Três Amigas – Análise
Na Bienal de Veneza do ano passado, Emmanuel Mouret apresentou “Três Amigas,” conhecido como “Trois Amies” no original francês. Na competição pelo Leão de Ouro, não ganhou qualquer honra, mas o filme merece consideração mesmo assim. Com India Hair, Camille Cottin e Sara Forestier nos papéis principais, trata-se de um texto curioso sobre relações românticas, traições e culpas, humores perversos e ambivalências morais.
Apesar de carecer o reconhecimento internacional dos seus colegas contemporâneos, Emmanuel Mouret afigura-se como um dos autores mais interessantes no cinema francês dos nossos dias. Não por qualquer radicalismo ou estilo revolucionário. De facto, o contrário será verdade. Ver um filme de Mouret é como vislumbrar um passado preservado além do crepúsculo do século XX e a alvorada do novo milénio. O seu trabalho perpetua tradições cinematográficas que poderiam ser justamente descritas como démodé, trazendo uma técnica e expressão meio fossilizada até à vanguarda digital.
Seria fácil traçar uma linha que unisse diretamente o seu cinema àquele levado a cabo pelos nomes mais esteticamente conservadores da Nouvelle Vague. Pensemos em Rohmer ou Moullet, numa expressão que, em tempos, quebrou convencionalismos do grande ecrã para produzir um trabalho onde a escrita se assumia acima da construção audiovisual mais espampanante associada ao entretenimento vulgar. Não era um manifesto de ascetismo, mas certamente surgia como a procura de uma forma pura, de um mecanismo simplificado, feito com disciplina e precisão em sintonia com sensibilidades humanistas, estudos sociais, culturais, de personagem e de costumes.
Mouret é herdeiro de Rohmer e Moullet.
Não apelo a tais nomes e abordagens numa tentativa de menorizar aqueles que seguiram caminhos opostos. Elogiar a contenção deliberada destes autores não é insulto para com Godard, Truffaut, Resnais, Varda, Demy, e tantos outros. No mesmo sentido, não pretendo colocar Mouret num pedestal acima dos cineastas gálicos em atividade paralela. Simplesmente reconheço um classicismo invulgar em seu trabalho, razão para destaque, mesmo quando seria fácil desdenhar os filmes como enfadonhos exercícios que pouco ou nada surpreendem. Que pouco ou nada inovam, ficando de olhos postos no passado ao invés do amanhã.
Uma das mais-valias desta abordagem é, no entanto, a atemporalidade reivindicada por textos cujos dilemas fazem tanto sentido hoje como há cinquenta anos. “Três Amigas” é exemplo perfeito, debruçando-se sobre as mágoas universais e eternas dos relacionamentos, amores cruzados e amizades traiçoeiras, afetos que se perdem ao longo dos anos e se tornam algo próximo da indiferença, quiçá até do ressentimento. Para explorar tais temas, ele conta a história dessas três mulheres titulares – Joan, Alice e Rebecca. Contudo, quem narra a fita não é nenhuma delas. Na verdade, nem sequer é uma mulher.
“Três Irmãs” constrói-se em rebuscada estrutura, começando na contemplação post-mortem de Victor, marido de Joan e seu colega na escola onde ambos trabalham como pedagogos. Em primeiras passagens, a sua presença manifesta-se em ausência, à medida que o homem nos fala de tempos antes da sua morte, quando o matrimónio colapsava sob o peso do desafeto feminino. É que Joan já não amava Victor depois de tantos anos juntos, mas, como tinha com ele uma filha pequena, permanecia na relação, agrilhoada a um status quo que a ninguém trazia felicidade. Destas observações, a narrativa rebobina para esse ponto desgostoso no romance dos dois.
Em confidência com as amigas, Joan recebia conselhos para prolongar um amor morto na vertigem do tóxico. Segundo Alice, também ela professora, as melhores relações são aquelas que se negoceiam sem amor verdadeiro a complicar a coisa. Afinal, ela nunca amou o marido, Eric, e eles são felicíssimos. Em contraste, algumas paixões antes do casamento foram demasiado voláteis para o seu gosto, fenómenos mercuriais cujas dissoluções a afetaram como calamidades. O problema é que Alice presume que o seu pragmatismo é só dela e que o marido realmente morre de amores pela esposa. Não é bem assim.
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A terceira amiga também já em tempos se dedicou à educação dos mais jovens, mas agora serve de guia turística num museu em Lyon. A única solteira neste tríptico feminino, ela tem um caso com Eric que, por sua vez, fala de um hipotético divórcio. Só que, na noite em que o casamento de Alice cambaleia no precipício da ruína, Joan confessa o que sente ao marido e este, desesperado, embebeda-se e morre num acidente de viação. Amante do melodrama desdramatizado, Mouret retrata o rescaldo da tragédia com sentimentalismos mínimos e emoção comedida, sem, contudo, negar o modo como a desgraça de Victor reverbera pelas três amigas do título.
Joan é a mais afetada e o realizador muito centra o trabalho de atriz, com India Hair encarregue de articular as interseções de culpa e remorso e continua busca pela liberação. Na escola, quem vem dar aulas aos alunos desamparados de Victor mostra interesse para com a viúva, mas esta, num gesto de autossabotagem quase patológica, parece mais interessada num amigo do professor substituto. Ao mesmo tempo, Camille Cottin vive uma trama quase fantástica, em que o chamamento de um sonho leva Alice a começar um caso amoroso. A Rebecca de Sara Forestier a devia ficar feliz, não estivesse Eric subitamente doido de ciúmes face à traição de Alice.
Paixões passageiras, corações traiçoeiros.
Em certa medida, todas as personagens trespassam o limiar da loucura, suas escolhas e irracionalidades a pintar um grande mural sobre a natureza humana e o modo como sempre desejamos aquilo que não podemos ter. No momento em que algo se torna atingível, o lustro esmorece e a chama do desejo abafa, talvez até se apague. São amores passageiros cuja transigência tomba num existencialismo agridoce. Por certo, Mouret pode arriscar a farsa, no triângulo adúltero, mas deixa sempre uma nota de melancolia ressoar na cena. Cottin é a sua maior e mais importante aliada nesse equilíbrio tonal, enquanto Forestier ocasionalmente cai num registo cómico demasiado unidimensional.
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Hair sofre de um problema oposto, deixando-se arrastar para os abismos mais negros deste enredo tragicómico. Parte disso justifica-se no texto, tendo Joan o fio narrativo mais complicado das amigas. Dito isso, há tanta graciosidade nas gradações de luto que a atriz elabora que será impossível afirmar que os seus excessos desgostosos estragam a pintura a Mouret e à coargumentista Carmen Leroi. Olhando de um certo ângulo, talvez até deem novas dimensões ao seu quadro, aprofundando aquilo que podia ficar muito superficial se o realizador impusesse a ditadura da indiferença. A leveza tonal tem o seu lugar, mas também pode ser proveitoso ir contra tal estratégia, experimentar uma resposta diferente para a mesma questão.
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No meio disto tudo, o formalismo do realizador mantém-se fiel às suas diretivas estilísticas do costume. A câmara concebe tensões interpessoais nas linhas da mise-en-scène, molduras dentro de molduras, grandes planos onde um ajuste do foco altera a leitura de um olhar. Nenhum deste trabalho é especialmente vistoso, jamais disruptivo, ficando-se pela impressão de um cineasta virtuoso sem vontade de impressionar ninguém ou prestar contas a qualquer um que queira mais do seu cinema. Há que respeitar a escolha e eu respeito sem, ainda assim, conseguir render-me totalmente ao artista. Reconhece-se a qualidade, mas “Três Amigas” termina sem conquistar o amor deste espectador.
Três Amigas
Conclusão:
- “Três Amigas” confirma o estatuto de Emmanuel Mouret como um dos suprassumos classicistas do cinema francês contemporâneo. No seguimento de Rohmer, Moulet e outros tantos vanguardistas cujo gosto pela palavra sempre suplantou excessos audiovisuais, ele assina aqui mais um estudo sobre relações humanas que tanto têm de específico como de universal. Há humor entrelaçado com uma premissa trágica, uma narração meio disfuncional e um leque de prestações notáveis.
- India Hair arrisca desequilibrar os jogos tonais de Mouret e Carmen Leroi, mas consegue transcender a possibilidade do erro. Ao invés da desgraça, o seu trabalho puxa o projeto na direção de algo majestoso. Por outro lado, Sara Forestier experimenta comédia mais afincada, enquanto Camille Cottin, Damien Bonnard, Grégoire Ludig e Vincent Macaigne seguem à letra aqueles ditames de tom que têm vindo a marcar a filmografia do seu realizador.
- Muitos elogios merece a disciplina formal, sempre estudada sem exigir o espanto do espectador. Trata-se da maior prova da mestria deste cineasta que, pela sua recusa do radical e do espetacular, tem tido dificuldade em receber a aclamação devida. Pelo menos, a nível internacional. Dentro das fronteiras francesas, ele é bem apreciado, tendo já sido nomeado a quatro Césares. Talvez “Três Amigas” lhe venha a valer mais umas quantas.