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O Som Que Desce na Terra, em análise

“O Som Que Desce na Terra” é a mais recente obra de origem nacional a chegar ao grande ecrã, contando com um elenco que inclui nomes como: Gabriela Barros, José Raposo, Margarida Marinho e José Condessa. Será que vale a pena?

Primeiro, quero dizer a quem acompanha a publicação destas críticas, que hesitei publicar a que agora dou a conhecer, referente ao filme português O SOM QUE DESCE NA TERRA, dirigida por Sérgio Graciano. Não porque fosse difícil falar das suas fragilidades mas, sobretudo, porque essas não resultam do facto de o principal conflito dramático ser mau, ou não apresentar matéria mais do que suficiente para a estrutura de uma grande obra de cinema. Não, antes pelo contrário, o motivo que leva uma mulher a viajar para Angola em busca do marido ausente e desaparecido em combate, durante a guerra colonial, não podia ser mais forte. Esta personagem, interpretada por Gabriela Barros, inspirada na vida de uma mulher que existiu de facto, na metrópole vai enfrentar uma série de silêncios e barreiras, umas políticas e outras militares, algumas baseadas seguramente num julgamento de género que não dava ao universo feminino o mesmo estatuto que dava ao mundo viril. Procurar o seu marido, desaparecido durante uma operação de comandos, que nem sequer as autoridades militares sabiam ao certo se estava preso, morto ou simplesmente no campo dos que então eram acusados de conluio com o inimigo, ou seja, os desertores, era na época um daqueles desafios maiores do que a vida, algo que felizmente as novas gerações, habituadas a um regime que garante, mesmo com algumas contradições, a liberdade e a igualdade entre homens e mulheres, dificilmente podem sentir no seu verdadeiro peso pessoal e institucional. Mas isso não impede ninguém de perceber as motivações desta mulher determinada, que irá encontrar um expediente para realizar a dita viagem. Funcionária na antiga Emissora Nacional, a emissora do regime, para ultrapassar as referidas barreiras vai convencer o Ministro do Ultramar a levar com ela um conjunto de mensagens gravadas aos militares que estão na frente de combate, com o objectivo de os consolar das saudades sentidas pela prolongada ausência de contactos com os seus familiares. Por outro lado, esta operação era igualmente uma forma da chamada sociedade civil, na retaguarda, expor o que lhe vinha na alma aos soldados na frente de combate, por métodos que hoje parecem pré-históricos, apesar da sofisticação de meios que a referida emissora de rádio, aparentemente, estava em condições de oferecer, para uma deslocação deveras arriscada. Considerando o que vemos no filme, falo sobretudo da utilização algo bizarra de um gravador e leitor da marca Nagra, uma coisinha para custar muitas centenas de contos, como se dizia na altura. Não quero afirmar que não fosse possível, apenas digo que para aquela missão era o menos indicado, quer pelo peso económico, quer pelo peso real do dito equipamento, que qualquer profissional não se importaria nada de possuir, ainda hoje. Para os devidos efeitos, estas mensagens sonoras deviam ser entregues em diversos pontos de Angola, aos que arriscavam a vida no Ultramar, por razões mais do que controversas, pelo menos, para uma parte dos que para lá iam e não viam glória nenhuma em morrer por um país que continuava a protelar o destino dos povos, impedindo o inevitável desenlace independentista, que se materializou só depois da liberdade adquirida a seguir ao 25 de Abril de 1974. Na verdade, de ano para ano, cada vez eram mais os que no interior das forças armadas viam aquela guerra como uma guerra que se perpetuava sem razão de ser, que não se podia ganhar e que, obviamente, não era a causa certa, e muito menos a guerra justa. Estas questões são afloradas e bem no filme, facto que permite gerar alguns momentos de conflito, desenhados com um mínimo de eficácia, entre a mensageira e os militares que criticam a sua presença, apelidando a missão, por palavras diversas, de ser um exercício cínico de má-consciência.

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De qualquer modo, regressando ao que disse em cima, e sem querer fazer os filmes dos outros, permitam-me apenas colocar neste artigo uma questão, ao jeito de reflexão. Se o principal conflito dramático era o de uma mulher disposta a muitos sacrifícios para encontrar o marido, face a um regime político repressor da individualidade pessoal e de género, um regime de silêncios, ou de meias palavras, não seria melhor avançar para o olho do furacão em vez de assistirmos nos largos minutos iniciais a uma, quase sempre, fastidiosa e repetitiva abordagem da vida familiar da protagonista, com a presença excessiva dos filhos, duas crianças que mais parecem dois “santinhos” deprimidos, mais a mãe ou avó que aparenta ser fiel depositária dos mais íntimos segredos do mundo, que ninguém quer saber, mais um pai ou avô, interpretado por José Raposo, com sotaque arraçado de castelhano, ou galego, que mais parece representar com essa expressão linguística para justificar uma breve e irrelevante memória da Guerra Civil de Espanha?

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Ou seja, porque não começa o filme no aeroporto de Luanda, com a chegada da protagonista e com a recepção feita pelo militar que lhe vai servir de guia e por quem, lá mais para diante, estabelece uma relação um pouco mais especial do que a simples relação profissional? Daí para a frente, por exemplo, nos diálogos dessa mesma relação, poderia o espectador descobrir o quando, o como e o porquê da decisão assumida pela mulher do militar, numa autêntica missão de alto risco. Para além do mais, onde era um ser estranho, sujeita a outros riscos pelo simples facto de ser mulher, exposta aos perigos da sedução e não propriamente por métodos muito “católicos”. Isso mesmo será exposto numa sequência capital do filme, uma das poucas que acrescenta energia ao fluir narrativo que, infelizmente, falta em muitas outras ocasiões. Em especial, quando se retrata a selvajaria inerente a qualquer palco de guerra. Nesses outros momentos, o filme precisava assumir uma densidade material e emocional, sobretudo uma credibilidade, que não consegue atingir. Por exemplo, a certa altura ouvimos claramente uma explosão e, logo a seguir, um grupo de soldados vai a correr para o local onde supostamente está um militar morto ou ferido por uma mina. Mas os soldados nem armados vão. Na verdade, alguns mais parecem rapazes arrancados aos bancos do liceu ou da faculdade, em grande medida porque ninguém os convenceu, entre outros pormenores, a cortar o cabelo. Há uma coisa no cinema que não podemos esquecer. Pouco me importa que no mato os soldados pudessem andar assim, contra algumas regras mais básicas da higiene e disciplina militares. Na verdade, uma ficção não pode ser a cópia fiel da realidade, senão o resultado final não funciona. Parece que nos estão a dar gato por lebre. Para além disso, se as bases militares, onde os portugueses e a mulher se encontram, estivessem literalmente cercadas por minas num perímetro com aquele grau de proximidade, os desgraçados que lá estivessem, cada vez que saíssem do aquartelamento, iam pelos ares, ou sofriam emboscadas atrás de emboscadas. De certeza que o dito inimigo até lhes conhecia a cor da roupa interior. Os soldados não fariam mais nada que apanhar os restos dos seus camaradas. E isso não era uma verdade inevitável, sobretudo em Angola.

Falta igualmente credibilidade ao projecto sonoro que, de certa maneira, proporcionou a deslocação daquela mulher ao núcleo duro da guerra, o das mensagens gravadas. Porque, aliás, como refere uma das personagens secundárias, a de um oficial nitidamente mais experiente ou mais cínico, as vozes dos familiares quando partilhadas em grupo, num improvável plenário, e não de uma forma mais íntima como seguramente seria mais adequado, em vez de ser um meio de restaurar ou reforçar a vontade anímica do combatente, pelo contrário, podia muito bem ser um motivo de desestabilização moral. Nada aconselhável, numa altura em que aos combatentes se pedia força e fúria e não saudades da família e da Pátria, sentimentos que são muito bonitos em períodos de paz, mas que não funcionam na frente da guerra, de qualquer guerra.

O Som Que Desce na Terra
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Por fim, se o objectivo daquela mulher era encontrar o seu marido, qualquer espectador mais atento ficará perplexo com a rapidez com que o argumento despacha a questão, lá para o final. E chegado aqui, nada mais direi, apenas porque não quero revelar os derradeiros minutos do filme, pensando naqueles que desejem ver O SOM QUE DESCE NA TERRA, com a mesma legítima expectactiva com que, inicialmente, o visionei. Independentemente do juízo final.

Em suma, não fico nada satisfeito por salientar fragilidades num projecto que gostava muito de gostar. Penso mesmo que a guerra colonial, nas suas diversas vertentes, inclusivamente civis, possui um catálogo inesgotável de histórias que ainda hoje estão por contar. Muitas famílias ainda carregam nos ombros, as marcas e feridas abertas por um conflito, que marcou o Século XX em Portugal. São muitos os factos da História que não desapareceram, nem irão ser esquecidos por aqueles que os viveram. Memórias que continuam a pairar na relação que mantemos com os países africanos, hoje independentes.

João Garção Borges

O Som Que Desce na Terra, em análise
O Som Que Desce na Terra

Movie title: O Som Que Desce na Terra

Date published: 15 de November de 2021

Director(s): Sérgio Graciano

Actor(s): Gabriela Barros, José Raposo, Margarida Marinho, José Condessa, Rui Melo, Joana Seixas, Guilherme Oliveira, Samuel Alves

Genre: Drama, 2021, 106 min

  • João Garção Borges - 40
40

CONCLUSÃO:

PRÓS: Um assunto muito interessante que merece, por si só, ser valorizado e que, quem sabe, pode fazer renascer o interesse pela produção ficcional ou documental baseada nas mil e uma histórias, que podem e devem ser contadas, sobre vidas vividas no antigo regime e no período colonial, sobretudo as que foram colocadas frente aos conflitos pessoais e colectivos nascidos no seio de uma guerra prolongada, que marcou várias gerações para sempre. Pode mesmo ser uma porta aberta para uma nova abordagem da mesma matéria. Não necessariamente sobre a mesma pessoa.

CONTRAS: Infelizmente, um assunto cujo potencial de eficácia, acaba desbaratado por um argumento pouco credível.

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