Guest of Honour | © Ego Film Arts

76º Festival de Veneza | Guest of Honour e os Segredos da Familia

O canadiano Atom Egoyan regressou à competição com ‘Guest of Honour’, um thriller sobre a estranha relação de um pai com a sua filha. Mais dois filmes estiveram a concurso: ‘About Endlessness’, um comédia do sueco Roy Andersson e ‘The Painted Bird’, uma visão do holocausto pelo checo Václav Marhoul.

O cineasta canadiano Atom Egoyan regressou ao Festival de Veneza com ‘Guest of Honour’ depois de ter apresentado em 2015 ‘O Número’, uma história de vingança com Christopher Plummer sobre os nazis fugidos depois da II Grande Guerra. Este  novo ‘Guest of Honour’ é um filme de suspense, sobre um inspector sanitário (David Thewlis) torturado pelos seus demónios psicológicos, enquanto profissionalmente tem de se relacionar com a comunidade gastronómica e multi-cultural da sua cidade. Guest of Honour tem como base um argumento original escrito pelo próprio Atom Egoyan, e vai para além da caricata figura do agente público, desenvolvendo-se mais para revelar os seus estranhos segredos familiares e em particular a complicada relação com a sua única filha Veronica (a actriz de origem brasileira Laysla de Oliveira).

TRAILER DE ‘GUEST OF HONOUR’

Verónica é uma professora de música na casa dos vinte anos, acusada de tirar proveito de sua posição para abusar sexualmente de Clive, um aluno de 17 anos. O filme explora os segredos entre a jovem e o pai, que pretende pagar a fiança e libertá-la da cadeia, optando esta estranhamente por permanecer na prisão sabendo que a acusação é controversa. A opção da filha frustra o pai, que decide canalizar a sua raiva de uma forma impotente no seu dia-a-dia de trabalho – como inspector sanitário controla pequenos restaurantes exercendo o seu poder para se libertar das sombras do passado que continuam a assombrar a sua relação com a filha. Diria que foi muita parra em pouca uva, ou seja uma intrincada trama que não dá praticamente em nada de relevante e que entusiasme o espectador.

TRAILER DE ‘ABOUT ENDLESSNESS’

Roy Andersson, Leão de Ouro em 2014, com ‘Um Pombo Pousou Num Ramo a Refletir na Existência’, regressou com mais uma das suas pequenas fábulas sobre a fragilidade humana: About Endlessness’, é composto pelos seus habituais ‘quadros vivos’. Em ‘About Endlesseness’ — a referência ao infinito do título é um dos questionamentos da existência humana e em geral de toda a sua obra — traça de imediato o seu estilo de cinema muito peculiar: uma colecção dos tais tableaux vivants, aparentemente desligados uns dos outros, que jogam com paradoxos, numa combinação da tragédia, fatalismo e humor negro. Todos os quadros são situações insignificantes, como a história de um padre que, depois de perder a fé e a esperança, procura conforto de um psiquiatra mais preocupado em não perder o autocarro para casa ou a senhora com o bebé que quebra o salto do sapato, ou eventos históricos, como um exército derrotado que marcha em direcção a um campo de prisioneiros ou Hitler com o seu staff no seu bunker, que abana com o bombardeamento, apenas à espera da sua derrota e da derrocada final. ‘About Endlessness’ é quase como sempre nos filmes de Andersson, um ensaio sobre o absurdo e, “uma reflexão sobre a vida em toda a sua beleza e crueldade, em todo o seu esplendor e banalidade”, como explicava o próprio realizador nas notas de imprensa.

TRAILER ‘THE PAINTED BIRD’

O checo Václav Marhoul — realizador de mais uma versão do filme histórico ‘Tobruk’, 2008 — apesar de ser uma novidade na competição, criou alguma expectativa com ‘The Painted Bird’, um filme que chamava à atenção por causa da sua bela fotografia a preto e branco e o tema da Shoah. Em ‘The Painted Bird’, Václav Marhoul conta mais uma vez a perseguição aos judeus, mas vista através dos olhos de uma criança (uma extraordinária interpretação do pequeno Petr Kotlár), que sofre um crescendo de solidão, tortura e atrocidades. O filme é baseado no romance homónimo de Jerzy Kosinski — autor de vários livros de memórias autobiográficas e ficção, passadas na Europa de Leste, durante a II Guerra Mundial. ‘O Pássaro Pintado’ é editado em Portugal pela pequena ‘Livros de Areia’. Essa criança judia é colocada numa pequena quinta pelos pais na tentativa de escapar ao Holocausto, mas com uma mãe adoptiva bastante idosa. Quando a nova mãe morre de colapso, a criança vai encetar uma viagem de terror marcada por experiências atrozes e dilacerantes, onde vem ao de cima toda a maldade e violência humana, e que marcam para sempre o seu corpo e o seu olhar. Filme de viagem, complexo e perturbador, com quase três horas de duração é filmado num magnífico preto e branco (direcção de fotografia de Vladimír Smutny), levou quase dez anos para ser concretizado e estar aqui na competição. O título, ‘The Painted Bird’, refere-se a um dos episódios do filme — são 6 e estão relacionadas com as personagens que se vão cruzando com o miúdo, quase todas para o mal — cujas as penas de um pássaro são pintadas e quando regressa ao bando é excluído de uma forma cruel por ser ‘diferente’. O elenco inclui algumas estrelas improváveis para um filme originário do Leste Europeu, como Harvey Keitel (um padre católico, com a voz dobrada), Stellan Skarsgård e Barry Pepper (no papel de dois soldados, um nazi e outro do Exército Vermelho) e o britânico Julian Sands (‘Um  Quarto Com Vista Sobre a Cidade’) em Garbos, uma das sinistras personagens que dão ‘hospitalidade’ à criança. ‘The Painted Bird’ é igualmente mais uma reflexão ao nível da ficção, sobre ‘A Banalidade do Mal’, segundo Hannah Arendt.

JVM em Veneza

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