FEST ’25 | Spring Came on Laughing – análise
A corrida pelo Lince de Ouro começa no FEST – New Directors New Films Festival em Espinho. “Spring Came On Laughing,” a estreia de Noha Adel nas longas-metragens, é a primeira fita em competição.
Com dois prémios ganhos no Festival do Cairo do ano passado, o primeiro filme de Noha Adel representa uma estreia promissora para a cineasta egípcia. Em quatro capítulos e um epílogo, ela conta as histórias de várias mulheres no Egito dos nossos dias, considerando uma série de questões em torno de temas matrimoniais. A estrutura é ainda mais curiosa pelo modo como atribui um mês a cada parte, contando-os em ordem inversa. Tudo começa em junho, na fronteira das estações, depois vem maio, abril e março. Num gesto final que nos regressa a personagens do primeiro movimento, tudo termina em setembro, fins do verão.
Este mecanismo prende-se a ideias agregadas às estações num imaginário árabe, mas não será, por isso, ilegível para audiências internacionais. Em “Spring Came on Laughing,” a Primavera é tempo de flores perfumadas, muita cor nos jardins e um geral sentido de renascimento natural. Só que, com a flor, também a discórdia humana desabrocha, tempestades rugem nos céus e nas almas. Tradições antigas pressagiam a época como tempo sortudo para o casamento, quiçá porque a terra está fértil e tudo em redor parece mais vital que nunca. Só que também aqui existe uma tensão subjacente, porque o nascer de algo novo implica a morte do velho.
Mas pensemos em cada parte desta “Spring Came on Laughing.” Mesmo antes de o ecrã abandonar a tela preta dos créditos iniciais, já ouvimos o burburinho de um público altivo, alguma multidão à espera de um artista famoso e suas canções de amor. Contudo, quando a imagem se manifesta, não vemos o cenário esperado. Pelo contrário, deparamo-nos com tableaux naturais, plantas e animais. Os enquadramentos fragmentam os sujeitos e, gradualmente, passamos do jardim para a domesticidade, onde um grupo de amigos se ri enquanto falam sobre um gatinho adorável. Esse também está em cena, observando a folia dos donos.
Estamos em Junho e temos quatro protagonistas, dois anciãos viúvos que já se conhecem há muitos anos e seus filhos. O cenário será a casa da senhora, cuja filha adulta veio apoiar a mãe depois da morte do patriarca. Os convidados são um doutor muito amável e sua progénie, certo senhor vindo do Dubai para acompanhar o pai nesta missão. Porque, não obstante a casualidade da conversa, existe um pretexto para a visita, algo que só se torna evidente depois de muito falatório, conversa fiada sobre tudo e sobre nada. Só que, mesmo andando em círculos, o diálogo revela, interioridades secretas trazidas à superfície pouco a pouco.
Na Primavera, toda o riso se torna choro.
Só que depois vem a bomba, a proposta de casamento entre os dois idosos. A paz e as boas maneiras partem-se em mil pedaços, com a filha em ardente fúria, indignada ao ponto que começa a deixar passar verdades que provavelmente queria manter fora do alcance dos outros. Por exemplo, o ressentimento que tem para com a outra família, uma história de amor quebrada, uma série de arrependimentos que assombram o espírito. O que começa com humor torna-se numa tragédia, corações partidos entre os quatro e nenhuma resolução à vista. Num instante de reflexão e silêncio, a câmara afasta-se pela primeira vez, deixando-nos ponderar os quatro antes de ficar com a viúva e as flores do pretendente, triste lembrança do que não pode ter.
Há uma qualidade reminiscente de Altman nestes preparos dramáticos, especialmente no que se refere à ênfase no diálogo sobreposto e sua filmagem, tudo som naturalista e uma câmara atenta, mas solta. Ou talvez um Cassavetes mais suave, um Hong do Médio Oriente que ainda mantém a obsessão com gatinhos. Mas o pranto que está no fim dos contos é mais próximo de Bergman, ou dos mestres iranianos que tão bem tornam o palco doméstico num campo de batalha. Dito isso, o jogo da comparação é perigoso e devemos entender o trabalho de Adel enquanto expressão individual. Especialmente porque é tão consistente.
Em maio, o cenário e as personagens alteram-se, mas a técnica igual, sempre muito apoiado nos atores, sua química e numa observação cativa, quase míope. Desta vez, estamos num restaurante, celebrando o aniversário de uma quarentona chamada Zazou. A festa faz-se com amigas de longa data e o coro grego passam a ser os outros clientes ao invés de um felino curioso. Apesar de os pratos servidos serem de aspeto delicioso, este é um festim de mesquinhez e coscuvilhice. Há felicidade genuína na comunhão destas mulheres, mas muito do seu prazer deriva do desdém mostrado umas com as outras e com pessoas que nem estão presentes.
Adel faz estas observações sem o julgamento prescritivo da câmara. Pode haver moralismo, mas “Spring Came on Laughing” não é e não será um sermão. O mesmo não se pode dizer do texto, pelo qual Zazou se mostra vilificada, vomitando inseguranças enraivecidas quando pensa que uma das amigas está a segredar maldizeres sobre a aniversariante. O riso transforma-se em gritaria pública e, no fim, descobre-se o erro egocêntrico, pois a conversa não era sobre Zazou, seu ex-marido traiçoeiro ou a amante síria dele. De facto, tratavam-se de observações da amiga sobre si mesma, uma partilha de humilhações em busca de alguma solidariedade.
Atrizes sublimes em registo tragicómico.
Abril traz mais lágrimas e ainda mais gritaria, descendo na hierarquia social para retratar a vida de mulheres mais humildes, incapazes de viver nos casarões da primeira história ou ir aos restaurantes chiques da segunda. Passa-se tudo num cabeleireiro minúsculo, verdadeira lata de sardinhas onde trabalhadoras e clientes mal se conseguem mexer e os filhos de ambas ficam em cantos e recantos, a brincar com bonecos de plástico ou algum faz-de-conta para se distraírem. O constante uso do seu olhar inocente para pontuar as cenas faz deste o mais doloroso dos contos, orientando-se em torno de duas clientes com privilégios muito distintos.
Uma passa o tempo todo a queixar-se de dinheiro, atrasando o divórcio porque não quer que o dinheiro da família vá todo para a nova apaixonada do marido. Há que se salvaguardar a si e aos filhos para quem uma ida ao McDonald’s é o mais alto dos luxos. Outra cliente, mais nova e endinheirada, não para de falar sobre o seu noivado, vangloriando-se do anel de diamantes com que ele a pediu em casamento. O conflito surge quando essa peça de joalharia é dada como desaparecida, induzindo uma situação de pseudo sequestro. Ninguém sai dali até se encontrar os diamantes e a maior suspeita é a mãe desesperada. Afinal, seria ela quem mais precisaria da quantia ganha se vendesse o anel furtado.
A sonoplastia chega a um píncaro caótico nesta passagem, demarcando ainda mais os silêncios com que Adel força a comédia de costumes a amargar num drama cruel. Depois deste extremo, março manifesta-se em jeito de alívio. Desta vez subimos na estratificação económica da sociedade egípcia, para ponderar uma jovem que se prepara para subir ao altar. Tudo começa a dar para o torto com a chegada de uma dama-de-honor cujo estilo extravagante e estatuto enquanto mulher divorciada causam transtorno à mãe da noiva. A discussão das duas estende-se às restantes, até que o riso vira grito vira silêncio e vira lágrima.
Em certa medida, é mais do mesmo, até com as variações que a realizadora inclui pelo caminho. No entanto, os atores trazem profundidade ao que podiam ser caricaturas e o resultado final consegue comover. Ajuda muito que a conclusão de março seja a mais surpreendente, como que justificando a repetição estrutural e abrindo caminho ao gesto circular de volta aos viúvos da primeira cena. Acompanhados somente pelo gato, eles conseguem recuperar a paz perdida. Também volta o tema da canção de amor, cheia de melancolia em contrapartida à doçura, servindo de aviso e de glorificação das paixões que tanto nos encantam como deitam abaixo.
“Spring Came on Laughing” é como essas músicas antiquadas, ecoando ainda um poema de Salah Jahin sobre a estação das flores, da morte e da renovação de vidas, paisagens, amores. Terá sido essa a inspiração principal de Adel que aqui confirma os seus talentos enquanto dramaturga. O trabalho com os atores também está de parabéns, mesmo que muito desse crédito vá para o modo como o engenho cinematográfico nos dá acesso às suas intimidades. Destaca-se o trabalho de câmara de Sara Yahia e a sonoplastia de Ahmed Aboulsaad, com algumas palmas para a figurinista Moushira El Fahham. Num filme destes, é fácil reduzir tudo ao elenco, mas até a produção mais centrada na interação humana depende do fundamento audiovisual do cinema para funcionar.
O FEST – New Directors New Films Festival decorre até dia 28 de junho em Espinho. Não percas a nossa cobertura!
Spring Came on Laughing
Conclusão:
- Noha Adel é uma realizadora egípcia em início de carreira cuja primeira longa-metragem promete uma perspetiva fortemente feminina com uma ênfase na dramaturgia como principal foco do seu trabalho. “Spring Came on Laughing” é uma tragicomédia em quatro partos e um epílogo que nos apresenta um novo elenco e nova história com cada movimento. Apesar do arco tonal e temas discutidos permanecerem constantes, há variação suficiente para justificar a forma narrativa. Enfim, a repetição é inevitável, mas a redundância consegue ser evitada.
- Aumentando o número de figuras em quarto narrativo, Adel cria a ilusão de um crescendo sinfónico, muito ajudada por um trabalho soberbo de sonoplastia. Com tanto diálogo sobreposto à la Robert Altman, esse aspeto é essencial.
- Em resumo, é uma estreia promissora e, nós por cá, vamos ficar de olho nesta nova cineasta.