68ª Berlinale | Dias 4 e 5 Em Trânsito

A literatura é o pano de fundo dos dois filmes “Dovlatov”, do russo Alexey German Jr. e “Transit”, do alemão Christian Petzold. A família e religião sintetizam as temáticas dos outros três filmes da competição: “La Prière”, do francês Cedric Khan, “Figlia Mia”, da italiana Laura Bispuri e por último “The Real Estate”, da jovem dupla sueca Axel Petersén e Måns Månsson.

“Dovlatov”, do russo Alexey German Jr faz uso dos grandes planos e de movimentos de câmera lentos e prolongados, sempre ao som de jazz, para retratar um pouco à maneira da nouvelle vague francesa, o mundo e um pequeno período da vida do escritor russo (de origem judaica) Sergei Dovlatov (1941-1990), cujas as obras brilhantemente irónicas foram proibidos de serem publicadas na URSS, no tempo de Brejnev. Só realmente conhecidas do grande público e publicadas, quando o escritor emigrou para os EUA.

VÊ TRAILER DE “DOVLATOV”

O filme passa-se em Leningrado (actual São Petersburgo), durante o mês de novembro de 1971, numa cidade entre o cinzento das roupas e a neve espalhada nas ruas e na paisagem. E apesar de se ter celebrado com a habitual pompa, mais um aniversário da Revolução Russa, o país não progredia nem politicamente, nem em termos económicos ou culturais. Sergei (Milan Maric) começa a trabalhar como jornalista. Mas os seus artigos e reportagens são quase sempre rejeitados pelos meios de comunicação oficiais. A sua visão sobre a sociedade e o quotidiano das pessoas é incómoda para o regime. Outros jovens enfrentam igualmente os mesmos problemas, como o seu amigo Joseph Brodsky, a quem as forças policiais do estado acabam por exilar; e outros acabam por ser assassinados pela polícia política, simulando um acidente. No entanto, Sergei, está determinado a resistir e a permanecer na cidade procurando levar uma vida o mais normal possível com a sua mulher Lena e a filha Katya. Por isso, vai continuando a escrever sobre a realidade com que é confrontado diariamente: sobre as questões dos trabalhadores do estaleiro naval, sobre a construção do metro de Leninegrado, onde nas escavações, foram descobertos os corpos de trinta crianças mortas, durante a II Guerra Mundial. Tirando um certo discurso tragicómico sobre a rebelião, medo, desconfiança, dor e cansaço, em relação à falta de perspectivas de futuro, “Dovlatov” resulta num excelente retrato sobre uma era de estagnação do regime comunista na antiga URSS, que teve efeitos destrutivos sobre as pessoas em geral, mas sobretudo sobre os criadores e a liberdade de expressão.

VÊ TRAILER DE “TRANSIT”

O realizador de cinema alemão Christian Petzold (“Yella” e “Barbara) partilha conosco alguns dos seus fantasmas e inspirações, nesta sua nova longa-metragem, intitulada “Transit”, que está igualmente a concurso. Tomando como base um romance, com o mesmo título do filme, da escritora alemã de origem judaica Anna Seghers.  Curiosamente Petzold começou a desenvolver um argumento para o filme, a partir do livro, juntamente com o seu amigo, o cineasta alemão de origem indiana Harun Farocki, falecido em 2014: “Transit” foi nosso livro favorito, por isso lia-mos pelo menos uma vez por ano, confessava Petzold.

As tropas alemãs estão a chegar a Paris. Georg interpretado por Franz Rogowski — o actor-revelação da Alemanha, (é o Shooting Star aqui) que é curiosamente muito parecido com Joaquin Phoenix — escapa para Marselha no último momento antes da invasão. Na sua bagagem segue o legado de um escritor chamado Weidel, que se suicida com medo da perseguição nazi. Este legado é o manuscrito de um romance e algumas cartas, que são igualmente uma garantia da Embaixada do México, para um visto de fuga para o escritor. No entanto, só aqueles que podem provar que vão mesmo partir lhes é permitido ficar temporariamente na cidade portuária. O que significa que é necessária uma autorização de entrada num potencial país anfitrião. Assumindo a identidade de Weidel, Georg tenta obter uma das poucas passagens num navio. Entre a ansiedade, medo e tragédia visível por vezes, ouvem-se conversas entre refugiados, nos corredores do seu pequeno hotel, nas salas de espera dos consulados e nos cafés e bares do porto de Marselha. Entretanto Georg faz amizade com o pequeno Driss, filho do seu antigo camarada Heinz, que morreu enquanto tentava a fuga. No entanto, quando Georg conhece a misteriosa Marie (Paula Beer), seus planos mudam e começa a complicar-se a sua fuga para a liberdade. “Transito” é efectivamente baseado num romance de Anna Seghers, que ela escreveu no exílio em 1944. No entanto, o filme está ambientado na Marselha contemporânea, onde esses personagens do passado se deslocam como se fosse no tempo da II Guerra Mundial. É assim, que simbolicamente os refugiados de outrora, parecem encontrar-se com os refugiados de hoje na cidade de Marselha — onde aliás chegam aos magotes vindos do Norte de África —, a história do passado, encontra o presente e todas as histórias vão-se combinando para criar um lugar onde as pessoas parecem estar sempre em trânsito.

VÊ TRAILER DE “FIGLIA MIA”

Tal como na sua estreia como realizadora no filme “Vergine Giurata”, a italiana Laura Bispuri, mais uma vez, em “Figlia Mia”, segue vertiginosamente com a sua câmera a jovem protagonista, neste caso Vittoria (Sara Casu). Em “Figlia Mia”, uma pequena heroína chamada Vittoria, vai silenciosamente escutando e questionando o amor e os modelos de mulher e mãe, descobrindo aos poucos quem é, de onde vem e qual é o seu lugar na vida de duas mulheres. A deliciosa ‘ruivinha’ Vittoria, de dez anos de idade, cresce numa pequena vila da piscatória da ilha da Sardenha, ainda imune ao turismo de massas. Um dia num rodeio de cavalos, encontra a impetuosa Angélica (Alba Rohrwacher), que é completamente diferente de Tina (Valeria Golina), a sua mãe. No início, Vittoria não suspeita que as duas mulheres estão ligadas por um segredo de anos. De facto Tina conheceu Angélica há muito tempo na sua quinta degradada, onde esta vive  numa completa desordem com cavalos velhos e um cão. A  insegura e infeliz — inclusive no seu casamento — Tina parece centra-se demasiado na sua filha e não fica muito contente com este relacionamento entre Angelica e Vittoria. Carregada de dívidas e com uma vida completamente descontrolada pela bebida e por relacionamentos esporádicos, Angelica parece de inicio ter intenção de mudar-se para o continente. Aliviada, Tina até lhe oferece apoio financeiro, mas não consegue evitar novos encontros entre as outras duas. Cativada por essa mulher destemida e independente, Vittoria começa a redescobrir a sua ilha e a descobrir-se a si própria. A luz quente de um verão na Sardenha acompanha Vittoria nesta sua turbulenta jornada de auto-conhecimento, num filme que nos contagia sobretudo pelas poderosas e viscrais interpretações das três actrizes, sobretudo da jovem Sara Casu, ali no meio de duas grandes estrelas do cinema europeu.

VÊ TRAILER DE “LA PRIÈRE”

No seu filme, “La Prière”, o realizador francês Cédric Kahn (“A Economia do Amor”, 2016) acompanha um breve, mas muito importante momento da vida de um jovem um tanto desorientado, que encontra o seu caminho de volta a um quotidiano normal, através da fé e amizade. Thomas (Anthony Bajon) de vinte e dois anos, anda envolvido com as drogas e a violência. A sua última chance é ingressar numa comunidade de jovens de diferentes países e origens sociais,  — do tipo da Associação Le Patriarche — que como ele querem superar os seus vícios, vivendo juntos numa casa e numa quinta isolada, nas montanhas francesas. Supervisionados por um sacerdote católico, os seus dias giram em torno da oração, solidariedade e trabalho duro nos campos. Aliás um modelo bem conhecido de tratamento da toxicodependência. Mas nem todos conseguem aguentar a esta vida monástica e luta interior. Para Thomas todos os dias são uma batalha interior, mas ajudado pelo bom senso, sem reservas, e assente na segurança, unidade e amizade que aquele lugar oferece vai superar as suas dificuldades. No entanto, conhece uma rapariga que vive nas proximidades e aos poucos Thomas começa a perceber que este pode ser um caminho para a sua vida; ou é um incidente depois de uma caminhada e uma noitada na montanha que fazê-lo seguir outra caminho baseado na fé e sacrificio. Em “La Prière” as montanhas e o isolamento tornam-se lugares de reflexão e escolha do rapaz,  num filme simples que não toma posição sobre os processos de reeducação deste jovem baseados na fé católica. Pelo contrário é um filme em que observamos e até somos desafiados a repensar nossa posição e a redescobrir a religião, e sobretudo a oração — como um momento de alívio — mesmo que não sejamos crentes. “La Prière” é um filme pequeno mas com uma grande dimensão humana.

VÊ TRAILER DE “THE REAL ESTATE”

Por último, “The Real Estate”, o filme sueco da dupla de realizadores Axel Petersén (“Avalon”) e Måns Månsson, é uma notável comédia negra, que conta a louca história de uma mulher idosa que ainda ‘está aí para as curvas’. Ela viveu uma boa vida do passado e simplesmente não quer que a festa termine agora. Depois de uma vida de luxo financiada por seu pai, a ‘enxuta’ Nojet — interpretada brilhantemente por Léonore Ekstrand, tia de entrou em “Avalon” e também tia de Månsson —, de 68 anos, vai herdar um prédio de apartamentos, no centro da cidade de Estocolmo. Esta ‘dondoca’, que começa a viver num hotel, por que não tem casa, regressou do ensolarado sul de Espanha, para sua fria terra natal. Em vez de encontrar as coisas organizadas como pensava, está tudo num caos. O seu meio-irmão e o sobrinho, bastante dados à bebida e a outros excessos, negligenciaram seriamente seu papel de zeladores do prédio. O edifício está num estado miserável e ocupado por inquilinos que não têm seque contrato de arredamento. Nojet procura então o conselho de seu amigo Lex, um velho e decadente produtor musical e familiar de advogados e de um grupo de produtores, que tentam organizar uma gala para pessoas sem-abrigo da cidade. Nojet propõe a venda do prédio a um agente imobiliário. Este manifesta interesse no inicio, mas depois recusa o negócio. A suposta herança de Nojet começa a tornar-se uma maldição e um pesadelo surreal, num ambiente frio que faz lembrar os filmes da trilogia Milennium, de Stieg Larson. “The Real Estate”, é um filme muito curioso, porque não só levanta muitas questões sobre a especulação imobiliária, que está generalizada por tudo o mundo e principalmente nas capitais, como Lisboa ou Estocolmo, por exemplo. Conta igualmente uma alucinada história de uma femme fatale  senior — a actriz Léonore Ekstrand  é efectivamente a chave de um filme escrito à sua medida —  que acaba por se tornar numa guerreira que defende a sua causa.

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