© Kate Kirkwood, via Alambique Filmes

Vaca, em análise

Da Alambique Filmes chega-nos “Vaca”, uma obra documental de Andrea Arnold que explora o dia a dia de uma vaca muito especial chamada Luma.

LUMA E O SEU DESTINO

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Era uma vez uma vaca chamada LUMA, o nome que a inglesa Andrea Arnold não deu ao seu filme e bem podia dar, já que concentra o seu olhar de cineasta e a correspondente vontade de caução artística, mais o olhar e esforço da equipa, o olhar e resistência do espectador e ainda um generoso investimento financeiro, no peculiar projecto de nos fazer acompanhar, digamos assim, o “percurso existencial” da dita personagem bovina. Não o fez e está no seu direito. Preferiu antes a mais abstracta e genérica designação COW (VACA), produção do Reino Unido de 2021. Muito bem. Não obstante, iremos assistir ao parto de Luna, ao crescimento de Luna, ao propósito laboral de Luna (produzir leite e reproduzir a espécie), aos arrufos amorosos de um macho procriador que não deixa escapar Luna porque no reino animal não há cá dores de cabeça. Iremos ver como ela e as outras vacas são levadas para espaços naturalmente limitados, mas não apertados, onde são ordenhadas mecanicamente, em pleno contraste com os grandes horizontes onde elas se movem em campo aberto, local de verdejantes pastagens, naquilo que os humanos podem classificar como um paraíso animal onde, por associação antropomórfica, vislumbram um ilusório comportamento feliz e sem stress por parte das vaquinhas. Só lhes falta rir como aquela do queijo. Há mesmo uma noite bucólica passada em manada e ao luar. Num certo momento mais intenso, vemos Luma no papel de mãe e assistimos ao parto do seu bezerro, a mais-valia com que ela contribui para a continuidade da indústria que a explora. Tudo certo em termos económicos e veterinários, até ao ponto em que, por muito que estivéssemos preparados ou fôssemos de uma insensibilidade patológica, seria difícil aceitar, ou seja, vermos sem um aperto de alma, o destino final daquela que ao longo dos 94 minutos acabou inevitavelmente por ser a nossa referência emocional. Uma sensação que, por mais que se resista, gera uma angústia e uma perplexidade que se prolonga para além do visionamento. Preciso de dizer mais alguma coisa? Não, mas sublinho apenas um aspecto que não posso ignorar, ou seja, o modo seco como o destino mais ou menos anunciado de Luna se concretiza, de rompante e quase sem aviso. Parafraseando uma célebre personagem, será que havia necessidade? Naturalmente, muitos de nós não somos hipócritas, sabemos que quando nos deliciamos com as carnes vermelhas num bem fornecido churrasco não fomos comprar os bifes, nem as costeletas, nem as salsichas, ao senhor jardineiro que cultiva flores. Não, os bifes não nascem nas árvores. E os peixes não nascem em filetes e sem espinhas e em alguns casos, quando não pedimos para o fazer, não é muito agradável retirar as vísceras e ficar com as mãos a cheirar a sangue coalhado. Nem sequer sou contra a festa brava, embora goste mais da sua componente estética do que da ideológica, ou pelo menos daquela a que a associam abusivamente a partir de contextos e filosofias marialvas. Nisso, sem qualquer falsa modéstia, estou acompanhado por muito boa gente, como Francisco Goya, Pablo Picasso, Júlio Pomar e Ernest Hemingway. Depois, desde os primórdios da História do Cinema, não são poucos os filmes com animaizinhos cujos argumentos nos fazem chorar baba e ranho. Há-os para os mais variados gostos e idades, e não admira que muitos ainda se recordem do gentil e lindíssimo filhote de veado no BAMBI (1942), obra-prima da animação produzida na fábrica de sonhos da e de Walt Disney, e não se disponham a rever o filme devido à memória atormentada da sorte da mãe do Bambi. De igual modo, no campo do cinema de autor, recordo por exemplo uma obra maior da curta-metragem realizada pelo grande cineasta francês Georges Franju, que filmou LE SANG DES BÊTES (1949) nos matadouros de Paris, onde cavalos, gado bovino e caprino são sacrificados para o nosso conforto alimentar, numa azáfama de homens que sabem o que fazem e porque o fazem. Filme produzido, realizado, fotografado e montado com um realismo igualmente perturbador. Mas, e isso faz a diferença, na origem desse filme existia um propósito cinematograficamente mais forte do que a mera exposição do sangue dos animais, que era o de estabelecer uma relação intrínseca entre a morte, a brutalidade inerente a práticas ancestrais no seio da indústria alimentar, o vigor de uma grande cidade e, numa mais forçada dialéctica, os sinais identificadores do refinamento civilizacional. Infelizmente, por muito bem realizado e montado que se nos apresente VACA, falta-lhe um propósito. Porque se for o de chocar, com base numa manipulação que reduz o impacto sobre os sentimentos na morte de uma só vaca, quando na verdade a maioria delas está ali para cumprir o mesmo destino, parabéns. Se era outro, perdeu-se pelo caminho na vaga construção cronológica de uma proto-narrativa que, plano a plano, se vai organizando e prolongando como um relativamente longo exercício fílmico sobre a vida de uma vaca entre vacas, onde nem sequer os humanos (na maior parte dos casos figurantes abafados pela volumetria zoológica das escalas dos planos e pelos sonoros muuus de Luma e suas companheiras) possuem uma voz própria ou simplesmente relevante.

Finalmente, este foi o filme escolhido para inaugurar um novo projecto de programação alternativa na cidade de Lisboa.

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Vaca
© Kate Kirkwood, via Alambique Filmes

A estreia exclusiva, que acontece a 12 de Maio, faz chegar ao Cinema Fernando Lopes – belíssima e confortável sala inserida no campus da Universidade Lusófona (Campo Grande)- não só este como um conjunto de filmes seleccionados pela Cinetoscópio (Risi Film, O Som e a Fúria, e Gambito, empresa participante da Alambique Filmes) em parceria com a Universidade Lusófona. No campo da distribuição, a Alambique vem demonstrando um bom gosto e bom senso assinaláveis que faz desta empresa uma das mais influentes e coerentes distribuidoras do circuito comercial português. Por seu lado, a produtora O SOM E A FÚRIA já não necessita de grandes apresentações e possui hoje um catálogo consistente na produção cinematográfica nacional e internacional. E a Risi Film apresenta-se há muito como gestora de uma alternativa sólida para públicos exigentes no streaming, a plataforma VoD FILMIN, sem esquecer o papel de divulgação do cinema italiano e luso, por cá, na Festa do Cinema Italiano e, por lá, na Luso! Mostra Itinerante de Cinema Português em Itália. Ingredientes que bastam para que as coisas avancem no bom sentido, mesmo que com muita pena minha me veja forçado, por agora e perante um filme como VACA, a reservar os elogios sobre as escolhas, precisamente, para um futuro próximo. Estarei atento e solidário, mas sem renunciar a uma opinião mais severa, como o fiz desde sempre. Porque nunca deixarei de falar sobre projectos que, sem qualquer dúvida, merecem a nossa melhor atenção.

Vaca, em análise
COW VACA

Movie title: Cow

Date published: 12 de May de 2022

Director(s): Andrea Arnold

Actor(s): Lin Gallagher

Genre: Documentário, 2021, 94 min

  • João Garção Borges - 40
40

Conclusão:

Prós: Fotografia e Montagem. Referências musicais na banda sonora que se ouve ao fundo, por entre muuus e os muitos “Linda, vamos”. Em inglês ainda fica mais divertido quando se ouve “Girlies…come on!”.

Contra: Quando não se tem mais do que uma ideia, o resultado só pode gerar perplexidade. Garanto-vos que, quando entrei na sala para o visionamento, queria ficar com a sensação contrária, mas não dá. Já estou a ver os fundamentalistas que culpam os intestinos das pobres vacas pelo aquecimento global a darem cinco estrelas ao filme, não por gostarem da frieza da sequência final, mas por este fazer com que, nas próximas semanas, qualquer um evite comer um único bife, daqueles como eu gosto, com dois dedos de altura, sal, umas ervas, grelha q.b., e o interior bem rosadinho.

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