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Soldier Monika, a Crítica: Paul Poet e uma ‘pessoa impossível’ no Doclisboa

Um documentário fora da caixa e inventivo que em Portugal passou pelo Doclisboa, “Soldier Monika” tem uma intenção bem clara: mostrar o potencial infinito da não-polarização num momento em que os excessos políticos e as inclinações extremistas tornam cada vez mais difícil estabelecer um diálogo com quem seja singular e diferente dos demais. 

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Monika Donner, uma figura controversa e de simpatia oscilante, uma ‘pessoa impossível’ – heroína do movimento queer por um lado, lutando pela sua auto-determinação enquanto pessoa trans; apoiante de uma extrema-direita que a abraçou como escritora de teorias da conspiração, por outro – é a protagonista e heroína do cineasta Paul Poet neste Doclisboa de 2024.

A jornada de Soldier Monika no Doclisboa 2024

DocLisboa Der Soldat Monika
©FreibeuterFilm

Através de uma combinação de sequências de sonho, recriações do passado e entrevistas honestas e livres de qualquer tabu ou limitação, “Soldier Monika” tenta compreender quem é uma mulher para lá de complexa – que, em todas as suas contradições, parece resistir a qualquer categorização. É ela uma figura de direita, de esquerda, libertária? Preocupada com o coletivo, humanista, ou individualista?

A história de Monika é distinta, única e meritória de ser recuperada no cinema. Aliás, no Q&A que se seguiu à projeção na Culturgest, o realizador Paul Poet justificou como o carácter original e “não aborrecido” de Monika a tornara o sujeito perfeito para o seu documentário. Monika não alinha com uma estrutura de pensamento pré-formatada, não é sequer afeta a um espectro político e não é estanque ao longo do tempo.

As suas inclinações, as suas relações humanas, as suas opiniões, todas elas são maleáveis, inesperadas, contraditórias e alimentadas por uma curiosidade genuína. Uma curiosidade que é quase ‘child-like’, própria de uma criança. Tudo isto torna-a a pessoa perfeita a escrutinar e a tentar compreender, mesmo que possamos não conseguir chegar a respostas inequívocas, porque um ser humano é muito mais complexo do que uma amálgama de perguntas e respostas.


Paul Poet e o questionamento em Soldat Monika

Der Soldat Monika Doclisboa
© Freibeuter Filmproduktion

“Soldier Monika” não é um filme perfeito do ponto de vista formal, recorrendo pontualmente a um estilo de animação pouco cativante e pautando-se por uma série de instantes teatrais, em que são recreadas cenas do passado de Monika, nomeadamente pré-transição, com intenções nobres, mas nem sempre com o resultado estético ou narrativo mais harmonioso. Cenas onde a representação e o argumento de Paul Poet se submete e esmaga a intencionalidade de franqueza documental. Sim, este documentário que segue o método psicanalítico está longe de conseguir deslumbrar visualmente, mas tem uma vantagem inegável: um ponto de vista astuto e intenções que falam por si.

Realizador, autor, curador, anarco-humanista, jornalista de investigação e cineasta de esquerda, como se define Paul Poet, que assina “Soldier Monika”, coloca-nos perante uma tábua rasa ao apresentar a figura quase mistificada que é Monika: o que é ser um soldado de elite transexual, o que é ter tido vários amores, antes e depois da transição, como se pautam as suas relações com pessoas misóginas do seu passado (e presente) que procuram fechar Monika numa caixa de definições onde esta não tem qualquer interesse em habitar?

Uma defensora do movimento LGBTQIA+ incapaz de se enquadrar nele

Em tempos, as pessoas transexuais na Áustria não tiveram a devida proteção legal na sua mudança de género. Em tempos, mudar legalmente de género, na Áustria, implicara necessariamente comprovar que o órgão sexual prévio havia sido removido. Em “Soldier Monika” descobrimos como Monika Donner, formada em advocacia e detentora de uma posição importante nas forças militares, lutou habilmente contra esta limitação dos seus direitos individuais, derrubando-a (defendendo assim os direitos das pessoas trans austríacas e tornando-se uma pioneira LGBTQIA+).


Todavia, como autora apoiada pela extrema-direita, como vendedora de best-sellers relacionados com teorias da conspiração (do 11 de setembro ao COVID), vemos como a sua posição como negacionista e libertária exacerbada acabou por a deixar entregue a uma indeterminação volátil e a remover-lhe o seu lugar na comunidade queer.

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Uma guerreira feroz mas sem sentido de comunidade, Monika Donner tem uma imaginação fértil, algumas ideias muito polémicas na sua mente e a incapacidade de se enquadrar numa das várias formas de ver o mundo etiquetáveis. Ideologicamente, vemos como Monika, inteligentíssima trabalhadora do Ministério da Defesa Austríaco, consegue mobilizar hordas de negacionistas, os quais são filmados de forma pontual neste documentário, tornando-o rico em material de arquivo.

Soldier Monika no Doc
© Freibeuter Filmproduktion

Todavia, como em tempos heroína transexual, e como pessoa queer, rapidamente vemos neste “Soldier Monika” como a protagonista do documentário acaba naturalmente por ser também rejeitada pelos extremistas de direita. Mas será que, apesar das suas teorias da conspiração e ideias atípicas, Monika pertence verdadeiramente ao grupo dos neo-nazis?

O documentário deixa a forte sugestão de que na realidade não. De que esta mulher de uma inteligência e força mobilizadora rara opera no seu próprio plano, como a figura distinta e insólita que é. Uma figura rejeitada à esquerda e à direita do espectro político. E embora não seja um filme perfeito, a obra de Paul Poet distingue-se através da singularidade da sua protagonista: uma pessoa impossível, com uma mente própria, curiosa e única.

Vale a pena pela descoberta, pelo fascínio de Monika e pela importante mensagem anti-polarização.

O Doclisboa 2024 chegou já ao fim, e por lá passámos, trazendo agora as nossas impressões acerca de alguns dos filmes do certame que mais nos marcaram. Entre eles “Soldier Monika”, na secção “Da Terra à Lua”

Soldier Monika, a Crítica
Poster Soldier Monika

Movie title: Soldier Monika

Movie description: Um psicograma psicadelicamente político de uma transexual de direita e de como ela chegou a ser o que é. Ou pelo menos é isso que parece, à primeira vista...

Date published: 4 de November de 2024

Country: Áustria

Duration: 108'

Author: Paul Poet

Director(s): Paul Poet

Actor(s): Monika Donner, Sarah Zaharanski, Maria Hofstätter

Genre: Documentário, Biografia

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  • Maggie Silva - 73
73

Conclusão

“Soldier Monika”, exibido no Doclisboa, não é um filme perfeito, mas é um documentário com um ponto de vista fascinante (e único) por nos apresentar uma pessoa aparentemente impossível: a suposta heroína queer, militante de direita e focada no individualismo. Mas eis que quando a obra acaba, todas as nossas certezas se dissipam e tudo o que vemos é um ser humano que procura conexão e mantém uma curiosidade brutal em relação ao mundo que a rodeia. Mesmo quando parece interpretar esse mundo de forma contraditória e inesperada.

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