, em que ele é o vocalista, os sapatos castanhos são mais uma vez invocados, desta vez como um símbolo revolucionário, um ataque anti-establishment que dá nome à canção mais provocatória do filme, “Brown Shoes”. Para além do mais, num filme obcecado com o rock dos anos 80, seria de esperar que as roupas fossem tão ou mais importantes que a própria música, não vos parece?

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Pelo menos, os cineastas por detrás de Sing Street, especialmente a figurinista Tiziana Corvisieri parecem ter pensado nisso mesmo, sendo que a constante evolução do visual da banda é uma das maiores fontes de humor visual que o filme tem para oferecer. Quando eles se reúnem para a filmagem do seu primeiro videoclip, o caos reina com máscaras de cowboy, dentes de vampiro, elementos pseudo orientais e um triste fato de veludo azul, mas isso rapidamente evolui e, lentamente, os vários membros vão-se unificando até que apresentam uma imagem coletiva e harmoniosa. Essa imagem, no entanto, está sempre a alterar-se de cena para cena, de glam, a New Age, a imitadores dos Wham e por aí a fora.

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Podemos argumentar que essa constante evolução e procura por uma imagem própria através da imitação é uma visualização bastante inteligente do próprio processo de crescimento na adolescência e da influência da cultura pop numa mente em desenvolvimento, mas estaríamos a ser desonestos se não apontássemos como o excesso estilístico destes adolescentes é hilariante. Por vezes, quando estão a entrar na escola, esta trupe parece estar a desfilar por um tapete vermelho, cheios de atitude e pretensiosismo imaturo que apenas salienta quão caricaturada a sua aparência acaba por ser. Felizmente, o filme e o seu guarda-roupa não se deixam cair nesse simples exagero hiperbólico, encontrando também apontamentos de autenticidade naturalística. Veja-se, por exemplo, as indumentárias da família de Conor, sua mistura despreocupada de padrões, estilos démodé dos anos 70 e geral domesticidade despida de qualquer pretensão de glamour rock ’n’ roll.

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Seguindo o próprio desenvolvimento da sua narrativa de crescimento e amor juvenil, Sing Street vai-se movendo entre a banalidade sufocante do quotidiano da vida destes jovens e a fantasia inerente às suas ambições musicais e sonhos de um futuro cheio de fama. Nesse sentido, as suas roupas tornam-se no derradeiro veículo de expressão pessoal e rebeldia, materializando a fantasia nos seus corpos – no final, eles estão quase que a tentar construir-se a si mesmos, às suas personas, de fora para dentro, como atores a prepararem-se para entrar em cena, ou cantores prestes a caminhar para o palco, sendo que aqui esse palco é a sua vida e não um espaço cénico artificial. Assim, as roupas que tanto ajudam a estabelecer um tempo e lugar específicos para a ação, que ilustram os conflitos superficiais da narrativa e são uma fonte de comédia, acabam por se tornar também em instrumentos de catarse e em símbolos da contracorrente de dolorosa e genuína emoção que trespassa todo este filme.

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O melhor exemplo desta natureza multifacetada dos figurinos de Sing Street ocorre no seu mais exuberante número musical, “Drive It Like You Stole It”. Aqui, de um triste ensaio a que a sua amada não comparece, Conor imagina uma épica performance inspirada na visão sacarina dos anos 50 que na altura estava popular graças a filmes como Regresso ao Futuro. Este sonho é colorido, jubilante, energético e claramente uma visão dos anos 50 através das estéticas dos 80, mas nada disso consegue apagar a lacerante melancolia que sombreia a sua alegria visual e emocional. Repare-se como nesta fantasia os seus pais dançam felizes na companhia um do outro (na verdade estão a divorciar-se), como o seu irmão mais velho é um herói vestido como James Dean em Technicolor (na verdade ele é um homem sem rumo nem esperança), como a sua amada é uma visão angelical que rejeita os avanços do seu namorado mais velho (na verdade, ela nunca comparece ao ensaio), e como a sua comunidade os celebra e dança ao som da sua música vestidos a rigor (na verdade, quase ninguém apareceu para o seu ensaio). Enfim, a esperança é a última a morrer, certo?


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Da Irlanda dos anos 80, saltamos, na próxima página, para Hollywood no auge da era doirada dos estúdios e seus muitos absurdos cómicos e insólitos. Não percas!

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