Spiderhead (A Cabeça da Aranha) © Netflix

Spiderhead, em análise

Spiderhead” é uma estrambólica e delirante sátira de humor negro existencial e anti-corporativa, que nos deixa extasiados do princípio ao fim. Hemsworth, Teller e Smollett são “psicotrópicos” estranhamente viciantes!

Já imaginaram se vivêssemos numa realidade em que pudéssemos andar por aí a afinar as “moods” uns dos outros a toda a hora através de um simples toque nos nossos telemóveis?  Se sim, tentem agora visualizar como seria esse mundo repleto de pessoas com emoções feitas à medida para cada ocasião mais conveniente, como rir à gargalhada com o sofrimento alheio ou contemplar a beleza de um desastre ecológico. É esta a aliciante premissa mor de “Spiderhead”, que Paul Wernick e Rhett Reese retêm do pequeno conto homónimo de George Saunders publicado em 2010, na coluna ficcional do jornal americano “The New Yorker“. Para quem não conhece tanto o seu reconhecido trabalho, os seus ensaios literários envolvem-nos em replicações sobrenaturais e sombrias do mundo material, sempre com a faca do sarcasmo apontada à húbris humana e à decadência societária com um intuito reformador. E embora permaneça intacta a intenção moralista do autor, este “Spiderhead” descarta beneficamente alguns dos conceitos mais abstratos presentes na obra original, com o duo de “Deadpool 2” a adotar uma abordagem guionista mais terrena e palpável, que vai acomodar a sua vertente emanantemente psicadélica.

Spiderhead Corpo
Spiderhead (A Cabeça da Aranha) © Netflix

De todos os nomes mais consensuais para dirigir uma fita com um perfil tão caricatural e onírico – e assim de repente ocorre-nos Terrence Malick, Alex Garland ou Chloe Zhao -, Joseph Kosinski acaba por nos surpreender pela positiva, demonstrando uma faceta cinematográfica mais fora da caixa, tão válida e recreativa quanto os seus famosos blockbusters de ação como “Esquecido” ou o mais recente campeão de bilheteira “Top-Gun: Maverick“. Curiosamente, não é de todo inocente esta escolha de Kosinski pelo controverso manuscrito de Saunders, que até poderá ser visto como um aperitivo para um dos seus futuros projetos acerca do mediático escândalo em torno do polémico fármaco (Oxicodona) comercializado pela “Purdue Pharma”. Existe, aliás, um documentário da HBO intitulado “Crime of the Century” sobre essa matéria. Mas voltando a “Spiderhead”, que dá nome a uma instituição penitenciária de vanguarda, com uma arquitetura brutalista em forma de porta-aviões, edificada nas ilhas Whitsunday, algures na costa noroeste de Queensland.

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Neste complexo prisional mascarado de centro de pesquisa científico, que Kosinski descreve como um Spa para reclusos com penas pesadas, as linhas industriais opressivamente estéreis das paredes curvas em béton brut, fundem-se com as pinceladas berrantes de uma estética decorativa minimalista pós-modernista, muito apreciada pelos vilões de Bond e Hitchcock, à que dizer, traçam aquele mote energético de aparente neutralidade e contenção emocional. Governado por um diretor/cientista tão liberal quanto narcisista, deliciosamente interpretado por Chris Hemsworth (Abnesti), na sua prisão laboratorial os prisioneiros são domesticados pelos seus psicotrópicos experimentais por troca de direitos e regalias como se estivessem de férias na “Ilha dos Amores”. Mas há um senão, e é aqui que reside o busílis de toda a questão, é que as dosagens dos fármacos, controladas por uma acessível aplicação móvel em forma de equalizador, só podem ser “alteradas” mediante o expresso consentimento do paciente, num claro aceno reprovador à atual problemática em torno da privacidade individual e partilha de metadados. E somos logo testados no mais aparvalhado e humorístico tom, que o Dr. Abnesti e o seu tenrinho empregado Verlaine (Mark Paguio) – o técnico responsável pela manutenção das coloridas ampolas do “Mobipack” – uma espécie de “porta-fusíveis” agrafado às costas de cada presidiário que auto-injeta o desejável composto químico -, conduzem um questionário de piadas secas e factos censuráveis a fim de corroborar os efeitos da droga G-46, ou Risodil, que tal como o nome indica, induz o sujeito num desconcertante ataque de riso.

Spiderhead Corpo
Spiderhead (A Cabeça da Aranha) © Netflix

Apanha-nos desprevenidos, é verdade, e talvez por isso assimilamos com alguma indiferença e estranheza o momento “Joker”, que até nos deixa com aquele “ok” arrastado de ceticismo plantado na ponta da língua em relação à qualidade do enredo, que diga-se de passagem, é ferido de banalidade e presunção, mas sabe seduzir com muita lábia e resmas de carisma. Logo de seguida, enquanto tememos que a trama possa tropeçar na tentação de não se levar demasiado a sério, porque é exatamente isso que acontece nos primeiros quarenta minutos de filme, somos introduzidos a Jeff (Miles Teller) – um tipo porreiro que cometeu um terrível erro na vida, e na busca por algum tipo de redenção em prol da ciência, aceita ser o rato de laboratório das experiências manipuladoras do seu carcereiro. Em mais um de muitos ensaios clínicos, desta vez ao ar livre, deliberadamente encapotado numa falsa sensação de liberdade e expressão individual, Jeff é levado a contemplar o horrível como belo ao abrigo de um novo estupefaciente (N-40), coadjuvado por um booster de desenvoltura linguística com nome de cocktail para millenials (Verbaluce), como forma de expressão emocional.

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Não tarda, começamos a anestesiar entediadamente numa autêntica paródia de injeções sob pretexto, intercaladas por um par de flashbacks intrigantes e alguns diálogos de circunstância envolvendo Jeff e a sua esfuziante colega Lizzy (Jurnee Smollett), que só funcionam graças à química magnética alcançada entre os dois atores. Mas também é aqui que a estrutura da narrativa começa a decair em eficácia, ao arrastar-se na tal redundância, por vezes supérflua da sua dimensão mais espirituosa e teatral, culposamente impulsionada pela desdenhosa e egocêntrica personagem que Hemsworth tira genialmente da cartola, que atenua em certa medida a leviana abordagem concetual do argumento, ao servir igualmente o propósito de expor a antagónica contradição entre o prisioneiro (Jeff) e o seu captor (Abnesti). A relação de ambos é forjada naquela base de confiança profissional médico/paciente, mas à medida que Jeff se vai apercebendo da conduta indecente de Abnesti, a tensão entre ambos amontoa-se numa tendenciosa e sugestiva negociação de interesses mútuos, vigorosamente inflamados pelas impagáveis expressões de Teller e Hemsworth, como se estivessem a jogar um jogo de póquer à procura do ponto fraco um do outro. Aliás, o próprio Chris Hemsworth refere numa entrevista que “o gracejo e descaramento de Miles Teller fizeram-no regressar aos bons velhos tempos das patetices de liceu”.

Spiderhead Corpo
Spiderhead (A Cabeça da Aranha) © Netflix

Percebe-se perfeitamente a intenção de Wernick e Rhett em “drogar” o espetador com várias tonalidades emocionais, que a lustrosa e pungente imagem de Kosinski propaga de forma superlativa, sobretudo quando ancorada à intensidade e extravagância de um protagonista sempre em modo “Yatch Rock” cafeinado, com Jeff e Lizzy a fazerem o chamado “heavy lifting” dramático que, por isso mesmo, peca por escasso e cuja autenticidade, embora gratificante, é distraída por ganchos formulaicos em meia dúzia de falas forçadas. Até Verlaine, que é quase abafado em cena, consegue encontrar o seu espaço secundário de vulnerabilidade, mesmo que a sua desbaratada existência apenas sirva o propósito de validar o endeusado estatuto de Abnesti, como se a sua persona não fosse hiperbolizada o suficiente per si.

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De facto, são estas areias na arquitetura formal que subtraem uma parcela de consistência e imersão a “Spiderhead”, uma vez que a engrenagem procedimental empanca numa acentuada décalage tonal e representativa da primeira para a segunda metade do filme. Mas já dizia o ditado: “primeiro estranha-se e depois entranha-se”, e a verdade é que Kosinski agarra nos últimos trinta minutos de fita e injeta-lhe os condimentos em falta, amarrando o espetador a um potente fluxo de adrenalina e suspense encapsulado em contrastantes texturas tétricas e emoções taciturnas periclitantes, que colidem num mirabolante desfecho de belo efeito. Em suma, “Spiderhead” é vítima do paradoxo inerente ao seu próprio conceito, pois tanto zomba com a farmacológica fabricação das emoções humanas, que acaba por ter de correr atrás da sua verdadeira genuinidade. Por outro lado, esta é daquelas metragens nicho, que pela sua especificidade nunca serão consensuais, mas diremos isto em sua defesa: a picada da aranha pode ser imperfeita, mas acaba por conseguir dar-nos a volta à cabeça…

“Spiderhead” já está disponível para consumo consciente numa “Netflix” perto de ti…

Miguel Simão

Spiderhead (A Cabeça da Aranha) | Em Análise

Movie title: Spiderhead (Netflix)

Movie description: Numa penitenciária de vanguarda gerida pelo brilhante Steve Abnesti (Chris Hemsworth), os reclusos usam um dispositivo, colocado cirurgicamente, que lhes administra doses de drogas psicotrópicas em troca da comutação das suas penas. Não existem grades, celas nem uniformes de prisioneiros. Na Cabeça de Aranha, os voluntários detidos são livres de se expressar… até que deixam de o ser. Por vezes, são uma versão melhor de si mesmos. Demasiado agitados? Há uma droga para isso. Deprimidos? Também há uma droga para isso. Mas, quando dois reclusos, Jeff (Miles Teller) e Lizzy (Jurnee Smollett), criam uma ligação, o seu percurso até à redenção sofre uma reviravolta, pois as experiências de Abnesti começam a pôr à prova os limites do livre-arbítrio. Baseado no conto do The New Yorker, de George Saunders, "Cabeça de Aranha" é um thriller psicológico que revoluciona o género, com realização de Joseph Kosinski (Tron: O Legado, Top Gun: Maverick) e argumento de Rhett Reese e Paul Wernick (Deadpool, Bem-vindo a Zombieland).

Country: EUA

Duration: 1h46min

Author: Miguel Simão

Director(s): Joseph Kosinski

Actor(s): Chris Hemsworth, Miles Teller, Jurnee Smollett, Charles Parnell, Tess Haubrich

Genre: Ação, Crime, Drama, Sci-Fi, Thriller

  • Miguel Simão - 75
  • Manuel São Bento - 65
  • Marta Kong Nunes - 65
68

CONCLUSÃO

“Spiderhead” é uma faustosa e cínica fábula em esteróides dirigida às farmacêuticas, que coloca a tónica na arbitrariedade e opacidade dos seus ensaios clínicos, ligando o lado satírico a uma história de amor. Kosinski não desilude na apresentação de um cenário luxuoso de regra e esquadro repleto de estímulos, onde as inspiradas atuações do elenco só são beliscadas por um guião que precisava de limar um pouco mais as suas arestas. Fora isso, “Spiderhead” é uma lavagem cerebral e peras!

 

Pros

  • Filmografia competente
  • Cinematografia refinada
  • Chris Hemsworth é brilhante
  • Química entre Teller e Smollett
  • Banda sonora nostálgica

Cons

  • Argumento inconstante
  • Falhas estruturais
  • Problemas no tom e ritmo
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