© Marco Bellochio/Festival de Cannes

76º Festival de Cannes | Rapito: A Conversão de Marco Bellochio

O veterano, mais muito activo realizador italiano Marco Bellocchio apresentou na Competição, ‘Rapito’,  um intrigante drama histórico, baseado em factos verídicos, sobre um rapazinho judeu, sequestrado pelas altas esferas da Igreja, para se tornar padre no Vaticano. Um drama sobre a fé e a obsessão, que foi muito bem recebido pela crítica. 

O realizador italiano Marco Bellocchio, apesar dos seus 83 anos, continua muito activo, agora com a estreia aqui na Competição, deste envolvente ‘Rapito’ e, depois de ‘O Traidor’ (2019), um épico sobre a máfia siciliana; e da sua mini-série de televisão, ‘Esterno Notte’, — disponível em Portugal na plataforma de streaming Filmin — que reconstrói o rapto e subsequente assassínio do antigo primeiro-ministro Aldo Moro, pelas Brigadas Vermelhas em 1978, um acontecimento que Bellocchio já retratou também no seu aclamado filme ‘Bom Dia, Noite’, (2003). Em ‘Rapito’, o veterano realizador italiano vira-se agora para uma história verídica de época, que começa em 1858, acompanhando uma convincente investigação sobre um controverso momento histórico da Itália do século XIX, marcada pelo anti-semitismo, prepotência e poder da Igreja Católica, do Vaticano. O problema é de facto ser obrigado quase todos os dias do Festival, por força da programação, a ver filmes tão intensos como ‘Rapito’, nas sessões de imprensa das 22h30. Poderia se desfrutar melhor se fossem projectados a horas mais decentes e durante o dia, preenchido aliás quase sempre com grande intensidade, entre projecções, conferências de imprensa e crónicas diárias. Mas voltando a ‘Rapito’, foi um filme escrito em parceria, por Bellocchio e Susanna Nicchiarelli (a realizadora de ‘Miss Marx’), inspirado em factos reais, mas também num livro de Daniele Scalise, que segue a longa e traumática jornada do pequeno Edgardo de 6 anos, (interpretado por Enea Sala e depois já mais velho por Leonardo Maltese), que é retirado da sua família, para junto do Papa Pio IX (um perverso Paolo Pierobon), que o leva para o Vaticano com outros rapazinho judeus, que são forçados a aprenderem o catecismo e a transformarem-se de acordo com a Lei Pontifical, em obedientes católicos e padres. Edgardo Mortara, era um dos muitos filhos de Solomone ‘Momola’ Mortara (Fausto Russo Alesi) e da sua esposa Marianna (Barbara Ronchi), um casal judeu que vive confortavelmente entre a burguesia bolonhesa. Porém esse privilégio acaba, quando Feletti (Fabrizio Gifuni), o padre local e inquisidor, pede aos soldados que levem o pequeno Edgardo, justificando que a criança foi batizada secretamente pela empregada da família, num momento em que esteve gravemente doente e como tal tem de ser entregue à Igreja. A única maneira do casal recuperá-lo seria converter-se ao catolicismo, o que obviamente recusam-se a fazer. Em Bolonha, Momola faz tudo para ter o seu filho de volta, alistando rabinos e organizações judaicas para o apoiarem nas suas reivindicações e fala mesmo à imprensa nacional e internacional, que caricatura o papa Pio IX, como um monstro sequestrador. Mas nada consegue, nem mesmo uma vitória jurídica.

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VÊ TRAILER DE ‘RAPITO’

Edgardo acaba por ser completamente doutrinado na igreja, enquanto o seu pai permanece indefeso e sua mãe começa a perder a razão. A história passa-se na década de 1860, quando os Estados Papais, eram governados pela Igreja e quando entretanto foram tomados por um exército italiano, que deixou pouca margem de manobra ao Papa Pio IX (Pierobon). Encurralado, mas recusando-se a abrir mão do seu poder, o Papa é mostrado no filme de Bellocchio, como um fanático conservador e delirante, cuja ânsia de poder e medo dos judeus — exemplificado num pesadelo de uma circuncisão — empurra também, o agora extremamente católico Edgardo, para posições extremas. Há momentos memoráveis ​​em que o filme captura a confusão que o pobre Edgardo, sentiu ao ser forçado a adorar um deus diferente e o Cristo na cruz. Há aliás uma cena bastante exagerada e delirante, em que o rapazinho sobe a uma imagem de Jesus crucificado no altar, remove os pregos de ferro dos braços e pés de Cristo, na esperança de salvar seu novo ídolo, que entretanto desce da cruz e vai-se embora. Existem outras cenas que revelam igualmente a enorme violência psicológica e hipocrisia de uma Igreja Católica, que faz autênticas lavagens ao cérebro da juventude italiana, ensinando-lhes a piedade, enquanto ao mesmo tempo os tortura psicologicamente, dando uma nota de grande actualidade ao filme. É interessante ver igualmente como as sequências de oração dentro da casa judaica de Mortara e as do Vaticano são frequentemente intercaladas, embora Bellochio tente diferenciar as duas, contrastando-as, entre uma família unida, amorosa e humilde, por oposição a uma instituição poderosa, que está prestes a entrar em colapso, apesar do seu aparato cerimonial.

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Festival de Cannes 2023
‘Rapito’/©Marco Bellochio

‘Rapito’ é preenchido também com um certa estética operática trágica, típica do realizador — câmaras flutuando pelos corredores ou pelas varandas das casas, palácios e igrejas, enquanto os personagens correm para a tragédia — e os grandes momentos crescem muito emocionalmente à custa de uma poderosa banda sonora da autoria de Fabio Massimo Capogrosso. Porém, o que parece fascinar Bellocchio nesta história não são as personagens,  estereótipos, sejam judeus ou católicos, mas a componente política do drama e o que conta sobre uma época em que o reacionário Papa Pio IX começou a perder poder, para o recém-fundado Reino da Itália. Quando isso aconteceu, já Edgardo estava perdido para os seus pais e para o judaísmo para sempre. ‘Rapito’, não termina por isso, com uma nota de esperança, mesmo que Pio IX receba uma espécie de castigo divino. Como Bellocchio revela, o Vaticano e Igreja perderam muito do seu território depois de 1870, mas permaneceram poderosos até hoje aliás, o suficiente para dominarem a população italiana, incluindo os jovens e os não católicos. De acordo com uma entrevista com o realizador, o título provisório do filme era ‘A Conversão’. No final perguntamo-mos se essa conversão de Edgardo, apesar de ter sido forçada, ele não teria tido outras hipóteses de resistir a tanta manipulação e humilhação. Marco Bellocchio é efectivamente conhecido pelos seus filmes ousados ​​e politicamente polémicos, neste caso numa crítica feroz à instituição Igreja. ‘Rapito’,  aborda com ousadia temas como religião, poder e resistência à injustiça, numa história envolvente e bem documentada, com temas universais e sobretudo excelentes interpretações de actores não muito conhecidos mas muito bons, que conseguem também ajudar a capturar a essência desse período conturbado da história italiana.

JVM

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