‘Killers of the Flower Moon’ © Apple TV

76 º Festival de Cannes | Killers of the Flower Moon: Isto é Cinema!

‘Killers of the Flower Moon’ é regresso extraordinário de Martin Scorsese à Croisette (desta vez fora de competição), dirigindo a sua dupla de atores favoritos Leonardo DiCaprio e Robert De Niro, num filme que é um fresco histórico incrível dos EUA e um gesto milagroso que ficará certamente na História do Cinema. Estreia prevista para 18 de Outubro.

Quando do lançamento de ‘O Irlandês’, o veterano realizador e curador norte-americano Martin Scorsese num artigo de opinião publicado no New York Times em 2019 — salvo erro também publicado no nosso ‘Expresso’ — em pleno tempo de incertezas provocadas pela pandemia de Covid-19, apontava para a ‘eliminação progressiva e constante do risco’ na indústria de Hollywood e, em particular, dos filmes de grande orçamento, a ponto de provocar a coexistência de ‘dois campos distintos’: de um lado, o fenómeno do ‘entretenimento audiovisual global, do outro, o Cinema’. ‘Killers of the Flower Moon’, pertence obviamente à segunda categoria, com Martin Scorsese a lembrar-nos da importância do público, nesta batalha pelo futuro da 7ª arte. E assim, mesmo que o filme seja produzido pela Apple TV, uma plataforma de streaming, é um filme incondicionalmente para ver nas salas cinema, que consegue conjugar os dois factores: a grande qualidade cinematográfica, com o entretenimento. E isto é cinema! 

Festival de Cannes 2023
Killers of the Flower Moon ©Martin Scorsese

Na década de 1920, em Oklahoma, vários membros da tribo índia dos Osage, enriqueceram graças ao petróleo encontrado nas suas terras e foram alvo de uma série de bárbaros assassinatos ou morreram prematuramente de estranhas doenças. Uma investigação, pelo recém-criado FBI, de Edgar J. Hoover é realizada para tentar solucionar essa sucessão de crimes ou estranhas mortes, chamadas de ‘o reinado do terror’. Baseando-se em grande medida no livro homónimo de David Grann e na sua investigação jornalística-criminal, ‘Killers of the Flower Moon’, é um fabuloso western,  que consegue condensar muito bem esta história verídica, numa descrição clássica e básica — relegando para segundo plano ou eliminando mesmo algumas das situação mais secundárias. O filme começa logo com uma homenagem a Sergio Leone, nos primeiros minutos: uma sequência muito semelhante à da chegada à estação de combóio de Claudia Cardinale em ‘Era uma vez no Oeste’. A cena é retomada em termos de plano, mas com a personagem de Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio). Por outro lado Scorcese — fazendo um sensacional entrada no género que mexeu com a sua infância cinéfila — consegue reconstruir a época dos anos 20 do oeste americano — já sem cavalos mas com o emergente automóvel — com um formidável precisão sobretudo através dos cenários e uns espantosos figurinos. Porém, assim como na sua já longa carreira, o cineasta recusa-se a cair nos clichés do género, simplesmente reproduzindo o que já foi feito, como aliás faz muito bem Quentin Tarantino, nos seus filmes. Longe das perseguições a cavalo, dos tiroteios ou dos duelos ao sol ou na rua da cidade de fronteira, entre o salão e o escritório do xerife, ‘Killers of the Flower Moon’ assenta, exactamente no contrário: num discurso dinâmico e nuns diálogos de uma lentidão hipnotizante, para melhor compreensão da trama. É natural que os espectadores menos perseverantes se inquietem um pouco, mas vale a pena desfrutarem da história. Assim, à medida que o drama avança, o filme age como um veneno lento, uma insulina, que vai entorpecendo o espectador, para melhor injectar o seu poder surdo e torná-lo consciente. Tal como acontece aliás com a incrível personagem de Mollie Burkhart interpretada pela actriz de origem indígena Lily Gladstone. A sua interpretação é excelente e comovente e sendo uma secundária ao pé dos ‘grandes monstros’, é a verdadeira alma do filme.

VÊ TRAILER DE ‘KILLING OF THE FLOWER MOON’

Martin Scorsese rapidamente transforma o inicial oeste americano, numa investigação pela verdade, sobre um episódio algo esquecido da história dos EUA. ‘Killers of the Flower Moon’ de fato começa com o enterro de um cachimbo Osage, uma cerimónia simbólica, em sinal de paz, entre os índios e a comunidade americana branca. Trata-se  do enterrar de uma herança, de uma época, de uma forma de viver e de acreditar, aparentemente aceite de boa vontade por ambos os lados. Porém o que vamos ver a seguir no filme é o assinar de uma sentença de morte progressiva deste pacto sagrado, abandonando gradualmente pelos homens brancos, guiados nomeadamente pela figura autoritária de William (King) Hale, (com Robert De Niro no seu melhor), que procuram tomar o poder dos índios, a sua riqueza e tudo o que eles conseguiram criar em nome da paz. É então, que em cerca de 3h26, observamos a extinção dos Osage — através de mortes violentas ou envenenamentos — passando pela arrogância da despótica comunidade branca e da ascensão de um capitalismo selvagem, ávido pela apropriação e dominação das terras índias, carregadinhas de petróleo. Trata-se de uma observação que provoca um paralelo, bastante perturbador aliás, sobre os meandros e monstruosidade da história dos EUA desde a sua fundação até agora, tendo inevitavelmente um impacto contemporâneo desconcertante no funcionamento do nosso sistema económico, político e social e equilíbrio de paz a nível mundial. Mais ainda, num gesto milagroso do cinema, ‘Killers of the Flower Moon’ parece também querer indirectamente denunciar a espoliação cultural e cinematográfica do mundo atual, que estamos a assistir.

Festival de cannes 2023
© Apple TV

Quando Martin Scorsese filma esta patrocinada e sinistra extinção dos Osage, parece querer filmar também a extinção de um certo tipo de cinema, mais purista mais bem informado dos que as sagas de super-heróis. Afinal, como se vê aliás aqui no Mercado do Filme de Cannes, um boa parte da 7ª arte acabou por ceder ao capitalismo, ao dinheiro e as grandes máquinas de Hollywood. Preferem compilar, repetir, continuar obras sem sabor e valor (há outras com valor também como por exemplo Indiana Jones), do que a correr o risco de quebrarem ou irem à procura da novidade e inovação. Com ‘Killers of the Flower Moon’, baseado numa narrativa de certo modo contrária às preferências do grande público, Martin Scorsese corre (um bom) risco, de nos revelar um caso e uma investigação sobre um acto criminoso épico, violento, amargo e fúnebre sobre a ganância humana, incitando os espectadores a explorarem novos territórios, a reacenderem uma chama que parece estar prestes a apagar-se: a da magia do cinema e do conhecimento.

Leonardo DiCaprio Killers of the Flower Moon
Killers of the Flower Moon © Apple TV

Tal com Ernest Burkhart — também um dos melhores papéis de sempre de Di Caprio —, o espectador torna-se cúmplice de um desaparecimento planeado dos Osage, ao deixar-se afogar, encurralar e enganar por um sistema opressor e corrupto. Mas nunca é tarde para deixar de aceitar um tipo de manipulação que não se consegue controlar. Pelo contrário, é sempre possível rebelar-se e assumir as rédeas para salvar o que ainda resta do nosso mundo, das nossas conquistas e, em ‘Killers of the Flower Moon’, de uma ideia de cinema que redescubram a nossa história e valores comuns. Em última análise, um modesto tambor índio, uma voz simples e um pouco de engenho, podem ser suficientes para contar as mais belas e grandes histórias no cinema, histórias essas que nos comovem, surpreendem, questionam e nos levem melhor ainda, a partilhar isso nas salas de cinema. Estou-me a lembrar também e bem a propósito de ‘Retratos Fantasmas’, o documentário que vi ontem de manhã, do meu ex-colega da crítica e agora grande realizador, o brasileiro Kleber Mendonça Filho, que fez um documentário intimista sobre a sua casa, as suas memórias, a sua cidade, os filmes e os velhos cinemas do Recife. Viva o Cinema!

JVM




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