Cinema sobre a Palestina e Iluminismo na Competição Internacional do Doclisboa
No âmbito da Competição Internacional do Doclisboa em 2024, a 21 de outubro e no Pequeno Auditório da Culturgest, foram exibidas uma curta e uma longa-metragem com a presença de 3 realizadores em palco. Reflexões sociais e históricas, com paralelismos evidentes, dominaram o discurso cinematográfico.
Numa Secção Competitiva do DocLisboa que, obstante não curada com o mesmo grau de detalhe que outras existentes neste festival, como reforçado na apresentação dos filmes, eis que “anan”, de Sirah Foighel Brutmann e Eitan Efrat, e “Well Ordered Nature”, de Eva C. Heldmann, se caracterizaram, nesta sessão no Pequeno Auditório da Culturgest, por uma coincidência de trato. Em ambos os filmes, um olhar sob o passado informa o presente, tornando o discurso mais rico e transversal. A Humanidade, os seus vícios, e as suas maleitas, todas elas bem em destaque com uma aura que oscila entre o nostálgico e o acídico.
anan no Doclisboa (2024, Bélgica, 12′)
“anan” é um filme que se faz valer não pelo seu artefacto ou dispositivo de cinema, não pelos seus ângulos de filmagem (note-se a muita câmara de ombro que treme e treme), mas antes pelo seu carácter lírico bem demarcado.
Aqui, nesta proposta, é percorrida uma rota muito relevante, a rota 3199, localizada no Deserto do Negueve, na Palestina colonizada. Com “anan”, que significa vento, desenha-se uma homenagem sentida à cineasta Chantal Akerman, que faleceu em 2015 e em Paris.
Ao pesar de uma morte individual associa-se o pesar de muitas mortes no coletivo. Como fazer o luto de um só indivíduo quando há um genocídio em curso? Como chorar a morte de Akerman num momento em que o passado e o presente da Palestina refletem um rasto de destruição perpetuado por Israel? E como continuar a lutar quando se faz vista grossa, uma e outra vez, perante a tragédia humanitária?
Sim, “anan” não tem grandes respostas, mas coloca diversas perguntas muito pertinentes e fá-lo com conhecimento de causa e adotando uma interessante perspectiva distinta, quase afim à Antropologia Social. Genocídios ignorados no passado espelham o mesmo gesto no presente.
Well Ordered Nature na Competição Internacional
(2024, Alemanha, 74′)
Eva C. Heldmann, presente em sala para uma conversa, realiza um filme-ensaio denso que, na marca dos 75 minutos, continua a fazer-se sentir algo longo. Assim o confirmam algumas partidas antecipadas por parte de membros da audiência. A obra, exibida neste 22.º Doclisboa, é atravessada por algumas malapatas: como uma narração em off robótica e que dificulta a captação de interesse da plateia.
Como peça ensaística que é, reconhecemos em “Well Ordered Nature” um interesse inegável. Mas no que ao cinema propriamente dito diz respeito, não empolga. Esta obra não precisava de uma tradução visual para o ecrã, não nos moldes atuais, podendo até ganhar mais ao expressar-se apenas textualmente.
Não obstante, reconhecemos um jogo muito inteligente, numa lógica comparativa entre a Alemanha do final do século XVIII e a do século XXI. Tudo se ancora com Catharina Helena Dörrien, uma educadora e botânica, estudiosa impulsionadora do conhecimento junto das jovens raparigas do seu tempo (esse tal período iluminista que chegava ao fim). Ela é o contraponto para toda a barbárie que vai sendo relatada. Por outro lado, também a natureza que tanto ama é a única que se mantém constante no seu deslumbramento.
Do lado oposto, também no século XVIII, temos os oficiais de Dillenburg e os seus meios noticiosos, temos os engenheiros sociais que garantem a desigualdade – a perseguição aos judeus, aos ciganos, a toda a classe trabalhadora e uma perpétua lógica de desumanização que, pela lente de Heldmann, ilustra os ecos no aqui e agora.
“Well Ordered Nature” não é um filme fácil de ver, mas é uma criação astuta, munida de uma banda sonora cativante e povoada por equiparações irónicas, de aproximação entre séculos, em matérias variadas como pobreza, políticas migratórias e anti-semitismo (nomeando apenas algumas).
O Doclisboa acontece na capital até ao dia 27 de outubro de 2024. Continuaremos a acompanhar a sua programação através da nossa cobertura.