A Tribo, em análise

Com todo o seu diálogo expresso a partir de linguagem gestual ucraniana sem legendas, A Tribo é uma obstinada experiência cinematográfica, merecedora do áureo estatuto de obra-prima.

a tribo

Para muitos historiadores de cinema, a atriz Florence Lawrence foi a primeira estrela de cinema. Esse estatuto deve-se em grande parte ao modo como Carl Laemmle, o fundador da Independent Moving Pictures Company, usou a sua figura pública para criar um esquema publicitário nunca antes visto. Em 1909, os atores raramente eram reconhecidos com o seu nome, ora nos créditos ora na publicidade dos filmes, sendo figuras quase anónimas. Isso não impediu que o público começasse a reconhecer certas figuras repetidas nas produções de cada estúdio, como Lawrence, então conhecida como IMP girl. Nesse ano, Laemmle veio dizer que essa rapariga tinha morrido causando furor generalizado e, mais tarde, veio anunciar que isso era mentira, apresentando, pela primeira vez, uma atriz de cinema identificada pelo seu nome. A partir daí, as audiências passaram a ir ver os filmes de Florence Lawrence com o intuito de ver um filme com uma determinada atriz, algo que veio a revolucionar não só o marketing de cinema mas também o modo como se faziam filmes e como as audiências os consumiam. Nas palavras do historiador e académico Mark Cousins, o cinema passou a ser um cinema de personagens, um cinema psicológico.

Mais de um século depois, tal realidade mantém-se inalterada. No que diz respeito ao mainstream, é praticamente impossível encontrarmos uma produção sem uma narrativa propulsionada por personagens se bem que, com o tempo e o aparecimento de outras convenções cinematográficas. A definição e o desenvolvimento de personagens em cinema, por exemplo, foram sendo progressivamente desassociados da observação de expressões corporais, movimentos, posturas e ações, dando lugar de primazia ao texto e ao diálogo. No entanto, pensar que o diálogo, a definição de personagens através de dados textuais e a própria vocalização são imprescindíveis para a representação de histórias humanas e arcos psicológicos no cinema é uma noção, no mínimo, ingénua. Para nos provar isso mesmo, temos um dos mais originais e ousados projetos a chegar recentemente a salas portuguesas: A Tribo de Myroslav Slaboshpytskyi.

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Este é um filme em que a interação das várias figuras humanas nunca toma a forma de diálogo vocalizado, mas sim de conversas em língua gestual ucraniana que nunca é traduzida com recurso a legendas. Para a maioria do mundo, essas interações são indecifráveis a um nível verbal, tornando A Tribo não num filme mudo, mas sim num obstinado exemplo de cinema não-verbal. Indo ainda mais longe na sua subversão de ancestrais gramáticas cinematográficas consideradas convencionais, o realizador construiu o seu filme numa série de longos planos sequência afastados dos atores. Por outras palavras, A Tribo é um filme sem grandes planos e onde cada ação individual é apresentada sem cortes ou concessões a uma ideia de temporalidade dramática. Aqui, a audiência não é somente convidada a prestar atenção ao modo como as cenas são filmadas, aos gestos e posturas dos humanos ou à sonoridade envolvente – é ativamente obrigada pelos cineastas.

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O público tem a tendência a reduzir-se à passividade quando está perante uma obra cinematográfica mas, em A Tribo, estabelece-se um diálogo formidável entre espetador e objeto artístico. Cabe a cada indivíduo encarar e avaliar os indícios de significado patentes na gestualidade e na apresentação formalista do filme. Indo ainda mais longe, cabe a cada indivíduo adaptar os seus conhecimentos e ideias pré-concebidas de como encarar e descodificar o idioma do cinema. Sem a voz humana dentro de um filme com uma sonoridade naturalista, o cérebro do espectador tende a conjurar impressões sonoras que compensam a falta de estímulo. Por exemplo, quando existe uma luta entre rapazes rodeados por uma audiência, é da mente do espetador que surgem os gritos e apupos que nunca são efetivamente ouvidos.

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Da alienação nasce a proximidade entre espetador e filme, de um modo extremamente raro na conjetura contemporânea. A Tribo é por isso um milagre cinematográfico do mais alto gabarito, que consegue cristalizar em si algo brutal, feroz e primordialmente humano. Mesmo o ritmo dos planos transmite essa ideia. Veja-se o modo como, por exemplo, o trabalho do diretor de fotografia e responsável pela montagem, Valentin Vasyanovych, molda um momento de improvisada intervenção médica e o torna numa sufocante instância de imersão da audiência na situação expressa no ecrã. O tempo da ação é real e a câmara é fria e clínica na sua observação, convidando o espetador a definir o ritmo e o movimento do seu olhar sobre a informação que a composição geral lhe confere. O espetador é transformado num participante paralisado e mudo dos horrores que testemunha.

Pela sua parte, Slaboshpytskyi mostra o tipo de rigor formalista que se esperaria de um mestre envelhecido da sétima arte e não de um jovem realizador a fazer a sua primeira longa-metragem. É especialmente graças ao seu trabalho, que se torna fácil entender a narrativa geral do filme. De forma resumida, A Tribo conta a história de Sergei, um rapaz surdo ucraniano que, no início da narrativa, chega a uma escola para surdos onde passa a viver. Aí, depara-.se com uma comunidade fortemente estratificada em que um gangue, que inclui alunos e, pelo menos, um professor, domina tudo. Apesar de um breve período de ostracização, Sergei rapidamente se envolve no gangue, tornando-se uma espécie de soldado nos seus esquemas de assaltos e prostituição.

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Eventualmente, ele inicia uma relação amorosa com uma das suas colegas prostitutas e, como seria de esperar num drama miserabilista da Europa de Leste, este envolvimento tem resultados catastróficos para ambos os participantes. Sem querer cair em revelações demasiado marcadas, basta dizer que o filme tem o seu clímax numa sequência de brutalidades violentíssimas capazes de chocar a mais estoica das audiências. Nesses momentos, todos os elementos de A Tribo entram numa diabólica conflagração simbiótica que culmina com uma agressão perpetrada nas sombras, cujo som ficará gravado a ferro e fogo na mente de muitos espetadores.

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A nível alegórico esta assombrosa experiência ilustra o desamparo e a amoralidade violenta que se abateu sobre o Leste do continente europeu após a queda do regime soviético. Com a sua miséria, A Tribo está longe de ser um filme que demonstre uma visão particularmente agradável do realizador para com o seu próprio país, mas há algo de poderoso na sua mostra de uma comunidade quase tribal, onde a força bruta se tornou no principal elemento estrutural de uma sociedade desamparada, órfã e perdida no caos de uma nova e inesperada era. Em reflexo disso mesmo, o filme desampara a audiência e a narrativa faz o mesmo ao seu protagonista que, estando na fase de vida em que um jovem se torna adulto, tem ainda mais razões para se sentir no advento de uma violenta transformação completamente fora do seu controlo.

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O MELHOR: A aterradora sonoplastia que, não saindo do registo naturalista que rege toda a estética e construção formal de A Tribo, oferece momentos de puro terror sónico

O PIOR: O modo como haverá certamente muitas pessoas que vão rejeitar este filme por o considerarem algo demasiado intelectual quando, na verdade, esta é uma experiência de extrema visceralidade, mesmo que não seja um filme particularmente agradável de ver.


a Tribo

Título Original: Plemya
Realizador:
Myroslav Slaboshpytskyi
Elenco:
 Hryhoriy Fesenko, Yana Novikova, Rosa Babiy, Oleksandr Dsiadevych
Legendmain | Drama, Crime | 2014 | 126 min


CA

 

 

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