©Nord-Ouest Films, Arte France/72ª Berlinale

72ª Berlinale (Dia 5) | Les Passagers de la Nuit

Em ‘Les Passagers de la Nuit’, o realizador francês Mikhaël Hers vai-se aperfeiçoando no seu estilo directo, delicado e sensível com este filme soberbo e de matriz existencialista, sobre o quotidiano de uma pequena família parisiense, na década de 1980.

Se existem filmes com quem logo nos identificamos com os personagens ou temos a impressão de que os conhecemos de algum lado é o caso deste ‘Les Passagers de la Nuit’, de Mikhaël Hers (Amanda, 2018). Primeiro importa explicar que, este título, remete também para um formato de um programa de rádio, muito em voga nas madrugadas das rádios dos anos 80. Em Portugal chamava-se precisamente ‘O Passageiro da Noite’ e era conduzido, salvo erro, pelo excelente locutor e conversador Cândido Mota, na Rádio Comercial. Fez história na rádio portuguesa. E na verdade, há efectivamente uma grande ligação entre o objectivo deste programa de rádio e o filme de Hers, apresentado na competição da 72ª Berlinale. O francês é um cineasta que tem evoluindo muito, tornando-se quase um mestre em reconstruir os sentimentos da vida e os fragmentos que constituem os mais normais (e universais) destinos das pessoas, que utilizam ou utilizavam a rádio para falar de si dos seus anseios sentimentos ou para combaterem a solidão. O filme começa com um breve prólogo ambientado em 1981, nas ruas de Paris, com povo a festejar a ascensão da esquerda ao poder: François Miterrand é eleito à segunda volta presidente da França. A partir daí, ’Les Passagers de la Nuit’ instala-se num apartamento familiar, numa torre no bairro de Beaugrenelle, atrás da Torre Eiffel e com uma bela vista para a cidade e para o Sena. Elisabeth (Charlotte Gainsbourg), foi deixada pelo marido, abatida e cheia de dúvidas sobre suas capacidades, sozinha e em dificuldades financeiras, tem de reinventar a sua vida, que partilha, com seus dois filhos adolescentes e ainda dependentes: Judith (Megan Northam) e Matthias (Quito Rayon-Richter). O acaso e a necessidade de se virar, leva-a primeiro a um emprego de telefonista, no programa de rádio noturno, apresentado por Vanda Dorval (Emmanuelle Béart), para onde os ouvintes ligam para fazer às mais diversas confissões: falar sobre si, do seu passado, da sua infância, enfim desabafarem. É lá que uma noite e ao vivo vai aparecer Talulah (Noée Abita), uma miúda errante de 18 anos, com uma vida complicada e que Elisabeth decide ajudar e acolher; algo que não vai deixar o jovem Matthias (de 15 anos) indiferente. Para depois a rapariga inesperadamente, desaparecer e reaparecer quatro anos depois, enquanto a vida de todos agregado familiar, felizmente já mudou…para melhor.

Lê Também:   72ª Berlinale (Dia 3) | ‘Nana’ de Kamila Andini

VÊ TRAILER DE ‘LES PASSAGERS DE LA NUIT’

O filme para além de uma imersão na intimidade desta família normal e vulgar, com os problemas de todos nós, proporciona-nos ainda um olhar sobre os vastos arredores de Paris, sobre uma temporalidade ficcional, os vibrantes anos 80 — também em Portugal — através de um drama que se estende ao longo de sete anos e que passam a correr como a vida e com altos e baixos. As interpretações do elenco liderado por Charlotte Gainsbourg, são absolutamente notáveis e precisas na caracterização perfeita de cada uma das personagens e sua evolução. E com isso, Mikhaël Hers, traça-nos um maravilhoso retrato de vida e da passagem de um tempo, apresentando-nos as micro-emoções daquele presente, que alimentava muitas incertezas no futuro, valorizado as forças e fraquezas humanas, mas sempre com uma absoluta simplicidade e sensibilidade. E sobretudo, mostra-nos como a densidade dos laços afetivos, do amor e da bondade, ajudam a superar as maiores tormentas e dificuldades. Com um estilo que flutua à superfície do mundo e dos acontecimentos como se nada se tivesse passado, o filme é ainda um fino reflector de atmosferas contidas, de pequenas coisas, pequenos gestos e  acções simples, mas essenciais e que dão sentido à vida. ’Les Passagers de la Nuit’ é ainda uma obra profundamente emocional e nostálgica, atemporal e universal, com uma atmosfera dos anos 80, muito bem reconstruída, tanto ao nível da música, como do guarda-roupa e adereços. Faz também uma homenagem a Noites de Lua Cheia (1984), do mestre Éric Rohmer, aliás um filme referido num diálogo, por uma das personagens. O filme de Hers combina harmoniosamente um tom existencialista e agitado do cinema da nouvelle vague, com um ritmo tranquilo, através de uma série de sequências encaixadas subtilmente, no meio dessa história de sete anos, intercalada por várias imagens de arquivo — por exemplo, um excerto de ‘Le Pont du Nord (1981), de Jacques Rivette. A cidade de Paris é mais uma das personagens do filme, aliás um dos melhores desta competição da 72ª Berlinale.

JVM

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *