20º Queer Lisboa | Where Horses Go To Die, em análise

Em Where Horses Go To Die, um pintor envelhecido procura inspiração para o seu trabalho nas passerelles noturnas das ruas de Paris e seus peculiares habitantes.

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Retratar o processo criativo de um artista plástico é sempre um enorme desafio para qualquer cineasta. Fazê-lo e ao mesmo tempo tentar capturar num filme a inefável magnificência da inspiração artística é algo ainda mais difícil, mas esses riscos não impediram o cineasta sul-africano sediado em França, Antony Hickling, de o tentar fazer na sua nova proposta de cinema avant-garde Where Horses Go To Die. Tal como outros filmes que misturam níveis de realidade fictícia e documental, propostas estéticas mais radicais e o envolvimento de outros campos da pesquisa artística, neste caso a pintura, esta obra integra a Competição Queer Art nesta 20ª edição do Queer Lisboa.

Como já mencionámos acima, a pintura, cujo dinamismo cinematográfico é quase nulo, tem um papel fulcral em Where Horses Go To Die, sendo que, de um modo muito sumário e redutor, este é um filme sobre um pintor que vive em Paris e, durante uma crise criativa, encontra várias figuras que o inspiram a trabalhar e desenvolver novas obras. Mesmo antes da segunda metade do filme nos mergulhar nos devaneios estilísticos de Hickling e da imaginação do protagonista, é seguro que estamos num registo situado algures entre a realidade e o sonho, dentro da psique de um artista que olha o mundo através de um prisma diferente do “normal” cinematográfico. Como tal, a noção do que é real e irreal não é apenas fluida, mas também inconsequente, sendo que, aqui, o que realmente interessa é a experiência sensorial e mental que partilhamos com os dois artistas por detrás e em frente à câmara.

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Inicialmente, o filme mostra-nos a vida aborrecida de Daniel, um pintor gay envelhecido e sedento de novas ideias ou motivações para pintar. Um dia, já perto do fim da tarde, ele aventura-se pelas margens do Sena, onde encontra uma coleção de variadas prostitutas e seus clientes. Daniel está longe de ser uma personagem assexual ou puritana, mas aqui a sua presença é a de um mero observador, até que, quando uma mulher é atirada à água do rio, ele tem de intervir. Ao contrário de qualquer fórmula classicista, Candice não mostra qualquer gratidão aos seus salvadores e simplesmente se afasta do grupo, encharcada, com a maquilhagem a escorrer-lhe da cara e com uma série de obscenidades nos lábios, enquanto, no céu, se pinta uma abóbada de laranjas e rosas que dão a toda a cena um certo lirismo que logo nos indica que há mais que se lhe diga a este cenário que um mero desejo por realismo social.

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Na verdade, a intensidade cromática do teto celestial, as roupas negras das mulheres que se vendem e a geral mise-en-scène onde se enfatiza a bizarria da situação remetem o espetador para um mundo de estetização romântica, onde o artifício é rei. É fácil imaginar momentos e imagens semelhantes num filme de Fellini, onde, possivelmente, o gosto amargo da exploração do sofrimento e luta dos marginais por um homem como forma de se inspirar a si mesmo. No entanto, não há muito tempo para tais considerações silenciosas, pois Daniel é convidado por uma das colegas de Candice a tomar um café. Ela é Divine, uma bela mulher transsexual afro-americana que agora vive em Paris e vende o seu corpo para sobreviver e está perfeitamente pronta a despedaçar quaisquer insinuações de piedade benevolente ou vácua empatia no discurso e pensamento de Daniel.

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Apesar disso, ela convida o pintor a segui-la até ao clube noturno onde se passa grande parte do filme e onde Daniel se encontra com mais algumas figuras que o vão inspirar. Eles são outra mulher transsexual, Manuela, que trabalha como barmaid do estabelecimento noturno e esconde um passado traumático, e Mohammed, um proxeneta que também se prostitui e chega mesmo a propor uma transação monetária pelos seus serviços ao pintor. Também existe outra figura neste ambiente inebriado de hedonismo e possibilidades transgressivas. Falamos de um homem que dança, vestido em espampanantes roupas orientais, e cujos movimentos transportam todo o filme para outro patamar de existência, dentro da mente do artista extasiado.

A noite cai, o pintor desce aos subterrâneos da vida noturna e o filme despe-se de qualquer noção de realismo, pudor ou melancolia subtil. De facto, Where Horses Go to Die quase que se torna numa homenagem ao tipo de cinema queer que, nos anos 60 e 70, chegou ao circuito art house pela mão de cineastas como Kenneth Anger ou James Bidgood, sendo que Pink Narcissus parece ser uma referência particularmente marcante. Uma grande diferença que, contudo, marca a distância entre essas experimentações e este título é a polidez que Where Horses Go To Die demonstra, bem removida da qualidade grosseira e improvisada da obra-prima de desejos eróticos do filme de Bidgood.

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Tal como muitos outros aspetos do filme, apesar de apresentar uma certa quantidade de riscos, esta polidez não é necessariamente negativa, sendo que demonstra uma agradável evolução estética na filmografia de Antony Hickling. E, há que se dizer, é difícil não olhar para as musas de Daniel e não as querer ver filmadas com o máximo de brio possível, algo que o filme nem sempre faz de forma coerente e constante. Dessas musas, Divine é a mais impactante e memorável, em grande parte pela presença magnética de Walter Dickerson que traz ao papel uma insolência de diva que atenua e modula as suas facetas mais trágicas e a torna numa figura de escultural feminilidade revoltosa. Em suma, quando olhamos para Divine e o modo como Hickling a filmou, é fácil ver como Daniel teria ficado inspirado pelo seu encontro com ela.

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No final, depois de um passeio pela mente do pintor, o filme regressa a uma noção mais ou menos concreta da realidade e encerra-se no seu estúdio, na maternidade de novas pinturas inspiradas pelos seus encontros da noite no centro de toda esta proposta. Antes de concluirmos temos de mencionar como Where Horses Go To Die não é, apesar da sua superfície ensandecida, um projeto particularmente inovador. Como já foi referido, há muitas parecenças entre o filme e outras experiências feitas há já meio século e é certo que muitas das suas imagens parecem mais reacionários que verdadeiramente inspiradas. Com tudo isso em consideração, é estranho como esta é uma obra com um considerável valor de divertimento e entretenimento, sendo que, graças a uma curta duração e polidez estética, este filme é acessível de um modo que a sua apresentação inicial nunca sugeriria. Pode não ser muito complexo, mas tem grandes prazeres cinemáticos para oferecer a quem estiver disposto a encontra-los por entre as suas imagens oníricas, sonoplastia louca e montagem fraturada.

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O MELHOR: A presença eletrizante de Walter Dickerson.

O PIOR: A estrutura bastante delineada e concreta da segunda metade do filme, que, de certo modo, parece contrariar e trair os impulsos mais esteticamente exuberantes de Where Horses Go To Die.


 

Título Original: Where Horses Go To Die
Realizador:  Antony Hickling
Elenco:
Jean-Christophe Bouvet,  Walter Dickerson, Manuel Blanc, Amanda Dawson,  Luc Bruyere
Queer Lisboa | Drama | 2016 | 67 min

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