The People’s Joker, a Crítica | Muita palhaçada no Queer Lisboa
Em jeito anárquico e híper-provocador, a realizadora Vera Drew desafiou as leis do copyright e arriscou a ira da DC, da Warner Bros, e dos bons costumes. “The People’s Joker” passou na Competição Queer Art do Queer Lisboa 2024.
Quando o primeiro “Joker” de Todd Phillips chegou aos cinemas, a argumentista Bri LeRose encorajou a amiga Vera Drew, uma fã do universo DC, a reeditar o filme como seu projeto artístico. Durante esse processo, Drew refletiu sobre os paralelos entre a sua história pessoal enquanto mulher trans e os fios narrativos presentes no blockbuster niilista da Warner Bros. Entre sentimentos de exclusão, o tabu quebrado e problemas da influência materna, Drew começou a engendrar um projeto muito maior que uma simples remontagem do “Joker.” Primeiro, passou pelo uso de imagens dos restantes filmes Batman. Depois, por uma paródia completamente nova.
Através do crowdfunding, Drew angariou suficientes fundos para levar o projeto para a frente, deixando-o metamorfosear-se em algo diferente, mais próximo de um bildungsroman sincero, meio autobiográfico, que do simples exercício cómico. “The People’s Joker” fez-se com a ajuda de amigos e uma multidão de artistas independentes, renegados e rebeldes, tornando-se num monumento à expressão livre, feita em homenagem e conflito com os grandes poderios de Hollywood. Em certa medida, se os livros de banda-desenhada querem ser a mitologia moderna, têm que aceitar ser tratados como tal, remexidos e referenciados, reformatados pelo público.
Uma produção atormentada por problemas legais.
Nem os estúdios Warner nem a DC Comics concordam com isso, diga-se de passagem. Mesmo antes de Vera Drew exibir o filme em qualquer contexto público, já a cineasta recebia ameaças legais em conflito com a exceção da paródia em direitos de propriedade intelectual. Esta luta teve o seu primeiro clímax durante o Festival de Toronto de 2022, quando “The People’s Joker” teve a sua estreia mundial. Só que, imediatamente após a primeira projeção, Drew e o TIFF cancelaram as restantes sessões em reação a novas pressões jurídicas. A obra foi também retirada de outros festivais até à sua estreia Americana no Outfest, em Los Angeles. Por fim, depois de dois anos, lá Drew encontrou distribuição.
“The People’s Joker” chegou aos cinemas internacionais em 2024, mesmo que ainda demore a encontrar caminho para mercados como o nosso – há que dar graças ao Queer Lisboa. Tem-se tornado num dos filmes mais bem-recebidos do ano, aclamado pela crítica e, na conjetura presente, até parece ser melhor aceite que o “Joker: Folie à Deux,” que Phillips, Phoenix e Gaga acabaram de estrear. É um fado curioso para uma obra que exemplifica um cinema radicalmente queer, predisposto a questionar os bons costumes tanto ao nível da narrativa como da forma. Num paradigma de maximalismo digital, “The People’s Joker” aponta para o futuro do meio.
Contextualizações aparte, o filme passa-se numa distopia controlada pelo Batman, mais déspota que super-herói. Ou melhor, a história decorre numa dimensão interior, qualquer coisa do além, de onde a nossa heroína reflete sobre a sua vida neste universo pérfido. A biografia tem início em Smallville, uma infância amargurada, onde os problemas de género se começam a revelar para o horror de uma mãe ríspida. Apavorada com a filha que ela vê como um filho, a senhora leva a criança para Arkham e sai de lá com uma receita para Smylex, uma droga que anestesia a mente, mas deixa o medicado com um sorriso grotesco na cara.
Chegada a idade adulta, a (anti)heroína muda-se para longe da mãe, para Gotham, onde decide tornar-se em comediante. Infelizmente, o talento é pouco e o sucesso mainstream está longe do seu alcance, em parte por questões financeiras. Nesta situação, só há uma possível conclusão – renegar as leis que limitam os tipos de humor autorizados e fundar um clube de anti comédia com o melhor amigo, Oswald Cobbplepot, também conhecido como o Pinguim. Assim se forma uma comunidade de comediantes contra o sistema, incluindo Jason Todd, um joker transgénero com quem a protagonista começa uma relação.
Quando a paródia supera o original.
Esse namoro abre-lhe os olhos para a sua verdadeira identidade e assim um joker torna-se em arlequim. Não que a protagonista se constrinja aos ditames de uma sociedade fundada num regime patriarcal. No meio de tudo isso, há antagonismos contra o Batman e um agrupamento de vilões, distorções fascistas do “Saturday Night Live,” uma piada imperdível sobre RuPaul e tantas referências à longa história da banda-desenhada que só um fã ferrenho as conseguirá decifrar todas. Sente-se o afeto de Drew pela cultura popular que ela apropria como matéria-prima, mas também a vontade de quebrar todas as regras e levar o espetador a questionar tudo o resto.
O estilo cómico é tão doido como as personagens, mas não obscura a sinceridade do exercício. De facto, a realizadora vai buscar tanta ou mais inspiração ao cinema “coming of age,” seja ele de uma sensibilidade convencional ou mais transgressora. Essa qualidade dá profundidade emocional ao seu trabalho, uma dor genuína que proporciona o humor negro e serve de combustível para a revolução, dentro e fora do ecrã, dentro da narrativa e mais além. No seu niilismo adolescente, o “Joker” de Todd Phillips e sua sequela pouco desafiam o espetador ou a sociedade que o produziu. “The People’s Joker,” pelo contrário está sempre ao ataque, sempre pronto a chocar à séria e a surpreender com rasgos de nuance.
Isso estende-se ao formalismo patente no projeto. Feito em frente a green screens baratos, a fita depende de ambientes ilustrados, animações cruas e uma total renegação do mundo material. Estamos no patamar do sonho computorizado, como se John Waters tivesse nascido noutra época e criado fanzines online ao invés do seu cânone cinematográfico. O filme é feio com propósito e com garra, mas também é belo à sua maneira muito própria, sempre a rebentar de ideias e eletrizado pelo espírito anárquico da sua criadora. Vera Drew pôs o nome no mapa com “The People’s Joker” e mal podemos esperar para ver o que ela fará a seguir.
Depois do Queer Lisboa vem o Queer Porto. A edição portuense do festival decorre de 8 a 12 de Outubro. Não percas!
Queer Lisboa '24 | The People's Joker, a Crítica
Movie title: The People's Joker
Date published: 4 de October de 2024
Duration: 92 min.
Director(s): Vera Drew
Actor(s): Vera Drew, Lynn Downey, Kane Distler, Nathan Faustyn, David Liebe Hart, Phil Braun, Griffin Kramer, Christian Calloway, Trevor Drinkwater, Ruin Carroll, Tim Heidecker, Denali Winter, Bob Odenkirk, Scott Aukerman, Alec Robbins, Sandy Honig
Genre: Comédia, 2022
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Cláudio Alves - 85
CONCLUSÃO:
Um cinema do green screen, do simulador de Minecraft e paródia do SNL, uma colagem de fãs renegados com um humor muito negro e referências obscuras até dizer chega – assim é “The People’s Joker,” um exercício em cinema queer com uma veia vanguardista. O radicalismo do trabalho que Vera Drew aqui fez não se pode subestimar, desde a disputa legal até ao júbilo trans que esfrega na cara de todo o espetador. Como que portadora da sua própria garrafinha de Smilex, a cineasta está sempre pronta a atordoar o público e espalhar sorrisos rasgados pelo mundo. Mas, neste caso, os efeitos secundários são mínimos.
O MELHOR: O registo de desmaterialização por meios digitais, uma solução low-fi cuja extravagância faz recordar as experiências tardias de Nobuhiko Obayashi.
O PIOR: “The People’s Joker” vive numa conjetura de criação às margens da “outsider art.” Por isso mesmo, não será para todos os gostos ou sensibilidades. É fácil olhar para a fita e invalidar a sua proposta devido ao amadorismo gritado.
CA