"The Kitchen - Rainhas do Crime" | © NOS Audiovisuais

The Kitchen – Rainhas do Crime, em análise

Melissa McCarthy, Tiffany Haddish e Elisabeth Moss são as rainhas da máfia irlandesa da Nova-Iorque dos anos 70 em “The Kitchen – Rainhas do Crime”, o novo filme da DC Comics.

As ruas estão sujas e não é só com lixo. Todas as manhãs, donos de lojas cabisbaixos ora limpam os vidros das suas montras partidas ou tentam esfregar o sangue da calçada depois da polícia ter removido os cadáveres deixados pela máfia irlandesa. A estrada que entrecorta a vizinhança é como um rio preto, todas as noites cheio de carros e condutores impacientes, engarrafamentos que erguem nuvens de fumo de tubo de escape sobre os passeios por onde passeiam prostitutas e seus proxenetas. Quem dorme, quem tem coragem de dormir nessas noites tumultuosas, fá-lo com as portas trancadas com várias fechaduras e uma arma debaixo da almofada. Assim é o bairro nova-iorquino de Hell’s Kitchen no final dos anos 70.

Pelo menos, é essa a imagem que “The Kitchen – Rainhas do Crime” pinta ao seu espectador. Trata-se da imagem de um mundo onde nunca parece haver luz que chegue e tudo está coberto com uma pátina de sujidade, até as almas daqueles que capitalizam na insegurança deste sítio e fazem dele o seu império. São almas sujas para pessoas amorais. O filme de Andrea Berloff, baseado em livros de banda-desenhada da DC Vertigo, conta-nos a história de algumas destas pessoas. Nomeadamente, este é o conto de cerca de dois anos na vida de um trio de esposas de criminosos que, quando os maridos são presos, se veem à mercê da caridade anémica dos novos chefes da vizinhança. Sem dinheiro sequer para pagar a renda, sem instrução ou empregos à vista, elas viram-se para a única coisa que conhecem e que sabem fazer – crime.

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Kathy Brennan, é uma mãe extremosa e esposa devota cuja família materna tem ligações antigas à máfia irlandesa. O seu pai muito deplora e critica o submundo ilícito em que a filha se envolveu quando casou, mas não deixa por isso de colher os frutos dos seus crimes. Enquanto Kathy é realeza da máfia por sangue, Ruby O’Carroll é uma pária que nunca ninguém aceitou, nem mesmo depois do seu casamento. Interpretada por Tiffany Haddish, Ruby é uma mulher afro-americana que não cresceu em Hell’s Kitchen e cujos pais abusivos a tentaram esculpir à imagem de uma mulher dura e ambiciosa. Talvez em tempos ela tenha amado o marido, mas, quando a vemos pela primeira vez, qualquer afeto que existia entre os dois, há muito morreu e só deixou para trás um espectro amargo e ressentido.

Claire Walsh completa o trio de criminosas e é, de longe, a mais interessante das protagonistas de “The Kitchen”. Se as outras mulheres aprendem a aceitar o custo de uma vida de crime, aprendem a tolerar a violência e a usá-la sem piedade para atingir os seus fins, Claire descobre que foi feita para puxar por um gatilho e desfazer cadáveres na banheira. Tais gostos emergem como uma reação violenta face a uma vida passada a ser o saco de pancada de todos os homens mais importantes da sua vida, desde o pai, ao marido e até os sem-abrigos que ela encontra no voluntariado para a igreja. Uma vítima de agressão masculina a pegar nas armas da sua opressão para as virar contra aqueles que a ameaçam é a figura perfeita para esta história e também a mais moralmente complexa. Para vencer os monstros, ela torna-se num monstro.

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O que também ajuda Claire a se destacar é que, por muito bom que seja o trabalho das outras duas atrizes, Elisabeth Moss está claramente noutro patamar. Andrea Berloff é uma realizadora estreante, mas aqui ela demonstra ter grande olho para dirigir e filmar atores, permitindo que cada uma das suas protagonistas construa caracterizações distintas com detalhes facilmente ignorados. Veja-se, por exemplo, como McCarthy parece sempre insegura e amedrontada, mesmo em cenas onde o seu diálogo sugere o discurso de alguém que ganha a vida a derramar o sangue de outros. Haddish, em contraste, deixa sempre que a audiência perceba como Ruby está a projetar uma imagem de dureza. Ela não tem medo, mas a impiedade com que constrói o seu império é uma performance social que tem de ser sempre cuidadosamente mantida com esforço.

Moss não segue tais caminhos, em parte pois Claire é-nos imediatamente apresentada como uma figura vulnerável e é o trabalho da atriz mostrar-nos algo mais que isso e não iluminar a insegurança por detrás da senhora do crime. Desde o pequeno sorriso que ela esboça quando o marido é condenado até ao júbilo psicopático com que mata um dos seus abusadores, Moss está sempre a delinear quanto Claire foi transformada pelo seu passado e não tem problemas com o preço a pagar pela felicidade. Repare-se como um dos seus momentos mais relaxados e luminosos passa-se depois de um homicídio particularmente marcante, quando ela e o amante, sedutoramente interpretado por Domhnall Gleeson, planeiam um futuro risonho e parecem quase excitados com o derramar de sangue.

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Infelizmente, nenhuma das outras personagens, nem mesmo o gangster habilidoso de Gleeson, têm muito tempo para deixar uma impressão no espectador. Ao contrário de quase todos os filmes da Hollywood contemporânea, “The Kitchen” não sofre de uma duração excessiva, sendo que, de facto, o filme devia ter para aí o dobro do tempo. Na sua forma atual, as cenas não têm tempo para respirar e é quase como se duas ou três temporadas televisivas tenham sido enfiadas à força em 102 minutos muito preenchidos e com um ritmo abismal. Isto é particularmente notório no último ato da narrativa, quando tudo começa a dar para o torto e qualquer desenvolvimento de personagem vai borda fora em prol de resoluções apressadas. Por alguma magia infernal, esta precipitação de enredo não impede o filme de cair numa letargia de tédio que nunca consegue redimir.

A ascensão das senhoras do crime acontece numa de muitas (demasiadas) montagens ao som de um hit dos anos 70 e a sua maior crise é resolvida com semelhante brevidade. As mortes são sempre instantâneas, com um só tiro e pouco sangue, sem nunca o espectador ter de confrontar a dor de um ser humano a perder a vida. Na página, “The Kitchen” é um clássico exemplo de uma narrativa com protagonistas anti-heróicos, mas Berloff e companhia parecem querer evitar as complicações morais de tais tonalidades negras. Em vez disso, o filme prefere olhar para elas como simples heroínas. As atrizes oferecem prestações exímias e a construção visual de “The Kitchen” tem o seu charme, mas o projeto final fica muito aquém das expetativas e do seu potencial, em parte porque se recusa a encarar com franqueza a monstruosidade que se esconde por entre este conto de poder feminino num mundo onde o crime é rei e a justiça é uma ilusão.

The Kitchen - Rainhas do Crime, em análise
The Kitchen Rainhas do Crime

Movie title: The Kitchen

Date published: 7 de August de 2019

Director(s): Andrea Berloff

Actor(s): Melissa McCarthy, Tiffany Haddish, Elisabeth Moss, Domhnall Gleeson, Margo Martindale, Common, Bill Camp, James Badge Dale, Brian d'Arcy James, Jeremy Bobb, Annabella Sciorra

Genre: Ação, Drama, Crime, 2019, 102 min

  • Cláudio Alves - 55
55

CONCLUSÃO:

“The Kitchen – Rainhas do Crime” é uma brisa de ar fresco no panorama dos filmes da DC Comics, mas não deixa por isso de ter graves fragilidades. Felizmente, um grande elenco, bom design e uma realizadora com grande habilidade para dirigir atores quase redimem as piores partes do projeto. É um projeto com muito potencial desperdiçado e, para ver uma premissa semelhante, mais vale revisitar o miraculoso “Viúvas” de Steve McQueen.

O MELHOR: Elisabeth Moss e Domhnall Gleeson são espetaculares e têm ótima química. Sempre que eles não estão em cena, especialmente nas partes finais do filme, o espetador sente a sua ausência.

O PIOR: A natureza demasiado veloz e subdesenvolvida de uma narrativa que merecia muito mais que 108 minutos. Talvez funcionasse melhor como uma minissérie com outro guionista, mais audaz e menos predisposto a glamourizar a monstruosidade das personagens.

CA

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