MOTELx ’16 | Shelley, em análise

Em Shelley, uma gravidez torna-se num pesadelo demoníaco quando uma série de estranhos fenómenos começam a afetar Elena, uma barriga de aluguer para um casal abastado.

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Desde que Rosemary’s Baby se mostrou ao mundo em todo o seu horripilante esplendor que o cinema de terror tem sido incubadora de uma série de outras propostas onde o corpo da mulher grávida é o foco do horror, ou, em casos especiais, a corrupção das leis naturais é levada a outros extremos e temos o corpo masculino a servir de hóspede a parasitas como em Alien. É fácil de entender de onde vem este fascínio, afinal, grande parte deste género cinematográfico baseia-se na corrupção e subversão da normalidade e do que é sacrossanto.

Para além disso, a gravidez em si, com todas as suas mudanças radicais ao corpo humano, já constitui uma base sólida sobre a qual construir um filme na tradição body horror, cuja ideia central é sempre essa da corrupção do normal, do que todos nós conhecemos e sentimos intrínseco à nossa existência. Shelley, o novo filme do iraniano Ali Abbasi, não é uma obra de body horror mas capitaliza bastante nas alterações biológicas sofridas pelo corpo da mulher durante este fenómeno.

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Shelley é, na verdade, um exemplo estranhamente elegante, minimalista e sóbrio desta moda de terror da gravidez, fugindo aos epítetos sensacionalistas que afetam tantos outros projetos nesta linha assim como mantendo uma boa distância de quaisquer desnecessárias explosões de mau gosto. O filme conta a história de Elena, uma mulher romena, que vai trabalhar para a Dinamarca, aos serviços de um casal que vive isolado do mundo e do que, para elas, são as mágoas da vida moderna. Ela encontra-se então a viver numa casa sem eletricidade e distante da civilização, apenas com Kasper e Louise como companhia. Elena, que está a tentar arranjar dinheiro para sustentar o filho e comprar um apartamento, acaba por fazer um acordo com Louise, que já tentou várias vezes dar à luz sem sucesso. Por consequência, a jovem romena torna-se barriga de aluguer para o casal mas, estando nós na presença de um filme de terror, a gravidez depressa se revela como algo problemático e marcado por misteriosas forças malignas.

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Em mãos menos seguras ou mais dadas ao excesso, esta narrativa poderia ter facilmente resultado num grito de histeria moralista contra a fertilização artificial e as barrigas de aluguer. Afinal, até um certo ponto parece quase que este terceto isolado no meio da natureza ominosa está a ser castigado por tentar criar uma criança que forças maiores já tinham declarado ser uma impossibilidade para Louise. No entanto, o argumento e a execução de Shelley são mais complexos que isso, oferecendo necessárias nuances à situação do feto demoníaco.

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Por exemplo, é impossível ignorar as diferenças sociais entre as duas mulheres no centro da narrativa e o modo como o privilégio de Louise é claramente manifesto na manipulação de Elena. Quando a gravidez se começa a revelar cada vez mais problemática, vemos bem como Louise reduziu Elena a um simples objeto, a uma incubadora viva sem valor como ser humano, os ricos a usarem os pobres como uma comodidade sacrificável.

Para esse conflito social e humano se registar, muito depende do trabalho das duas atrizes principais e, felizmente, as protagonistas de Shelley estão bem preparadas para o desafio. Como Elena, Cosmina Stratan é uma presença terrena e casual em direto contraste com a etérea Louise. Sem serem necessários muitos diálogos temos logo uma forte ligação para com a jovem romena e quase que sentimos conhece-la intimamente, servindo-nos ela quase como uma guia para a audiência acompanhar nesta travessia pelas águias desconhecidas do terror. Mas a perspetiva do filme inverte-se quando Cosima fica grávida e é maioritariamente Louise que passamos a seguir. Assim, à medida que Stratan se vai tornando cada vez mais numa desfragmentada abstração humana, a Louise de Ellen Dorrit Petersen vai ficando mais concreta e o seu desespero maternal mais palpável. O filme até muda de diretores de fotografia para sublinhar esta inversão, mostrando como Elena é lentamente reduzida a um corpo vitimado e fecundo com o horror que dá ao filme a sua posição em festivais como o MOTELx.

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Talvez ainda mais preciso e precioso que o contributo das atrizes é o cenário em que esta trama sobrenatural decorre. Colocar a natureza e sua cruel majestade como motivo central na vida das personagens é um óbvio mecanismo para o terror, já desde os tempos em que os irmãos Grimm registavam as suas histórias de raparigas inocentes perdidas na escuridão de florestas. No entanto, aqui o mundo natural serve também como um indicador de privilégio, demarcando a distância entre Louise e Kasper do resto do mundo. Afinal, apenas os mais privilegiados poderiam ter o tipo de vida deste casal, numa casa espaçosa, isolada, e preparada com as amenidades necessárias para se viver uma existência holística e sem eletricidade sequer. Que Louise e Kasper nunca parecem entender a dimensão do seu privilégio, como numa desconfortável refeição com Elena, é apenas mais um indicador da discrepância de poder e moralidade entre as personagens.

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Em conclusão, Shelley é uma proposta de terror solene e sem as usuais histerias, sangue e vísceras que acompanham os mais explícitos e ilustrativos exemplos do género. Para muitas audiências, a sua opacidade e letargia rítmica poderão constituir uma barreira alienante, mas, para cinéfilos dedicados, há muito para apreciar para além de uma bem-construída narrativa de terror. Note-se, por exemplo, como o som trabalha em consonância com a fotografia, para afogar as personagens num ambiente denso e misterioso ou como o argumento está elegantemente construído em volta de uma estrutura clássica de três atos. Não é o mais original filme em exibição neste MOTELx, mas é, mesmo assim, uma admirável abordagem de um tema normalmente abordado com muito menos primor estético ou virtuosismo cinematográfico.

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O MELHOR: O final que quase não parece um final, remetendo para um pesadelo contínuo que se vai prolongar para além do nosso visionamento.

O PIOR: Kasper é uma presença muito subdesenvolvida, especialmente no que diz respeito à sua relação com Elena e sua gravidez. Isto torna-se problemático no terceiro ato, quando uma maior perceção do estado psicológico do novo pai daria muito mais impacto às reviravoltas demoníacas de Shelley.


 

Título Original: Shelley
Realizador:  Ali Abbasi
Elenco: Ellen Dorrit Petersen, Cosmina Stratan, Björn Andrésen, Peter Christoffersen
MOTELx | Terror, Drama | 2016 | 92 min

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