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Sita – A Vida e o Tempo de Sita Valles, em análise

A história de Sita Valles chega ao grande ecrã com um essencial documentário realizado por Margarida Cardoso!

NA LINHA DA FRENTE… DESAPARECIDA EM COMBATE…!

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Margarida Cardoso, cineasta sobejamente conhecida e com provas dadas na ficção e no documentário cinematográfico, como a própria confessou na estreia mundial de SITA – A VIDA E O TEMPO DE SITA VALLES, 2022 (ocorrida no passado dia 6 de Maio numa única e muito concorrida sessão do INDIELISBOA) dedicou muitos anos da sua vida a este ensaio sobre os acontecimentos históricos que em Portugal, em Angola, na Europa e no mundo, de uma maneira ou de outra, acabaram por determinar o percurso de uma activista política e dos que com ela partilharam o espírito militante de organizações de esquerda no combate ao poder da ditadura que impunha uma guerra colonial contra a luta de libertação dos povos das colónias, sem esquecer as mudanças ocorridas antes e depois das independências dos países africanos, na maioria dos casos a seguir ao 25 de Abril de 1974. Na maioria, porque não podemos ignorar o caso particular da Guiné-Bissau, que declarou a independência unilateral antes da data libertadora protagonizada pelos militares de Abril, mais precisamente a 24 de Setembro de 1973.

Sita - A vida e o Tempo de Sita Valles
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Sita Valles nasceu em Luanda no ano de 1951. Estudou medicina. Foi militante do PCP (Partido Comunista Português) e participou nas actividades da UEC (União dos Estudantes Comunistas). Depois da Revolução Portuguesa e após uma cisão, dita maoísta, com o seu anterior partido, Sita regressou ao seu país natal para apoiar o MPLA, que na altura estava em assanhado confronto com outros dois movimentos de libertação, a UNITA e sobretudo a FNLA. Durante esse período, marcado pelas contradições nunca resolvidas entre os combatentes africanos mais dependentes do que gostavam ou julgavam estar dos jogos de poder geo-estratégico das duas grandes super-potências da altura, os Estados Unidos e a União Soviética, a militante audaz mas algo rebelde, que muito provavelmente gostava de pensar pela sua cabeça e descurava a segurança do aparelho clandestino, um espírito muito individualista como referem no documentário militantes mais ortodoxos que com ela viveram a clandestinidade, junta-se a um grupo de dissidentes, apelidado de fraccionista, que questionava a linha político-ideológica do MPLA. A figura mais destacada deste movimento era Nito Alves, mas não a única deste círculo de críticos do regime presidido por Agostinho Neto que, pouco a pouco, se instalava reforçando a sua posição e estatuto no meio de múltiplas lutas por resolver. Tudo acaba por se precipitar no chamado golpe de estado de 27 de Maio de 1977. Na sequência desta acção militar, Sita Valles foi acusada de ser um dos cabecilhas e mentores ideológicos do movimento e foi por isso, como muitos outros, perseguida e finalmente capturada, presa e, segundo a sinopse oficial do filme, fuzilada. Infelizmente, não se sabe ao certo o que se passou.

Sita - A vida e o Tempo de Sita Valles
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Dito isto, não se apresentava fácil o propósito de Margarida Cardoso quando escolheu salientar o nome de uma autêntica e destemida mulher de armas, uma personalidade maior do que a vida, cuja análise não podia nem devia ser dissociada dos que com ela partilharam numerosos dias de brasa. No final, a realizadora e o seu produtor, Pedro Borges da MIDAS FILMES, ficaram com um filme de 168 minutos, uma duração que neste caso não pesa no visionamento e não interfere na eficácia da montagem e na sistematização da proposta fílmica, porque realmente sentimos na estrutura desta obra a exposição das matérias coordenadas e conjugadas de um modo dialéctico que nos convoca quase sempre o olhar e a memória para outras matérias, que não estão lá e porventura deviam estar, mas que seguramente a cineasta ou outros poderão acrescentar em futuras abordagens, quem sabe, até radicalmente diferentes ou opostas da que se dá aqui a ver. Na verdade, mais uma vez foi a própria realizadora que afirmou, com grande realismo e coragem, não ser este o filme definitivo sobre Sita ou as pessoas suas companheiras no contexto do período visado. Há sempre espaço para mais. Que o digam aqueles que se debruçam sobre arquivos agora abertos, mesmo que a conta-gotas, e sobre imagens e sons mantidos na sombra que mereciam uma exposição mais rápida numa época em que a memória se perde a cada fake news publicada e nem sempre denunciada.

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Ponto fundamental na abordagem histórica, a multiplicidade de pontos de vista passa igualmente pelo discurso na primeira pessoa dos que participaram nos acontecimentos e, já agora, como neste caso, na frente de combate política e militar. Para muitos a reflexão sobre o passado devia ser feita com o distanciamento e a pacificação da alma que supostamente o passar dos anos permite. São escolas de pensamento que respeito e compreendo, mas não me parece ser o único modelo a adoptar quando o que está em causa são conflitos de grande impacto e complexidade que deixaram marcas e feridas por sarar na sociedade a que pertencemos. Sem querer puxar a brasa à minha sardinha, permitam dizer-vos que quando realizei e estruturei o material para o meu documentário intitulado ULTRAMAR, ANGOLA 1961-1963, produção de 1999, uma das primeiras preocupações foi recolher com carácter de urgência os depoimentos dos combatentes da primeira linha, os que viram a guerra de perto e em certas alturas enfrentaram olhos nos olhos os guerrilheiros africanos, assim como os que na frente política assumiram as suas responsabilidades. E quis fazê-lo antes que estes homens e mulheres, pela lei natural da vida, fossem desaparecendo ou, mesmo estando vivos, fossem perdendo a memória dos factos, o que resultaria no silenciamento das suas próprias vozes e de uma parte substancial dos seus sacrifícios e das suas vidas; no fundo, o silenciamento de uma parte da memória viva da nossa História colectiva. Diga-se, nenhum dos nomes que entrevistei escondeu o entusiasmo que sentiu ao gravar as suas palavras e as suas experiências pessoais para a posteridade. Para alguns foi mesmo o momento da libertação, do desabafo, de deitar cá para fora o que reprimiram ao longo de anos dentro de si. Por isso, muito satisfeito fico por ver agora neste SITA – A VIDA E O TEMPO DE SITA VALLES algo similar, ou seja, na ausência de palavras gravadas da própria, ouvimos uma actriz reproduzir a sua voz através da leitura de cartas que escrevia com o coração nas mãos. Mas não só. Na primeira pessoa, ouvimos o discurso directo de outros que com ela combateram, pelas mesmas causas ou próximas, e sentiram ser necessário revelar e registar a sua história pessoal. Estas últimas vozes vieram acompanhadas da lucidez que a distância em relação aos factos confere, mas revelam igualmente na actualidade o visceral desejo de quase gritar, para muitos surdos que por aí andam ouvirem, os episódios das suas causas e da causa da vida e morte de Sita. Para que não fiquem esquecidos. Episódios que acrescentam páginas novas ao que alguns já sabiam e outros ficaram a saber, assumindo os autores dos depoimentos as suas opiniões arrancadas da realidade nua e crua sob a forma de histórias mais amplas do que as do mero percurso individual, que até hoje vinham sendo divulgadas de forma dispersa e irregular, mas nem sempre de forma sistematizada.

Sita - A vida e o Tempo de Sita Valles
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Deixo aqui um excerto da nota de intenções da realizadora que me parece resumir muitíssimo bem o ponto de vista primordial que a motivou para o seu filme: “(…) Sita representa hoje, de forma exemplar, muitos dos sonhos, lutas, ilusões e desilusões de toda uma geração. Sita Valles é hoje uma espécie de “fantasma incómodo” de uma geração que passou por períodos de grandes mudanças, que se empenhou e lutou por ideais que foram de alguma forma traídos ou esquecidos.  O que pensar daquilo que “sonhámos”? O que resta dos nossos ideais no mundo que construímos? O que resta da Sita Valles em nós?”

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Escusado será dizer que a estreia deste filme constitui um grande momento para a distribuição e difusão do documentário como um género que nos pode fazer despertar para a realidade do que importa reter de um passado com reflexos no presente, salientando-se neste caso o valor da iniciativa que em diversas frentes do cinema e audiovisual vai permitir ao maior número de interessados a fruição simultânea das suas inegáveis qualidades.

SITA – A VIDA E O TEMPO DE SITA VALLES estreia no Cinema Ideal em Lisboa, mas não se fica pela sala, podendo ser adquirido em DVD e visionado na plataforma VoD FILMIN e nos videoclubes dos operadores NOS, Meo, Vodafone e Nowo.

Sita - A vida e o tempo de Sita Valles, em análise
Sita - A vida e o Tempo de Sita Valles

Movie title: Sita - A vida e o tempo de Sita Valles

Date published: 12 de May de 2022

Director(s): Margarida Cardoso

Actor(s): Beatriz Batarda

Genre: Documentário, 2022, 167 min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

Prós: Realização, produção e depoimentos de muitos que conheceram e militaram com Sita Valles, conjugados para nos dar a conhecer páginas arrancadas a uma memória conturbada do passado comum, sobretudo de Portugal e Angola, que não podem ser ignoradas ou esquecidas.

Contra: Nada. Seria lamentável, isso sim, que depois deste não fossem apoiados outros e ainda mais fortes exemplos de documentarismo sem papas na língua, e que não se vissem cineastas interessados em assumir um olhar que ultrapasse o horizonte do seu umbigo, avançando para bem mais longe na reflexão necessária e urgente da História pessoal e colectiva dos povos.

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