©Cosmopol Film

70º Festival de Berlim: Ó Urso de Ouro Vai Para o Diabo!

O filme iraniano ‘There is no Evil’, de Mohammad Rasoulouf, mesmo o último a ser apresentado na Competição da Berlinale 70, acabou por ganhar o Urso de Ouro 2020, mais certamente num momento de emoção política do júri, do que extrema qualidade. No entanto havia como sempre mais e melhores filmes a concurso.

A longa-metragem iraniana ‘There is no Evil’, de Mohammad Rasoulouf foi um surpreendentemente vencedor do Urso de Ouro 2020. São quatro histórias aparentemente cruzadas filmadas na clandestinidade, em torno dos temas da fuga, da questão de consciência dos agentes da repressão, da própria repressão política associada à pena de morte de muitos dissidentes e críticos do regime islâmico do Irão.

TRAILER ‘THERE IS NO EVIL’

Curiosamente foi último filme apresentado na Competição Oficial e o realizador não esteve presente em Berlim, porque está impedido de sair do seu país, desde que ganhou com o magnífico Um Homem Íntegro, o Prémio de Melhor Filme na secção Un Certain Regard, do Festival de Cannes 2017. Rasoulof, não pode receber o seu Urso de Ouro em Berlim porque aguarda a execução da sentença que o condena a um ano de prisão ‘por difundir propaganda contra a república islâmica’ e há sequências que até ‘filmou’ à distância, que no fundo foram dirigidas pelos seus assistentes, devido às suas limitações de liberdade de circulação no seu país. E novamente o júri oficial constituído por Jeremy Irons (Presidente), Bérénice Bejo, Bettina Brokemper, Annemarie Jacir, Kenneth Lonergan, Luca Marinelli, Kleber Mendonça Filho, valorizou mais a componente política em detrimento dos aspectos artísticos. O que já é um hábito da Berlinale.

TRAILER DE ‘NEVER RARELY SOMETIMES ALWAYS’

A vitória de ‘There Is No Evil’ e Urso de Ouro 2020, não merece contestação, mas havia na Competição desta Berlinale 70, filmes muito melhores, que combinavam também a arte e a política, que até tiveram prémios, mas não chegaram ao Urso de Ouro: ‘Never Rarely Sometimes Always’ de Eliza Hittman (‘Beach Rats’, 2017) premiado no Festival de Sundance, há mais ou menos um mês com o Grande Prémio do Júri, voltou a ganhar o mesmo prémio na Berlinale 70. O que não deixa de ser interessante para a terceira longa-metragem de Eliza Hittman, uma verdadeira cineasta-independente e pertencente a essa ‘pequeno-grande’ grupo de mulheres atrás da câmaras. ‘Never Rarely Sometimes Always’, é fabuloso e um tocante retrato das dificuldades e da dor de uma adolescente de uma pequena cidade do interior dos EUA, que viaja com a sua prima para Nova Iorque para poder fazer um aborto. Sem rodeios, de uma forma directa e com a câmara sempre em cima do rosto das duas raparigas — as jovens actrizes estreantes Sidney Flanigan e Talia Ryder, têm uma interpretação incrível — é emocionante ver como são bem tratadas questões tão sensíveis como a interrupção voluntária da gravidez, o abuso e violência sobre as mulheres e sobretudo entre adolescentes, numa sociedade profundamente machista e conservadora. Quanto aos outros Prémios de Melhor Actor e Actriz foram igualmente óbvios: em ‘Volevo Nascondermi’, do italiano Giorgio Diritto, o italiano Elio Germano aborda uma difícil composição, da complexa personagem de Antonio Ligabue (1899-1969), um pintor de art naif, famoso em Itália. Germano, um dos melhores actores italianos da actualidade, é também o protagonista de ‘Favolace’, dos Irmãos D’Innocenzo, uma ‘história negra’, que ganhou o Prémio de Melhor Argumento; a alemã Paula Beer foi a Melhor Actriz, em ‘Undine’, de Christian Petzold (‘Em Trânsito), um drama sentimental e fantástico que recebeu também o Prémio Fipresci da crítica internacional.

Lê Também:   Cine Quarentena | ’Uma Escolha Imperfeita’: Sexo e Crise de Meia-Idade

TRAILER DE ‘UNDINE’

Este ano do 70º Berlinale, foi atribuído também um Urso de Prata, como uma espécie de Prémio Especial do Júri, à comédia ‘Effacer l’historique’, dos franco-belgas Benoit Delépine e Gustave Kervern (‘Saint Amour’, 2018): a história de três ‘uberizados’ e solitários cinquentões (Blanche Gardin, Denis Podalydés e Corine Massiero), que se atrapalham com tudo o que são as novas tecnologias. O sul-coreano Hong Sangsoo (‘Hotel by The River,’ 2018), recebeu o Urso de Prata para a Melhor Realização, para ‘The Woman Who Ran’, um filme centrado só nas mulheres e protagonizados pela sua actriz fetiche: Kim Min-hee. Outro dos filmes que deu nas vistas foi o russo ‘DAU. Natasha’, do jovem Ilya Khrzhanovsky, sobre os meandros do KGB, no tempo da URSS, que ganhou o Prémio de Melhor Contribuição Artística, para a direcção de fotografia do veterano Jürgen Jürges. Fora do júri oficial da Competição também ‘Irradiés’, do franco-vietnamita Rithy Panh, que estava a concurso, recebeu o Prémio de Melhor Documentário, com uma arriscada aposta em finding footage num filme-memória sobre a histórica das guerras, do Holocausto, e de outras tragédias do século XX.

TRAILER ‘THE HUMAN WHO RAN’

Com as habituais dificuldades de um inicio de temporada cinematográfica a Berlinale consegui mesmo assim trazer à sua selecção oficial bom cinema, mas também algum muito mau, que não se entende porque está numa competição: foi o caso de ‘Sibéria’, do sempre idolatrado Abel Ferrara, embora tenha sido um acontecimento. Os prémios da Berlinale 70 foram como quase sempre políticos e emotivos e o palmarés discutível. A Berlinale novamente premiou o bom, em detrimento do melhor da sua selecção. Mas seria mais estranho e insólito se tivessem premiado o Ferrara!

JVM (em Berlim)

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *