IndieLisboa ’22 | Strawberry Mansion, em análise
“Strawberry Mansion”, um delicioso indie norte-americano realizado por Kentucker Audley e Albert Birney, teve direito à sua estreia nacional no âmbito do IndieLisboa ’22, na secção Boca do Inferno. É pura imaginação em estado bruto!
Não é invulgar a secção Boca do Inferno do IndieLisboa receber ambiciosos títulos invulgares que se situem nos reinos afins ao terror, fantasia e ficção científica. “Strawberry mansion” é um desses casos, num filme que estreou inicialmente no americano Sundance Film Festival no início de 2021 e que teve uma rota de festivais completa e satisfatória que agora finalmente chega a Portugal com o Indie.
Este belíssimo filme, que contou apenas com uma exibição única no Cinema Ideal, é a prova viva de que as limitações de orçamento não são limitação à imaginação, neste excêntrico retro-futurista que nos coloca num estado de suspensão da realidade durante 90 minutos. Conhecemos inicialmente James Preble (o nosso protagonista interpretado pelo também co-realizador Kentucker Audley), um auditor de sonhos que se desloca à casa de Arabella “Bella” Isadora (Penny Fuller), uma senhora idosa que acumulou horas e horas de sonhos em cassetes de VHS. Indevidamente, as cassetes permaneceram por auditar até agora. A partir deste ponto, desenvolve-se uma improvável e complexa aventura onírica.
“Strawberry Mansion” é a história de um mundo distópico – um mundo onde o capitalismo tomou conta até dos nossos mais preciosos e subjetivos refúgios pessoais – os nossos sonhos. Nesta longa-metragem fantasiosa somos apresentados a uma utopia negativa que segue a estrutura de evolução de eventos de tantas outras. Neste cenário, o protagonista, Preble, responsável por fazer a auditoria fiscal de sonhos, irá conhecer uma nova personagem, “Bella”, que o fará duvidar de tudo o que em tempos deu por certo e inquestionável.
Como em qualquer distopia, Bella será a figura disruptiva, que faz com que o protagonista compreenda que a sua vida é uma farsa e, neste caso, que os seus sonhos se encontravam dominados por mundanidade, falta de livre arbítrio e uma subjugação ao capital e ao consumismo. Todavia, esta não é de todo uma história semelhante a qualquer outra aventura sci-fi do género.
Por norma, este subgénero da ficção científica vê-se dominado por uma máquina tecnológica avassaladora e tais sociedades autoritárias hiper-tecnológicas tendem a pautar-se por um visual escuro, onde a cor se vê sumida, o mundo se pinta de cinzento. A estética robótica encontra, por norma, apenas alguns laivos de cor e emoção em pequenos apontamentos que escapam à hegemonia da tristeza e conformidade. Em “Strawberry Mansion” somos antes apresentados, desde o primeiro instante, a um mundo de sonhos em neon, sonhos que, à medida que a narrativa progride, se vão tornando cada vez mais simbólicos, confundindo-se com o presente da ação e abandonando, cena após cena, qualquer ilusão de linearidade narrativa e temporal. As linhas da história confundem-se com mestria e os nossos sentidos são inundados pela visão peculiar desta parelha de realizadores.
A longa-metragem deixa claro, uma vez mais, que é no campo do cinema independente que a liberdade criativa é capaz de melhor se exprimir. No caso de “Strawberry Mansion”, um filme que se sente como a criança de amor de Tim Burton (em particular do seu “Big Fish” – de onde o filme empresta grande parte da sua estrutura de saltos entre a realidade e o sonho), dos dramas de Charlie Kauffman (“I’m Thinking of Ending Things”) e da estética colorida de Wes Anderson (p.ex em “Moonrise Kingdom“), quase sonhamos com um orçamento um pouco maior, capaz de abarcar toda a ousadia estética dos realizadores.
A obra de Kentucker Audley e Albert Birney conta com o trabalho de múltiplos artistas VFX, apresenta vários momentos em stop motion e ainda belos apontamentos esporádicos de animação tradicional. Todavia, o seu look geral tem um ar inacabado, imperfeito, por vezes até tosco. O mesmo filme, sem tirar nem pôr, e com alguns recursos adicionais, tornar-se-ia um espectáculo de cinema sem paralelo.
Não obstante, esta é uma jornada majestosa, estranha, agridoce e emocionante, romântica e muito crítica do mundo em que vivemos. Existem várias reviravoltas narrativas que se vão sucedendo ao longo dos 90 minutos de filme e as quais não ousaríamos revelar, sob pena de estragar a experiência a quem não teve ainda a oportunidade de descobrir o mundo insano de “Strawberry Mansion”.
TRAILER | STRAWBERRY MANSION NA BOCA DO INFERNO LONGAS DO INDIELISBOA ’22
O Indielisboa regressa em 2023. A sua programação, essa de certo estará novamente recheada de muitas obras incomuns e estimulantes.
Strawberry Mansion, em análise
Movie title: Strawberry Mansion
Movie description: Uma vida inteira de sonhos, guardados em cassetes de VHS. Chegou a hora de uma auditoria, porque neste mundo distópico nem os nossos sonhos estão livres do monstro do capitalismo. Mas isso não significa que não haja um pouco de esperança, e uma possibilidade de escape, escondida algures numa paisagem onírica. Quando o agente governamental James Preble (Kentucker Audley) conhece a artista Arabella “Bella” Isadora (Penny Fuller), é isso mesmo que acontece: ao abrir-se a porta ao sonho, abrem-se mil possibilidades.
Country: EUA
Duration: 90'
Director(s): Kentucker Audley, Albert Birney
Actor(s): Kentucker Audley, Albert Birney, Reed Birney
Genre: Ficção Científica, Fantasia, Drama, Romance, Aventura
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Maggie Silva - 85
CONCLUSÃO
“Strawberry Mansion” é uma aventura improvável capaz de misturar géneros, temporalidades e reações emotivas. Ora emotivo, ora hilariante, é uma obra que foge às convenções dos próprios filmes e estilos que referencia. Entre o surrealismo e o aburdo, esta pequena pérola indie cria um produto rico apesar dos parcos recursos financeiros à sua disposição.
Pros
- A criação de um vibrante e colorido mundo distópico – algo que parece quase uma contradição de termos, mas não neste “Strawberry Mansion”;
- O sonho como a expressão máxima da individualidade;
- O enredo – repleto de labirínticas reviravoltas,
- A fotografia que honra e inova;
- O absurdo, o delicioso absurdo;
- Paisagens deslumbrantes;
- Uma sensibilidade muito própria, extremamente humana e generosa;
Cons
- Por vezes, a estética retro-futurista tem um ar um pouco tosco. Tal aplica-se também aos muito rudimentares efeitos especiais. Mas, considerando a natureza excêntrica da narrativa, estes pormenores perdem peso;